Dias a fio de incerteza, mas sem “nunca parar”, nem “deixar de acreditar”, num constante “fazer e desfazer” da programação, ajustando-a à “nova realidade”. Não foi fácil, mas o “esforço” de toda a equipa valeu a pena. Aí está, como assinala o calendário há quase quatro décadas para começar julho, o Festival de Teatro de Almada (FTA), que de 3 a 26 vai apresentar 17 criações em vários espaços da cidade da outra margem e no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Uma “grande alegria”, diz ao JL Rodrigo Francisco (RF), dramaturgo e encenador, diretor do FTA e da Companhia de Teatro de Almada (CTA), que o organiza com o apoio da Câmara Municipal de Almada. “No início de abril, chegámos a pensar que não seria possível, mas conseguimos”.
O homenageado deste ano é Rui Mendes, um dos nomes de referência da cena portuguesa, com mais de meio século de carreira no teatro, no cinema e televisão. A exposição “O ator que queria ser sinaleiro” vai evocar o seu percurso, que começou em 1956, com A Ilha do Tesouro, do Teatro do Girifalto. Estaria depois na criação do Teatro Moderno e do Grupo 4/Novo grupo, e passou por muitos palcos, tendo encenado na Cornucópia, no Teatro da Trindade ou no Teatro Nacional D. Maria II. Entrou em filmes como Francisca, de Manoel de Oliveira, e Abismos da Meia-Noite, de António Macedo, e protagonizou a série televisiva Duarte e Companhia. Concebida por José Manuel Castanheira, a mostra reúne ainda um conjunto de testemunhos de diferentes personalidades do teatro, mas também da literatura e da política. E são, de alguma maneira, coincidentes: “Todos falam do mestre, do ator e encenador, mas também do seu humanismo e da sua excelente personalidade. Foi muito gratificante e inspirador fazer esta homenagem”.
José Manuel Castanheira vai também apresentar uma exposição individual, O Sonho de J., que irá ficar patente ao público na galeria do Teatro Municipal Joaquim Benite (TMJB) até novembro.
Sinal de abertura: o que vem de Espaanha e de Itália
A programação tem uma forte representação de criações portuguesas, mas, apesar de fronteiras fechadas e muitas restrições por força da pandemia, ainda foi possível trazer a Almada espetáculos vindos “de fora” , honrando a vocação internacional do festival. “Com esta situação que vivemos, os discursos nacionalistas foram os primeiros a aparecer por todo o lado e achamos importante dar esse sinal de abertura, porque precisamos continuar a pensar a Europa como um todo”, salienta RF. “O FTA inscreve-se na tradição dos grandes festivais de teatro europeu do pós-guerra, como Avignon, que afirmaram-se como um contacto entre povos e culturas diferentes”.
De Espanha, virá Future Lovers, apresentado pela companhia madrilena La Tristura, a 17, no TMJB. “É um olhar sobre um grupo de jovens que faz uma festa de botellón, num parque de estacionamento de uma grande cidade, daquelas que agora são proibidas”, adianta RF. “É um espetáculo de uma grande beleza, porque parte dos diálogos de um grupo de jovens do séc. XXI e transporta-nos para a altura em que tivemos aquela idade, em que começámos a projetar a vida, as amizades mudam e pensamos no futuro”. Uma criação de Celso Giménez, “sem paternalismo”, o que o diretor do FTA considera muito importante: “ É perigoso quando, nas nossas sociedades, se começam a pôr os velhos contra os novos, os ricos contra os pobres, os pretos contra os brancos, como vemos. Estamos a precisar todos de mais calma e bom senso”.
Também de Espanha, virá um “espetáculo de denúncia”, Rebota rebota y en tu cara explota, sobre a violência sobre as mulheres, da dupla catalã Agnès Mateus e Quim Tarrida, de 22 a 26, no Cine-Teatro da Academia Almadense. “Nesta performance, Agnès Mateus, que já passou pelos Fura del Baus, usa o humor para desmontar a linguagem, os mitos populares ou o imaginário do Walt Disney e as formas como as mulheres são secundarizadas”, diz RF.
Já de Itália, virá um discípulo de Dario Fo, Mario Pirovano, para abordar outro tema marcante da atualidade, a “herança colonial”. Johan Padan a la descoverta de le Americhe (de 15 a 19, na Incrível Almadense) parte justamente de um texto do dramaturgo e Nobel da Literatura, encomendado para a Expo Sevilha, em 1992. E que quando subiu à cena, foi um “escândalo”, lembra RF: “Em vez de celebrar a chegada de Cristóvão Colombo à América, Fo desmontou todo o sistema de aniquilamento, matança e rapina dos conquistadores, a partir de um pícaro que para fugir à Inquisição embarca na primeira nau que está a partir, justamente a de Colombo, e vai passar por uma série de aventuras rocambolescas, denunciando o que foi o império espanhol”. Mario Pirovano vai estar em cena sozinho, falando uma língua que não existe, essencialmente onomatopaica, o gramelo, mas “consegue uma tal expressividade” que dispensa legendas, como garante RF. “É a redução do teatro à sua expressão mais simples, um ator, um texto e o espectador, mas ainda assim consegue pôr-nos no meio de um furacão”.
O prazer de voltar ao palco
A abertura do Festival é a 3, no TMJB, com a estreia do novo espetáculo do Teatro Experimental de Cascais (TEC), Bruscamente no Verão Passado, de Tennessee Williams, com encenação de Carlos Avilez. “Era uma peça que há muito queria fazer”, diz ao JL o diretor do TEC, que antes já tinha trabalhado o “universo” do dramaturgo norte-americano, com O Comboio da Madrugada e Doce Pássaro da Juventude: “É um autor que me fascina, com muita coragem. Esta peça esteve proibida antes do 25 de Abril, era um objeto desejado e cá estou finalmente a fazê-la e a trabalhar com um elenco muito bom”.
A interpretação é de Manuela Couto, Bárbara Branco, Bernardo Souto, João Gaspar, Teresa Corte-Real, Luísa Salgueiro e Lídia Muñoz. A peça iria estrear a 27 de março, se não fosse apanhada pela pandemia. E agora, “mascarados”, deitaram “mãos desinfetadas” de novo aos ensaios para esta estreia no FTA, “numa edição tão especial” que ainda mais reforça a sua “responsabilidade”. E Avilez espera que “não se tenha perdido toda a energia e força ”que a peça envolve. Depois de dois meses em casa, parado, o encenador saúda a “liberdade” e o “prazer” de poder voltar a estar no palco: “É verdadeiramente voltar à nossa vida”.
Levar a tragédia a brincar
A Comuna também vai estrear a Almada, a 16 (Fórum Romeu Correia), uma comédia de Molière, As Artimanhas de Scapin, encenada por João Mota. E porquê Molière, agora, em plena pandemia? “Nada melhor do que fazer rir e brincar, nesta altura. Porque já não aguentamos mais ficar em casa e tudo isto. Se não tivermos sentido do humor, corremos o perigo de depressão”, diz o encenador. “Esta é uma peça um pouco diferente das outras, todas espantosas, que Molière escreveu dois anos antes de morrer e a partir de uma peça de Terêncio. E faz um a crítica tremenda à justiça, à burocracia, aos mercadores, mais tarde os burgueses, abordando as relações entre pais e filhos, os problemas das mulheres e tantos outros que ainda hoje encontramos na nossa sociedade”.
João Mota confessa-se daqueles que adoram as tragédias, os dramas, mas assume que lhe está a dar imenso prazer “brincar com o disparate” com este Molière que, aliás, situa no presente, na sua encenação: “Como se fosse hoje na rua. E tem personagens de 70, 40 e 20 anos, perpassando várias gerações porque acho essencial trabalhar o novo com o velho, acabando com essa charneira. Na Comuna somos todos iguais, novos e velhos, mestres e aprendizes”. Em cena, vão estar Carlos Paulo, Daniela Santos, Gonçalo Botelho, Hugo Franco, ou Patrícia Fonseca, entre outros.
A decisão de levar à cena As artimanhas de Scapin foi tomada agora e estão a ensaiar na sala da companhia, literalmente fechados e isolados, por causa das obras em curso na Praça de Espanha. “Só nós, ligados à arte, ao futuro, podíamos embarcar nesta viagem”, garante o diretor da Comuna. “Temos de saltar o arame para entrar e sair do teatro, mas tomamos todos os cuidados, medimos a temperatura. Temos pouco tempo para ensaiar, porque começámos apenas no princípio de junho, mas não é por ser difícil que vamos cruzar os braços”. Uma questão de “exemplo”, porque a “época é complicada” e é preciso “levar até as tragédias a brincar”, porque o teatro, a arte, assevera João Mota, “tem sempre a possibilidade de transgredir e transformar”. Em setembro, se as obras acabarem, As artimanhas estreará a 17, na “casa-cor-de-rosa”.
A cinco fusos horários de distância
A terceira estreia, a 16, no Cine-Teatro da Academia Almadense, é a de Instruções para Abolir o Natal, de Michael Mackenzie, a nova produção da Acta, Companhia de Teatro do Algarve, dirigida por Luís Vicente, que irá contracenar com Sara Mendes Vicente. A encenação é de Isabel dos Santos e não é o seu “primeiro encontro” com o dramaturgo, canadiano de origem inglesa, que tal como ela, vive em Montreal. Em 2001 já tinha encenado também para a ACTA, em Faro, um dos seus textos mais famosos, A Baronesa e a Porca. “O que me interpela na escrita de Mackenzie é o rigor histórico e factual com que sempre aborda temas que trata, a tensão teatral das suas narrativas, solidamente assentes em conflitos de camadas plurais, individuais e políticas”, adianta ao JL. “E sobretudo o traço fino que têm os seus personagens, dando aos atores a possibilidade de articular observação e pesquisa prévias, com o trabalho corporal e expressivo do palco”.
A atriz Sara Mendes Vicente, sublinha, teve que fazer uma “rigorosa pesquisa de terreno para vir a construir e fixar a linguagem corporal e o ritmo da elocução da sua personagem, Cassandra, jovem matemática brilhante com características do espectro autista/Asperger: “São textos que dão aos atores asas imensas para criar”. O projeto foi também “surpreendido” pelo coronavíru no início dos ensaios, “nesse momento teatral mágico – e eu tive que regressar a casa, a cinco fusos horários de distância do palco do Teatro Lethes e dos meus queridos atores e cúmplices de criação teatral. Então tricotámos os ensaios assim, à mão, malha atrás de malha, movidos pelo desejo de dizer e de ir até ao fim”. Um “permanente desafio”, acentua, em que contou “com uma equipa sólida, de grande talento e experiência, como o cenógrafo Jean-Guy Lecat, sem a qual nada seria possível”.
Isabel dos Santos e no início dos anos 80 tinha já fundado o Teatro Laboratório de Faro. Depois rumou ao Canadá para fazer um mestrado em teatro, na Universidade do Quebeque e ficou a viver em Montreal. Lá tem trabalhado em teatro e televisão, como atriz e encenadora, e tem desenvolvido uma intensa atividade cultural e política. De 2005 a 2009 foi vereadora da Câmara de Montreal, pelo arrondissement conhecido como “bairro dos artistas e berço da comunidade portuguesa”. Coordenou então vários projetos culturais e, realça, “continuo implicada na vida pública da minha cidade”, sendo designadamente copresidente da Comissão da Cidadania Cultural.
Retrato do teatro português
Tiago Rodrigues, com By Heart, a 4, no Cine-Teatro da Academia Almadense (CAIA); Raquel Castro com Turma de 95, a 4, no Teatro Estúdio António Assunção (TEAA); A Criada Zerlina, de Hermann Broch, interpretada por Luísa Cruz e encenação de João Botelho, a 22, no Fórum Romeu Correia (FRM); Castro, a nova produção do Teatro Nacional S. João, encenada por Nuno Cardoso, a partir de António Ferreira, a 9, TMJB; O Mundo é Redondo, dirigido por António Pires e texto de Gertrude Stein, pelo Teatro do Bairro, a 4 FRC, Uma Solidão Demasiado Ruidosa, de Bohumil Hrabal, uma criação de António Simão para os Artistas Unidos, a 10, na Incrível Almadense (IA); A Grande Emissão do Mundo Português, encenação de Isabel Craveiro, do Teatrão, a 3, IA; Turismo, de Tiago Correia, do coletivo A Turma, a 24, no TNJB; e O Criado, de Robin Maugham, encenação de André Murraças, a 25, na IA, são outras propostas de criadores nacionais.
“Vamos ter um verdadeiro retrato do teatro português, com os teatros nacionais, as companhias independentes e jovens criadores. É uma preocupação nossa apresentar todas as vertentes da criação teatral”, diz Rodrigo Francisco. “E vamos ter espetáculos premiados e carimbados com um selo de qualidade”.
A CTA, por seu lado, irá repor Mártir, de Marius von Mayenburg, com encenação do próprio Rodrigo Francisco, a 3, na Sala Experimental do TMJB, e Viagem de Inverno, encenada por Nuno Carinhas a partir do texto da Nobel da Literatura Elfriede Jelinek, com interpretação de Ana Cris, Flávia Gusmão e Teresa Gafeira, a 11, no CCB.
A coreógrafa Madalena Victorino é a convidada deste ano de “O Sentido dos Mestres”, orientando o workshop em que irá dar as suas ‘lições’ sobre a sua arte, com a mestria que lhe é reconhecida. E como é habitual, haverá encontros com os criadores, nos dias úteis, às 18h, na esplanada, para conversar com o público. “É uma forma de nos reencontrarmos não só nos palcos, mas também cara a cara”, faz notar RF. “É um momento importante para todos os que criamos teatro, porque sem os espectadores o que fazemos não tem sentido”.
Um reencontro que o diretor do Festival de Almada espera que seja com muitos espectadores, mesmo sem ajuntamentos. As assinaturas para todos os espetáculos estão já à venda e os bilhetes avulsos podem depois ser adquiridos ao longo do festival.