2016. Dilma Rouseff é destituída de Presidente do Brasil. As ruas enchem-se de manifestantes, uns a favor, outros contra o impeachment. Michel Temer será o próximo Presidente. O Brasil está em sobressalto, Portugal acompanha a situação. No Porto organiza-se uma semana com exposições e debates sobre o que se está a passar do outro lado do oceano. Imediatamente, Luca Argel pega na guitarra e decide que é hora de dar voz ao samba. Nascia assim o projeto “Samba de Guerrilha”.
O disco só sai agora, cinco anos depois. É o quarto da autoria de Luca Argel e vem seguir-se aos discos “Tipos que tendem para o Silêncio”, de 2016, “Bandeira”, de 2017, e “Conversas de Fila”, de 2019, todos estes lançados em Portugal. Para este disco, Luca resolveu reunir sambas que já existiam e reinventar as sonoridades, aproximando-as mais do rock e da música eletrónica. “Samba de Guerrilha” é, por isso, uma viagem no tempo, onde nos cruzamos com histórias e personagens que marcaram o combate ao racismo, à escravatura e às desigualdades na sociedade brasileira. Desde o “Samba do Operário”, passando pelo “Pesadelo” e pela apologia de “Uma História Diferente”, o projeto reúne diversas expressões artísticas, para além do disco, no qual os temas surgem intercalados com momentos narração, pela voz de Telma Tvon. As ilustrações são José Feitor, o design de Luís Silva e a poesia de vários autores. No fundo, é um samba ópera, como lhe chama Luca Argel, mas com os dois pés assentes no Brasil, refere: “Quando decidi fazer este trabalho, eu já estava em Portugal, mas a minha ideia foi mostrar como o racismo e a discriminação ainda são pilares da sociedade brasileira”.
Luca Argel nasceu em 1988 no Rio de Janeiro. Diz que a banda sonora da sua infância foi “uma cassete dos Saltimbancos com música do Chico Buarque e a “Arca de Noé” do Toquinho”. A música esteve sempre presente, e talvez não pudesse ter sido de outra forma. No apartamento em que vivia com os pais e o irmão mais novo, sempre se respirou arte, não fosse a sua mãe a atriz e, atualmente, professora universitária, Filomena Chiaradia.
Logo aos 10 anos, decidiu que queria viver da música, ao que os pais responderam, sem reservas: “Podes ser o que quiseres, desde que sejas o melhor naquilo que queres ser”. E assim foi. Nessa altura, a mãe inscreveu-o numa escola de música onde aprendeu “as coisas básicas”. “Fiquei dois anos nessa escola e fui-me desenvolvendo sozinho com revistas com os acordes de músicas que gostava, também via sites de cifras”, conta. Aos 11 anos, Luca aprendeu a tocar aquele que viria a ser, até hoje, o primeiro e único instrumento que domina: a guitarra. Embalado pelos acordes e pela descoberta de sonoridades, formou uma banda de Rock, na qual tocava baixo.
O Cantautor
Em simultâneo com a música, começou a desenvolver uma grande paixão: pela Literatura. Explica: “Escrevi o meu primeiro poema antes de ter escrito a primeira canção, mas já me interessava por música antes de ser alfabetizado. Escolher entre as duas artes seria difícil”. Depois de Bob Dylan ter ganho o prémio Nobel da Literatura, em 2016, essa deixou definitivamente de ser uma questão.
Finda a licenciatura em Música na Universidade (qual) do Rio de Janeiro, decidiu que estava na altura de estudar algo diferente. Em setembro de 2012 publicou o primeiro dos seus sete livros, Esqueci de fixar o grafite, da editora 7Letras, e poucos dias depois veio para Portugal, pois queria enveredar no mestrado em Criação Artística Contemporânea, na Universidade de Aveiro. O curso não lhe encheu as medidas e poucos meses depois decidiu-se pelo mestrado em Literatura na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, aconselhado pela amiga Patrícia Lino, que atualmente é professora de Literatura Portuguesa em Los Angeles.
Esta dualidade com que sempre se debateu fê-lo lançar, em 2014, “um livro que só existia no momento da performance”, como descreve. Viria a dar o seu primeiro concerto na livraria Gato Vadio, no Porto, em que “cantava, tinha textos e projeção de vídeo”. “Assumi que esse projeto [Livro de Reclamações] era uma certa provocação minha, um livro que não existia fisicamente, ainda assim eu chamava de livro”, explica.
O Professor
Luca sempre viu a música como uma missão. Teve inclusive algumas experiências de voluntariado e deu aulas. Em 2008, foi professor numa ONG no Brasil, num complexo de favelas em Manguinhos, antes de vir para Portugal. Depois, o facto de, já no Porto, se ter aproximado do movimento anarquista, da Casa Viva, e da Roda de Samba fê-lo ver que era importante que a música tivesse também uma vertente política. Nesse movimento, aproxima-se da música e da luta de José Mário Branco, que não chegou a conhecer, mas que se tornou uma das suas maiores inspirações, a par de Caetano Veloso.
O cantautor recorda a história que um dos amigos lhe contou sobre o despejo de um acampamento cigano. Após esse despejo, a Casa Viva “convidou o José Mário Branco para cantar e ele aceitou. Ninguém estava à espera. Aquilo era uma casa e não uma sala de concertos”. Desde então que, também Luca faz da palavra uma arma e do samba um grito de resistência.
Continua a morar no Porto, a cidade que tão bem o acolheu, em setembro de 2012. A sua carreira tem sido uma “escalada”, como o próprio descreve. Ao início quase ninguém o conhecia, e apesar de ter sido muito bem recebido por Pedro, seu amigo, hoje a estabilidade é outra. O menino que veio temporariamente para estudar acabou por se estabelecer em Portugal como artista. Nesse caminho, a poesia e a música nunca o abandonaram, desde que se lembra que escreve a letra e a música das suas canções, e só no seu mais recente trabalho é que teve de ser diferente. A vontade de dar voz ao samba fê-lo abdicar disso.
Antes de se transformar num álbum, o projeto Samba Guerrilha era um concerto com voz e guitarra onde ia cantando e tocando “sambas antigos”, ao mesmo tempo em que contava a história do samba, tinha tópicos e ia falando de improviso sobre cada um. Depois dessa primeira apresentação no Porto, o projeto transformou-se num programa de rádio e num artigo publicado na revista Cão Celeste, em 2016. Em 2019, aconselhado por alguns amigos, Luca decide gravá-lo em disco.
A história que acompanha as canções, para lhes dar contexto, foi escrita por si, a partir das várias pesquisas sobre a história do samba. Luca leu muitos livros, acompanhou historiadores como Luís António Simas e Ney Lopes, o que o fez constatar a importância de se realizar uma revisão critica da História. A esse propósito, recorda um episódio: “Numa apresentação ao vivo do Samba de Guerrilha em Lisboa, um senhor, enquanto eu falava, incomodado com alguns números sobre o tráfico de escravos no Brasil disse: ‘’Sabe que em África eles também se escravizavam?’ Ele queria defender o país dele, como se essa revisão crítica fosse um ataque a Portugal”.
Com a pandemia, faz falta a proximidade do público, até porque o projeto tem uma componente forte de performance, tão próxima do teatro, que ele até tem pedido conselhos à mãe. Mas, apesar de tudo, a essência continua lá. A seu ver, Samba de Guerrilha é um projeto atual e necessário na situação política do Brasil: “O facto do Bolsonaro ser Presidente do Brasil talvez seja um sintoma dessa decadência social dos valores básicos de Humanidade, do valor à vida”.