“Tentar” é o seu verbo preferido e um princípio de teatro e de vida. A “tentativa” ” de João Mota, 79 anos, ator e encenador, é agora interpretar A Casa de Bernarda Alba, de Federico García Lorca, numa encenação de Hugo Franco, que irá estrear a 22, no palco de A Comuna, em Lisboa.
João Mota nasceu em Tomar a 22 de outubro de 1942. Começou aos dez anos, no teatro radiofónico, a fazer Os Cinco, na Emissora Nacional. A sua aventura como ator continuaria na televisão, onde, aos 14, fez O Mar, de Miguel Torga, com Germana Tângere Catarina Avelar. E, aos 15, estrear-se-ia no Teatro Nacional D. Maria II (TNDMII), em O Processo de Jesus. Um momento “com um lado mágico difícil de descrever, de mistura com o medo”, recorda. Mas, diz ele, é “preciso ter coragem para a aventura da vida.”
Ficou na companhia Amélia Rey-Colaço/Robles Monteiro, como profissional, uma década, tendo depois trabalhado com Ribeirinho e Laura Alves, e participado em filmes como A Promessa, de António Macedo e O Bem Amado, de Fernando Matos Silva. Fundaria, com outros atores, Os Bonecreiros e em 1972 A Comuna – Teatro de Pesquisa, de que é diretor, uma companhia a que imprimiu uma identidade, uma singularidade afirmada em cada espectáculo das muitas dezenas que encenou ao correr dos anos.
Peter Brook, com quem estudou em Paris, no Centro Internacional de Pesquisa Teatral, é um dos seus “mestres”, faz questão de acentuar, tal como Adolfo Gutkin, na fundação Gulbenkian, e Arquimedes Sousa Santos, na Escola Superior de Educação pela Arte. A pedagogia teve sempre um papel importante no seu caminho. Durante 35 anos foi professor da Escola Superior de Teatro e Cinema. E criou também um curso n’A Comuna, que fez escola, e por onde passaram gerações de atores. Entre 2011 e 2015, seria igualmente diretor do TNDMII, onde considera ter deixado um sentido de “equipa”, de “coletivo”, e assim entende o trabalho teatral.
A casa de Bernarda Alba, que conta ainda com interpretação de Carlos Paulo, João Grosso, Francisco Pereira de Almeida, Gonçalo Botelho, Luís Garcia, Miguel Sermão e Rogério Vale, fica em cena até 23 de outubro. E, a seguir, João Mota irá encenar uma comédia de Feydeau e Woyzeck, de Büchner, uma peça de “grande atualidade”, ainda no âmbito da celebração, que decorre até maio do próximo ano, dos 50 anos d’A Comuna.
Jornal de Letras: Como sente este regresso ao palco como ator?
João Mota: Com uma grande alegria e, ao mesmo tempo, com temor.
Tantas décadas depois?
São maneiras diferentes de estar no teatro. O encenador procura a palavra justa, a partir das ideias para o espetáculo, o ator tem que ser preciso. É ele que cria. E para isso necessita de um poder de concentração, de atenção, para se poder revelar, transfigurar. Sempre acreditei na transfiguração. Talvez já esteja um pouco desabituado, porque há muitos anos que não faço grandes papéis como ator, apenas coisas pequeninas, daí um certo medo.
Não tinha saudades de estar em palco?
Sim. Gosto muito de ser ator. Encenar é mais abrangente, global, uma procura da unidade, de ligação entre os espaços, as pessoas, os artistas, os técnicos, os administrativos, o público. Mas o ator é o criador onde habita o texto.
O que o levou a querer transfigurar-se em Bernarda Alba?
Foi o Hugo Franco que me convenceu. Ele trabalha comigo há quase 30 anos, como assistente de encenação, ator, músico e já encenou várias peças. É muito bom. E quando decidiu fazer A Casa de Bernarda Alba fez muita questão que eu entrasse. Primeiro, disse-lhe que não, até porque estive algum tempo no hospital. Mas ele disse-me: “Vamos tentar”. E eu sempre gostei muito desse verbo. E estou a tentar (riso).
O feminino pelo masculino
Nunca tinha encenado esta peça de Lorca?
Não. Vi-a representada uma série de vezes, em França, Espanha e cá em Portugal, estudei-a e fiz exercícios na escola sobre ela. O Lorca é um grande poeta e autor de teatro.
Porquê a opção por um elenco exclusivamente masculino?
Quando se lê uma peça, somos leitores, tanto faz sermos homens como mulheres. O mesmo acontece com o fazer das personagens. Neste caso, seremos só homens. Mas não fazemos de mulheres…
Então?
Fazemos as personagens femininas como homens, com a sua organicidade e fragilidades. Aliás, não é original a peça ter um elenco apenas masculino. Isso já foi feito, por exemplo, em Espanha. E não mudámos nada no texto, que é absolutamente extraordinário e poético.
É um trabalho de ator desafiante mergulhar num universo de mulheres, construir uma personagem como Bernarda Alba?
Ela é como qualquer mãe ou qualquer pai que não teve uma vida fácil, uma mulher que sofre muito. Foi obrigada a tomar conta daquelas cinco filhas, quando o marido morreu. Poderia ter sido ela a morrer e seria o pai a cuidar delas. Não é fácil em qualquer dos casos e implica uma grande responsabilidade. E o interessante é a intriga, a barreira, o amor-ódio que existe entre elas. Mas poderiam ser eles, porque tudo aquilo existe na sociedade.
É uma peça que continua a falar para o tempo que vivemos?
É mesmo de hoje. Vivemos numa época muito difícil, quase uma selva, tanto económica como socialmente. Tem-se falado muito, por exemplo, da questão das escolas, da falta de professores, aqui e noutros países da Europa. É um problema que precisamos pensar seriamente. Porque sem educação, não há futuro. Esta peça não trata de educação, mas fala de futuro.
Continuar a acreditar
A educação é outra das suas frentes de trabalho. Que significado tem para si?
Por vezes, acho que gosto mais de ensinar do que de encenar.
Porquê?
Porque quando dou aulas, procuro, investigo e, com as dificuldades que temos, o tipo de concursos e apoios, muitas vezes, somos obrigados a fazer espetáculos sem tempo para essa pesquisa. Temos que correr para cumprir programas. Esse é um erro também do ensino. Os alunos sobretudo devem aprender a ser futuros homens e mulheres. É isso que importa, não os números.
Teve a preocupação de passar essa ideia a sucessivas gerações?
Mais uma vez, tentei (riso). Depois de ter estado na Guerra Colonial e feito teatro em Portugal, estive em Paris a trabalhar com Peter Brook, que foi um mentor para mim, e às vezes, eu dizia-lhe que não era capaz de fazer qualquer coisa e ele respondia-me sempre: “Há que tentar, João”. Mais tarde, Arquimedes Sousa Santos, outro dos meus mestres ao nível da pedagogia, dizia-me muitas vezes também que não bastava ter boas ideias, era preciso tentar fazê-las. Vivemos numa época em que se é contra os mestres, contra os velhos…
Em que sentido?
Sabe-se pouco, mas pensa-se que se sabe tudo e que se é original. Eu aprendi com os saberes adquiridos, os exemplos dos mestres e também com os jovens com quem sempre trabalhei. Sobretudo que é preciso tentar para ir avançando, mesmo cometendo erros, porque é com eles que vamos aprendendo.
Foi esse espírito que sempre o orientou no seu percurso no teatro, na criação de A Comuna?
E sempre com a inocência de acreditar. Tanto os jovens como os velhos, nós temos que continuar a acreditar.
Em quê?
Nos valores, na disciplina, no rigor. Devemos estar disponíveis e saber ouvir os outros. Também recolhermo-nos, estarmos connosco, ouvirmo-nos por dentro. O silêncio é essencial. E sonhar, não viver na lamúria. É preciso energia, revolta, saber dizer não, estar acordado para tudo o que nos rodeia, para o que muda na humanidade. Essa é a base de tudo, do que é ser ator, encenador, de como se encara e vive o teatro. A nossa função é abrir a visão do mundo e conhecer onde estamos e para onde vamos.