Sozinho, dificilmente avançaria, mas Diogo Infante, diretor artístico do Teatro da Trindade, conhece bem o seu trabalho, e desafiou-o a encenar Noite de Reis, de William Shakespeare. E Ricardo Neves-Neves (RNN) aceitou a proposta: “É um espetáculo que trabalha a comédia, um género que temos abordado muito no Teatro do Eléctrico e há um lado musical sempre presente. A primeira frase é sobre música e fala-se sobre a sua beleza e da voz cantada, o que sempre me interessa no meu trabalho.”
Noite de Reis sobe à cena a 26, no Trindade, com um elenco totalmente masculino, correspondendo à “tradição shakespeariana” – com os atores Adriano Luz, João Tempera, Manuel Marques, Marco Delgado e Ruben Madureira, entre outros -, e com uma orquestra inteiramente feminina, com direção de Mrika Sefa. “Todo o lado dionisíaco da música é assim protagonizado por mulheres, a contrariar o que acontecia nos séculos XV e XVI, na época de Shakespeare, em que não podiam aceder ao palco porque era sítio do pecado”, adianta RNN. “Na verdade, há mais mulheres do que homens na equipa, o que normalmente acontece nos nossos espetáculos.”
Entre atores, músicos, 34 em palco, técnicos de cena, cenografia, figurinos, produção, ao todo são mais de 50 os elementos que formam a equipa que RNN dirige. Nada a que não esteja habituado. No primeiro espetáculo que encenou, ainda com 19 anos, no Grupo de Teatro Amador de Quarteira, dirigiu mais de 40 atores. “Vem daí o vício”, comenta irónico. “Esse grupo foi fundado pelo jornalista José Matos Maia e pelo cantor lírico António Alvarinho, o meu primeiro formador. Daí a minha grande ligação com a ópera e a música no teatro.”
Tudo se liga. E está agora à frente de um Shakespeare musical. “Quando trabalhamos a banda sonora do espetáculo, o que nos importa é o que desperta na cena, no espectador”, salienta. “E independentemente do contexto em que a peça foi escrita, há referências de época e de hoje, a e a música pode ser do período antes de Shakespeare, como dos séculos XX e XXI. E temos música original composta por a Mrika Sefa, que já tinha colaborado antes connosco.”
Também cruza os tempos o enredo de Noite de Reis, sobre o amor, a identidade, o feminino e o masculino e seus estereótipos. “O texto de Shakespeare trabalha uma mentalidade que ainda existe no mundo. E ao nosso lado. Prova que o amor, a paixão, a atração sexual não corresponde necessariamente ao género, mas ao que a pessoa é”, afirma RNN. “Isso é muito interessante, se pensarmos que o texto tem mais de 400 anos, abordando estas questões de mulheres que sentem atração por mulheres e homens por homens, além de todos os códigos. E o que é claro é que todo o tipo de amor existe”. E apesar de quatro séculos volvidos, é um texto que continua a causar “incómodo” e “discussão.”
Ricardo Neves-Neves confessa, por outro lado, que teve algum “medo” ao pegar em Noite de Reis, uma das mais famosas e representadas comédias do dramaturgo. Fazer peças que toda a gente conhece, os clássicos, implica alguma coragem, porque são muitas vezes quase de ‘museu’. Mas eu não tenho essa relação com os textos, cuja natureza deve ser respeitada, mas não intocável”. E acrescenta, com ironia: “Até porque nem sabemos se, na verdade, foi Shakespeare quem os escreveu, conforme muitas teorias, ou se foram transformados ao longo do tempo. Nesse caso serei mais um a acrescentar ou a estragar alguma coisa.”
Noite de Reis vai estar em cena no Trindade até 19 de março. Quase dois meses em cartaz, o que hoje é a exceção. “Perdeu-se a noção de estabilidade no teatro. Seja a profissão em si, seja o espaço de ensaios, tudo é provisório. Até há espetáculos que estreiam e terminam na mesma semana”, observa o encenador e diretor do Teatro do Eléctrico que, apesar de quase 15 anos de existência, continua sem ter um espaço próprio. Não esconde a sua satisfação com a possibilidade de uma carreira longa do espetáculo, que a seguir será apresentado em Coimbra, a 14 de abril, e em Loulé, em setembro. E gostaria, de resto, que circulasse e chegasse a outros palcos do país: “Vai dar-nos muita vontade de continuar ”, garante. “O público é fundamental para o que construímos e desenvolvemos, sobretudo quando estamos a trabalhar comédias. E a repetição tem uma importância fundamental. Percebemo-lo quando fizemos Alice no País das Maravilhas, que também teve uma carreira longa, e o que estreámos em Lisboa e terminámos no Porto, tinha a mesma estrutura e natureza, mas era completamente diferente. E para melhor.”
A orquestra, de igual modo, para a infância, é a criação que o Teatro do Eléctrico vai entretanto começar a preparar, “com atores que são músicos ou músicos que são atores”, a partir do repertório clássico para o público infantojuvenil, como Prokofiev e Mozart. Será apresentado no Algarve, em abril, em Loulé, Quarteira, Almancil e outros locais. E, a seguir, a companhia irá estrear o Livro de Pantagruel, “a partir da ideia de canibalismo, da relação com o corpo”, com música de Filipe Raposo, e a orquestra Metropolitana, dirigida por Pedro Neves, que estreará em julho no Teatro S. Luiz, em Lisboa.