Num belo texto sobre a obra de David de Almeida, Tomás Paredes, presidente da Associação Madrilena de Críticos de Arte, exalta o conceito da arte pura. Constrói, aliás, um título para a sua viagem: Arte pura, pura arte. Claro que esta indicação, em trocadilho, procura apenas sublinhar um vasto caminho percorrido por David de Almeida com obras austeras, despojadas, geométricas, entre as indagações que atravessam mitos insolúveis, arqueologias inomináveis, alquimias muitas vezes subjacentes à pele de um simples resto físico da memória. É curioso reparar no jogo de efeitos bem perto do esplendor das coisas e da sua raridade – ainda no discurso de Paredes, oferecendo ao artista um lugar idêntico ao dos operadores antigos. E fala da pureza associada à nudez, do cromatismo e do clamor da inocência. Recua a montante, como se o artista que analisa tivesse começado no neolítico, na linguagem dos signos, dos sulcos, das grafias primitivas ou gravuras rupestres. Contextualiza e caracteriza a obra de David de Almeida na base da abstração lírica, evocando o minimalismo, o purismo, a essência. David, contudo, não se deixa circunscrever apenas ao conceito minimal. Ele também interpreta uma certa atitude de amor pela vida, paixão ou ternura ou lucidez, em parte como acontece no reflexo dos espelhos, nós mesmos voltando de lugares habitados por uma luz inexplicável, clima que parece transcender a impura associação de materiais sempre perto de nós, sem metafísica.
A pureza da linguagem impura
A redução da pintura aos seus elementos qualificativos, quase exclusivamente a cor, aconteceu sobretudo com o experimentalismo do século XX. A desconstrução do sistema de regras técnicas e convenções, sob discutíveis descobertas estéticas, foi deixando a nu um “esqueleto” seccionado: linhas por um lado, cores e texturas por outro. Tudo era posto em causa, as ideias fervilhavam. A pintura, enquanto género, evaporou-se ou foi desdobrada em fragmentos reconduzíveis a mundos mais simples (afinal e ainda bem complexos) como nos foi revelado por Paul Klee. O ponto. A linha. A cor. Daí resultavam vários caminhos de refundação da pintura – e o próprio Klee o demonstrou através de exercícios em forma de obras.
Podemos dizer, à medida que as formas se nivelam, em antecipação à anorexia do corpo humano, mais elas se purificam, se despem de adereços e bolores. Hoje sabemos, contudo, que o problema não se coloca dessa maneira. E David de Almeida tem trabalhado para se esclarecer a si mesmo e nos avisar: quando evoca Fontana e instala um corte numa matéria de fundo, esse elementar ato vital não é mais puro do que a representação dele. São apenas realidades diferentes.
Quando se fala de clareza, não se indica nem purismo nem obviedade. David não abdica de uma dimensão artesanal, da alquimia de vários materiais pouco ou nada ortodoxos, prefere enfrentar as indiciações do mistério, da magia, da emoção.
Depurações com mácula, memória primitiva
Entre sucessivas depurações, o artista tem procurado, pela essencialidade das formas, implementar um trabalho multidisciplinar, como mestre da gravura, como escultor, pintor, desenhador – exigente mas flexível, sólido e também frágil. Define o quadrado, finge a ardósia, deixa-nos uma singela paleta de cores para a nossa escolha. Repete o quadrado, como tampa invertida de moldura fina, e enche esse espaço paradigmático com uma matéria acimentada, acinzentada, no centro da qual, re-entrante, um suporte vulgar, entre pinceladas e raspagens, nos oferece a ideia de algum reflexo, espelho improcedente onde nada é recebido nem refletido. Ao prosseguir essa técnica (pictórica, escultórica) abre a luz até um branco indecifrável e nele implanta, em baixo, totémica, metálica, o simulacro feminino do humano, sem rosto, sem cabeça. Aliás, o antropomorfismo de David passa apenas por soluções híbridas, despojadas, e pelo tratamento de memórias culturalmente diferentes, sobretudo nos casos em que o entrançado de vegetais secos simula um vestuário primitivo, travado ao alto, na coxa, e protegendo o sexo; em baixo há uma esfera esverdeada, tocada pela cor rosada do chão, e ninguém pode garantir a que desporto ou exorcismo pertence esse astro em miniatura.
Os povos primitivos são com frequência evocados, convocados: cabeça rudimentar, escultórica, resto da negritude de uma África onde o adobe persiste. Um fuste de tronco, pintado de branco quando nele suporta o apoio de certa cabeça ritualista. ainda parietal, confere a uma das mais inquietantes peças da exposição o seu fulgor fetichista. Ou o longo corte sobre a matéria ainda branda, corte em ângulo à esquerda, matriz de todas as escritas, propiciações de sobrevivência, marca de um poder degolador. E mais tarde, quiçá, as prensagens e cortes circulares sobre belos cartões obtidos através de pacientes reciclagens de matérias afins.
Haja em vista um outro lado arquitetural da obra de David de Almeida, habitações a lembrar a rusticidade geminada ou solta de casas ou aldeias alentejanas – absurdos mas humanos retângulos deitados numa terra tonalmente geminada com o céu, sem portas nem janelas. Tumulares e de brinquedo, essas figuras geométricas apontam também para a expressão do silêncio. Anunciam solidão, serenidade e morte.
? David de Almeida
Palácio Galveias, até 30 de janeiro 2011.
Terça a sexta-feira: das 10h às 19h. Sábado
e domingo: das 14h às 19h.