Eduardo Lourenço (EL) – uma figura única do pensamento, da cultura, da atividade criadora, da própria “vida” do nosso país. Com uma muito relevante intervenção permanente, desde a segunda metade da década de 40 do século passado, até quase ao fim da segunda metade da década de 10 deste século. Ou seja, desde os seus tempos de Coimbra, antes mesmo da edição, em 1949, de Heterodoxia I, livro inicial que deixa logo uma marca indelével, com a fundação e colaboração na Vértice, os debates do neorrealismo, etc. E até o seu estado de saúde, já em 2017/2018, não lhe permitir mais escrever, intervir em todo o tipo de iniciativas culturais ou no Conselho de Estado, que a convite do Presidente da República integrou desde o início de 2016.
Assim, durante mais de 70 anos EL seguiu, com permanente atenção crítica e interesse empenhado, a situação de Portugal, da Europa e do mundo, a literatura e as artes, as questões políticas, sociais, ambientais. Sobre tudo pensando e sentindo – e em Eduardo, como em Pessoa, o que “sente está pensando”; e o que pensa está sentindo… Sobre tudo escrevendo e/ou falando como só ele.
Durante mais de 70 anos, EL foi um “leitor absoluto”, um apaixonado melómano, um amante da pintura e do cinema (a sua primeira “catedral”, disse-me uma vez, foi a modesta sala da Amadora a que ia ver uns filmes, ainda aluno do Colégio Militar), um cidadão civicamente muito ativo que nunca deixou de estar presente e de nos dar um raro, brilhante e iluminador testemunho, na sua vastíssima obra escrita e em incontáveis intervenções orais.
Durante mais de 70 anos, pois, EL enriqueceu os seus contemporâneos, a língua portuguesa – grande escritor de ideia e “poeta do pensamento” –, o país, deixando-nos um legado ímpar. Que Portugal tem a estrita obrigação de – em proveito e benefício de todos nós – divulgar e honrar, de preservar no presente para, como estou certo acontecerá, se projetar no futuro. Para lá de muito louváveis iniciativas já em curso, anunciadas ou em preparação, da parte da “sociedade civil”, fará o Estado o que lhe compete nesse sentido? Veremos.
Como é óbvio, o JL tinha de assinalar devidamente o centenário de EL: pelas razões atrás expostas ou sugeridas, mas também pela sua profunda ligação a este jornal – e, permita-se-me dizê-lo, ligação a quem o criou, dirige e escreve estas linhas, que como muito poucos nos últimos 20 a 30 anos o acompanhou e beneficiou do convívio com esse querido amigo, raríssima figura humana que também era. De facto, EL foi nosso colaborador desde o nº 1, e no muito rico acervo do JL têm posição de topo quer os seus numerosos trabalhos originais, quer os ainda mais numerosos textos e testemunhos sobre a sua obra, além de entrevistas, notícias, etc.
Por exemplo, só capas de que EL é “tema” principal, ou destacado, são mais de uma dúzia (ver abaixo reprodução de algumas), e aquando da sua morte dedicamos-lhe uma edição de linha inteira (nº 1310, de 16/12/2020, para o qual remeto), o que antes sucedeu apenas com José Saramago, por ocasião do Prémio Nobel. E nesse nº anotamos que só na sua coluna “À margem”, iniciada em 2016, publicamos 52 textos – graças à inestimável colaboração de João Nuno Alçada, a quem, mais do que a qualquer outra pessoa, a preservação e divulgação de parte da obra de EL deve imenso ou tudo, e que uma vez mais colaborou connosco na publicação dos Inéditos que se seguem.
A ideia inicial desta edição do centenário era termos um substancial destacável com uma seleção de alguns dos referidos textos aqui dados a lume, de EL ou sobre ele, que daria uma significativa ideia da grandeza, qualidade e diversidade da sua obra, em simultâneo constituindo um bom instrumento de trabalho para os estudiosos. Porém, não conseguimos nenhum apoio que o permitisse faer, por isso se reduzindo-se essa parte às páginas finais da de qualquer modo ampla, e julgo que magnífica(s) matéria(s) que lhe dedicamos.
Após o significativo testemunho do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, impõe-se destacar os inéditos de Eduardo, entre os quais avulta “Crença/Descrença”. Que constitui uma profunda e sentida reflexão/meditação sobre a Fé, como e porquê a perdeu (se, de facto, alguma vez a perdeu…), o homem que me lembro bem de, numa longa conversa/entrevista em Vence, quando a certa altura lhe perguntei “se era católico ou agnóstico”, me disse que a minha pergunta não tinha resposta, mas que era inalterável o seu “enraizamento no cristianismo”. E depois, com uma visível e para mim surpreendente emoção, acrescentou:
“A coisa mais importante, mais fundamental, que me aconteceu, foi ter nascido cristão. Ser cristão é um destino. Com todas as consequências que isso tem e implica. Quando a pessoa ainda não tem consciência de si já se banhou na água simbólica do batismo – e isso é indelével. Sou, cada vez mais, um cristão.”
A relevância daquele texto justifica – ou até ‘impõe’ – que o analise, sobre ele se pronuncie, algum credenciado teólogo, o que espero possa vir a acontecer. Antes dele, apenas por razões ligadas à paginação, publicamos, também inédito, dois dos muitos artigos que EL foi escrevendo, durante a ditadura, por necessidade de dar corpo a um imperativo de consciência, embora soubesse da impossibilidade de o publicar. Quer na imprensa, por causa da censura, quer por qualquer outro meio. Muito em particular o artigo sobre o presidente do Conselho, o próprio ditador, Oliveira Salazar: vir a público levaria EL a ser preso pela polícia política, como aliás lhe aconteceu num dos seus regressos a Portugal.
Entre parêntesis, e já que falo nisto, saliento que essa faceta da vida e escrita de Eduardo é das menos estudadas ou mesmo conhecidas. E, no entanto, parte não despicienda do que escreveu, sobretudo após o 25 de Abril, foram pequenos ensaios, opiniões, análises, artigos, sempre com o fulgor que imprimia a tudo, para intervir na vida pública. Mormente na política, sendo uma voz naturalmente respeitadíssima, em particular pelos principais responsáveis do país nos seus vários setores.
A este propósito, refira-se que se entre os cerca de 30 títulos de EL editados pela Gradiva está um, Crónicas quase marcianas, que reúne o que a meu pedido escreveu na VISÃO, entre 1993 e 2007. E refira-se que, sendo justo salientar a importância da edição pela Fundação Gulbenkian dos 13 volumes das Obras Completas de Eduardo Lourenço, é excessivo classificá-las como “completas”, dado não incluirem textos da sua amplíssima colaboração/intervenção cívica, e cultural, na imprensa. A Gulbenkian, aliás, também deve ser destacado, foi um “pilar” do último período de vida de EL, permitindo-lhe voltar a Portugal e aqui ter boas condições de trabalho, como seu administrador não executivo a partir de 2002, a convite de Rui Emílio Vilar; e apoiando-o, até ao fim, em todas as circunstâncias, mormente através de Guilherme d’Oliveira Martins.
Democrata, socialista não marxista, também neste domínio tem “histórias” formidáveis, algumas das quais, como muitas outras, aqui poderia ou quereria contar – se não se desse o caso de, mais uma vez, não o conseguir fazer… Mas creio ser quase meu dever acentuar que até ao fim Eduardo manteve a consciência e o empenhamento cívicos, como mostra a fotografia que, embora com dúvidas, nesta página publico. Falei-lhe, já estava bastante doente, na possibilidade de ir votar, nas legislativas de 2019, para o que passaria em sua casa a buscá-lo, como tantas e tantas vezes sucedeu ao longo dos anos. E embora isso lhe fosse custoso, pois além do mais já andava de cadeira de rodas, de imediato disse que sim. A foto, tirada discretamente, mostra-o junto à cabine de voto. Acrescendo uma coincidência: aí encontramos e estivemos à conversa com o nosso comum amigo Jorge Sampaio, que também, infelizmente, nessas elições votou pela última vez.
Mas continuando com os inéditos nesta edição, temos duas cartas, uma de Vergílio Ferreira, de que EL durante décadas foi muito próximo, e de Sophia de Mello Breyner – que publicamos na última página, ao lado da crónica de Gonçalo M. Tavares. E inéditas ainda são duas entradas do Diário de Eduardo, de que reunimos a quase totalidade de muitas outras que como inéditas ao longo do tempo aqui revelamos (e, já agora, também do Diário nada ‘consta’ nas Obras Completas).
De notar que na sua carta Sophia, avessa a “derrames” e sempre muito exigente e sincera nos seus juízos, considera ter sido EL quem melhor escreveu sobre a sua poesia, proporcionando-lhe uma assumida “alegria”. Aliás, isto mesmo acentuaram muitos outros grandes poetas, entre eles o também agora centenário Eugénio de Andrade: e, é verdade, ninguém mais do que Eduardo criadoramente escreveu sobre os grandes (e alguns não grandes) ficcionistas e poetas, viajou com um sábio e poético olhar por dentro das suas obras, iluminou-as, em alguns casos a uma “luz” completamente nova.
Porque Eduardo era ele próprio aquilo que mais desejava ser e sempre afirmava não ser: um verdadeiro excelente escritor. Como algumas vezes julgo ter ‘mostrado’ em intervenções públicas, fazendo uma leitura não branca de fragmentos de livros seus – a primeira vez, numa sessão no Grémio Literário promovida pelo José-Augusto França, perante a visível, e depois confessada, ‘surpresa’ do autor…
Voltando a esta edição, temos ainda diversos e interessantes textos, quer de nossos colunistas e cronistas habituais, quer de outros colaboradoes. Sem ‘distinções’ chamo apenas a atenção para que dois deles antecipam a saída de dois volumes decerto marcantes na bibliografia sobre EL: uma nova edição, abrangendo mais duas décadas da sua vida, da Fotobiografia organizada por Maria Manuel Baptista e Maria Manuela Cruzeiro, e um novo livro de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi, os titulares da Cátedra Eduardo Lourenço da Universidade de Bolonha.
E, em edições seguintes, haverá mais. Quer inéditos, quer, já na próxima, designadamente um texto de Helder Macedo. A não perder.