A música de Luís Tinoco reflete um pensamento claro, sereno, uma capacidade de perceber o lugar do outro e de com ele se identificar no que de mais fundamental e humano existe, do puro humor à mais dura realidade.
Da nostalgia de Lugares Esquecidos, à exuberância de Evil Machines, do universo da infância de Contos Fantásticos e da inquietação luminosa de Sundance Sequence, à intimidade de Prolonging, da música de câmara à obra orquestral, todo o seu percurso reflete um compositor atento.
Repare-se em Alepo, que abre o seu mais recente álbum em nome próprio, obra que vem da realidade “daqueles que diariamente atravessam o mar, fugindo às mais diversas adversidades e conflitos”, num cruzamento de linguagens e das suas geografias.
“Como exercício meramente especulativo, imagino que a música possa ser um refúgio, uma companhia, uma memória. Na pressa da fuga, essa memória talvez seja a bagagem mais preciosa que esses viajantes transportam”, disse o compositor.
A capacidade de representação da música é imensa. Com Luís Tinoco também é generosa.
“Não concebo a música numa perspetiva exclusiva de entretenimento – embora não considere o entretenimento em si mesmo um problema. Como compositor, não estou imune a tudo aquilo que me rodeia”, disse em entrevista ao JL em 2022, quando da edição de Alepo e Outros Silêncios.
A música está constantemente à nossa volta. Vivemos num tempo em que as pessoas têm medo do silêncio, não só quando criam, mas também como vivem
luís tinoco
“A música está constantemente à nossa volta. Vivemos num tempo em que as pessoas têm medo do silêncio, não só quando criam, mas também como vivem. E, de uma forma que considero perigosa, a música é ouvida cada vez mais como entretenimento, como preenchimento [de um certo vazio], porque é imaterial. Não conseguimos fazer [outra coisa] quando estamos a ver uma pintura, uma escultura ou quando estamos a ler um livro ou a ver um filme”. Mas “com a música, pela sua imaterialidade”, há esse risco.
E essa sobre-exposição, essa habituação cada vez maior a uma espécie de música de fundo, leva a que haja “cada vez menos disponibilidade” para realmente ouvir. “Esse tempo de introspeção, de calma, de fazer uma escuta atenta acontece cada vez menos”.
“Portanto, como compositor, mas também como ouvinte, sinto que precisamos de parar, precisamos cada vez mais desse tempo para ouvir. Mais do que estar interessado em passar muita informação e sobrecarregar muito a escrita, tenho dado por mim a fazer o processo um bocadinho inverso, de filtrar, de dizer menos, mas talvez de me preocupar mais com o que quero dizer, e não com a quantidade do que quero dizer”.
A realidade impõe-se. “São temas que têm de ser abordados com uma seriedade que nos afaste do perigo do panfleto, da exploração fácil de coisas que são sensíveis, sérias”. Temas que vão deixando marca na obra de Luís Tinoco. E que a tornam perene, indispensável.
Percurso sólido
Luís Tinoco nasceu em Lisboa, em julho de 1969, numa família dedicada às artes. Havia a avó paterna, a pianista Maria Carlota Tinoco, antiga discípula de Vianna da Motta, com quem iniciou os estudos musicais. Depois, houve o pai, o músico, compositor, artista plástico e arquiteto José Luís Tinoco. “Não sendo músico profissional, pertence à geração que trouxe o jazz para Portugal”.
Luís Tinoco, porém, não teve logo consciência de que a música seria o seu mundo. Acabou o ensino secundário, entrou na Escola Superior de Teatro e Cinema. Mas a música foi-se “infiltrando”. Fez dois anos de ‘piano-jazz’ com Mário Laginha, retomou os estudos clássicos com a professora Elisa Lamas.
“Nunca tive vontade de ser intérprete profissional”, confessou ao JL em 2005. “Passava horas ao piano a tocar o que não gostava e acabava sempre por improvisar”. Mas era insuficiente o que fazia.
Nunca tive vontade de ser intérprete profissional. Passava horas ao piano a tocar o que não gostava e acabava sempre por improvisar
luís tinoco
“Havia muitos começos, muitas peças inacabadas, muita dificuldade no desenvolvimento desses materiais”. Precisava de “encontrar soluções a um nível estrutural que me permitissem desenvolver um discurso no tempo, com outra dimensão”. Por isso, entrou para o curso de composição da Escola Superior de Música de Lisboa.
“Foi uma viagem sem regresso. Tudo o que fiz era com o objetivo de encontrar ferramentas que me permitissem passar para o papel o que queria fazer”. Compor.
Luís Tinoco soma cerca de oito dezenas de obras musicais, vários prémios e o seu nome está presente em programas de concertos um pouco por todo o mundo
Terminou o curso em 1996. Depois, arriscou a saída do país, para “conhecer a nova música noutros contextos”. Fez o mestrado na Royal Academy of Music, lidou com um ambiente muito diferente do que Portugal então apresentava.
Seguiu-se o doutoramento na Universidade de York, que há quase 20 anos edita e promove toda a música que escreve, através da University of York Music Press.
“O começo e o fim de cada peça são, para mim, as partes mais críticas. Mas depois de encontrar a solução, obtenho uma certa fluidez. Compor é aquilo que mais prazer me dá. E cada vez que chego ao fim de uma peça e coloco a barra dupla, sinto-me feliz”.
Hoje, aos 55 anos, Luís Tinoco soma cerca de oito dezenas de obras musicais, vários prémios e o seu nome está presente em programas de concertos um pouco por todo o mundo, da Orquestra Gulbenkian às sinfónicas de Chicago, Seattle, Albany e São Paulo, da Filarmónica da Radio France à Royal Philharmonic de Londres, da Orquestra Sinfónica Portuguesa e da Sinfónica do Porto Casa da Música, à Metropolitana de Lisboa.
É interpretado e gravado por agrupamentos tão importantes como Quarteto Arditti, Gaillard Ensemble, Le Nouvel Ensemble Moderne, Royal Scottish Academy Brass, Apollo Saxophone Quartet e Maat Saxophone Quartet, Ensemble Lontano, de Odaline de La Martinez, Drumming – Grupo de Percussão, de Miquel Bernat.
Formado na ‘escola’ que António Pinho Vargas e Christopher Bochmann souberam erguer em Portugal, prolongou o legado. Ensina composição na Escola Superior de Música de Lisboa, é ‘associate’ da Royal Academy of Music, na capital britânica, e diretor artístico do Concurso Jovens Músicos da RTP/Antena2, estação de rádio onde há duas décadas desvenda todas as semanas a nova Geografia dos Sons.
Foi compositor associado da Casa da Música, no Porto, na temporada de 2017, compositor residente no Teatro Nacional de S. Carlos em 2016-2017, é coordenador do programa colaborativo Jovens Compositores dos Estúdios Victor Cordon, em Lisboa.
Há composições suas recorrentemente revisitadas por agrupamentos de câmara e orquestras como Mind the Gap e Round Time. Há outras que se impõem ao longo dos anos como Poemas do Oriente, sobre Camilo Pessanha, Search Songs, a partir de Alexander Search/Fernando Pessoa, From the Depth of Distance, com textos de Walt Withman e Álvaro de Campos.
Há aquelas que quase se pressentem, mesmo antes de ouvidas: Imaginary Dancescape, Invenção sobre Paisagem, A Way to Silence, Autumn Wind, Terra Fértil, Light – Distance.

Compôs Paint Me, ópera de câmara com libreto de Stephen Plaice e encenação de Rui Horta, Passeios do Sonhador Solitário, cantata com libreto de Almeida Faria, Lídia, para a Companhia Nacional de Bailado, numa coreografia de Paulo Ribeiro, com quem vai voltar a trabalhar, para a estreia de uma nova obra, pela Orquestra Nacional de Cannes, no final de 2025.
Em 2006, dois anos antes de Evil Machines, fantasia musical com libreto e encenação de Terry Jones, compôs Contos Fantásticos, a partir de três histórias infantis do ex-Monty Python: A Estrada Rápida, Três Pingos de Chuva e Tomás e o Dinossauro – obras estreadas no Teatro S. Luiz, em Lisboa, que carecem obviamente de regresso a palco.
Quando vi o que Luís [Tinoco] tinha feito com as minhas histórias, fiquei siderado. Adorei cada instante.
Terry Jones – ator, realizador e escritor, membro dos Monty Python
O ator, realizador e escritor britânico ficou “absolutamente entusiasmado com o resultado”, como então disse ao JL: “Quando vi o que Luís [Tinoco] tinha feito com as minhas histórias, fiquei siderado. Adorei cada instante. Ele transformou-as em algo muito diferente, numa coisa completamente nova. Parecem muito mais excitantes e poderosas. Nunca conseguiria imaginar”.
Para Luís Tinoco, o trabalho com orquestra é um dos seus preferidos, pela multiplicidade de recursos disponíveis, como disse ao JL em 2005.
A sua produção orquestral inclui, entre outras peças, Cercle Intérieur, estreada na Cité de La Musique, em Paris, FrisLand, ouvida pela primeira vez em Seattle, nos Estados Unidos, Incipit, escrita para os 450 anos da cidade do Rio de Janeiro, O Sotaque Azul das Águas, numa ligação Lisboa-São Paulo, através da Orquestra Gulbenkian e da sinfónica da cidade brasileira, e ainda concertos para piano, trompa, violoncelo, clarinete, acordeão.
Entre as suas mais recentes obras contam-se o Concerto n.º2, para violoncelo e orquestra, estreado no início de novembro por Filipe Quaresma, com o Ensemble Orquestral da Beira Interior, dirigido por Bruno Borralhinho, e Out of Order, para dois pianos, estreada no final do mês passado por Pedro Burmester e Mário Laginha, no programa conjunto dos dois pianistas de celebração dos 50 anos de Abril.
No próximo ano, além do bailado para a Companhia de Paulo Ribeiro, Luís Tinoco terá, pelo menos, uma nova obra de câmara a estrear em Seattle, no projeto Music of Rememebrance.
Um dos principais compositores europeus
“A música de tradição escrita tem uma luta muito grande para conseguir sobreviver no espaço público, por um lado porque há essa avalanche da cultura musical de entretenimento; por outro, porque tem de competir com o passado de uma forma que outras expressões artísticas não têm”, disse o compositor ao JL, no final de 2022, sobre a apresentação de obras ao vivo e a sua integração no repertório.
“Quando pensamos na programação de uma orquestra, ela tem de arranjar espaço para o grande repertório do passado, que é o que domina, depois tem de arranjar espaço para a programação nacional, depois, dentro das programações contemporâneas, tem de haver também espaço para os compositores internacionais…. E cada vez há mais fatores, mas as orquestras não aumentam e as temporadas também não”.
Por um lado posso dizer que a minha música tem circulado e tem sido ouvida, em Portugal e fora do país, e isso deixa-me muito feliz. Mas também tenho consciência de que é uma coisa muito residual, circunscrita a um espaço bastante afunilado
luís tinoco
“Podemos ir a uma livraria e encontrar um autor contemporâneo. No caso da música há [necessidade de] um ‘espaço performativo’. E, obviamente, se a instrumentação das obras for de maior dimensão – estou a pensar na música orquestral, na música de cena, ópera, etc. – então aí o buraco da agulha é ainda mais reduzido”, disse Luís Tinoco que, nas últimas temporadas, teve obras interpretadas em Portugal, Alemanha, Itália, Brasil, Estados Unidos, Japão…
“Por um lado posso dizer que a minha música tem circulado e tem sido ouvida, em Portugal e fora do país, e isso deixa-me muito feliz. Mas também tenho consciência de que é uma coisa muito residual, circunscrita a um espaço bastante afunilado”.
“A gravação acaba assim por ser uma saída possível. E esse tem sido um dos meus investimentos. Tenho feito um esforço muito grande para, se possível, a cada dois, três anos, pôr cá fora um disco monográfico […], e deixa-me particularmente feliz ter conseguido gravar com alguma regularidade aquilo que escrevo”, com uma “qualidade extraordinária de intérpretes e de gravação”, quase sempre músicos e técnicos portugueses.
É o que aconteceu com os seus mais recentes álbuns em nome próprio: The Blue Voice of the Water, com as orquestras Gulbenkian, Sinfónica Portuguesa e Sinfónica da Casa da Música (além da Sinfónica de Seattle), Archipelago, pelo Drumming GP, e Alepo e Outros Silêncios, com cerca de duas dezenas de músicos de diferentes gerações, todos premiados, e o engenheiro de som Hugo Romano Guimarães.
A atribuição do Prémio Pessoa deixou Luís Tinoco “imensamente feliz e surpreendido”, como disse à agência Lusa. Mas também levou a perspetiva mais longe, ao esperar que a distinção possa contribuir para “revitalizar e fortalecer” a música portuguesa.
[O prémio Pessoa] É um voto de confiança enorme. Deixa-me muito feliz, não só a título pessoal, mas também a título daquilo que é a área profissional em que me movo, que é a área da música, da música clássica, da música erudita
luís tinoco
“É um voto de confiança enorme. Deixa-me muito feliz, não só a título pessoal, mas também a título daquilo que é a área profissional em que me movo, que é a área da música, da música clássica, da música erudita”.
Quanto ao valor de 70 mil euros do prémio, ainda não pensara no destino a dar ao dinheiro, como confessou à Lusa, mas “seguramente haverá muita maneira de o fazer desaparecer”. Talvez ajude a aumentar a sua discografia e o património musical português.
[Luís Tinoco] é um dos principais compositores europeus, de fértil imaginação, domínio técnico e ouvido aventuroso, capaz de conceber mundos sonoros mágicos
Nicola LeFanu – antiga professora do King’s College e da York University,
Nas notas que acompanham a edição em disco de Alepo e outros silêncios, a compositora britânica Nicola LeFanu, uma das mais destacadas criadoras dos últimos 40 anos, antiga professora do King’s College e da York University, estabelece um curto mas precioso guia pela expressão e pelas obras de Luís Tinoco, não hesitando em considerá-lo “um dos principais compositores europeus”, de “fértil imaginação, domínio técnico e ouvido aventuroso”, capaz de “conceber mundos sonoros mágicos” para quem o ouve. Assim é.