Cara Emília, tem aqui os comprimidos do seu pai, estão todos separadinhos por cores, por dias, por horas. Não o deixe ver muita televisão que fica ansioso e antes de o deitar cante-lhe uma canção ou conte-lhe uma história que ele gosta muito. Eu cantava muitas vezes canções de embalar da minha terra. Ele adorava. Até se ria, ele, que nunca se ri, como sabe. Deixei sopa feita no congelador para uma semana, daquela com nabo como o doutor gosta, é só para os primeiros dias enquanto não se habitua à sua casa. Quando ele fica assim muito irritado porque não encontra os seus óculos, relembre-lhe que os tem postos. É sempre assim. Até lhe acho graça, mesmo quando gritava de fúria. Ele acorda sempre pelas seis e meia, e ao pequeno-almoço pede sempre para beber café mas já sabe que ele não pode, fica muito excitado. Ponha-lhe umas gotinhas no leite morno e diga-lhe que é um galão do café do senhor Jorge e ele finge que acredita e bebe tudo. É muito importante deixá-lo vestir-se sozinho, só quando ele pede ajuda é que entra no quarto. Se perceber que ele se demora, arranje uma desculpa para lhe bater à porta e para ele não achar que entrou no quarto para o ajudar. Não o queremos rabugento o dia todo, ninguém o atura. Eu fazia sempre de conta para o ajudar a vestir-se. Esquecia-me de alguma bandeja, de alguma mantinha, pergunto-lhe como quer as torradinhas, se quer sempre com manteiga e doce ou só com manteiga.
Olhe, senhora, gostei muito de trabalhar para si, foram anos bons a cuidar do seu pai. Desculpe despedir-me assim a correr, a vida não escolhe o dia para a catástrofe, não é? E todos os minutos contam quando a tentamos resolver. Sabe que o seu pai tem exatamente a idade do meu? Até têm o mesmo mau feitio! É aquela geração, não é? Viram muito, sabem muito, e agora o mundo está assim… Tantas vezes passei serões a conversar com o seu pai sobre a minha terra… Ele tinha paciência para ouvir as minhas histórias. Isto, se não fosse hora do futebol, claro. Acho que o seu pai sabe mais sobre a minha família do que alguns conterrâneos meus. Por vezes até lhe falava na minha língua e eu até acho que ele percebia um bocadinho. Mas eu não lhe contei da guerra, nem o deixei ver telejornais desde que tudo isto começou, não vale a pena, coitadinho, se sabe que a guerra começou fica agitado e dorme mal.
Olhe, tem aqui também o pijama preferido dele. Ontem ainda lhe cosi as meias e lavei as camisas azuis, recusa-se a usar as brancas, diz que é para o vestirmos quando estiver morto. A minha filha já está em Portugal, conseguiu um voo de Varsóvia na sexta-feira, não faz ideia como lhe estou grata pela ajuda. Teve de mentir, está de oito meses e meio mas usou umas roupas largas e disse que tinha só cinco meses de gravidez para poder embarcar. Nem sabe o que rezei a viagem inteira para que tudo corresse bem, mas já cá está, valha-nos deus, já foi ao médico, já conseguiu falar com o marido e estão todos bem.
Hoje chegam as minhas sobrinhas e as minhas primas já lhes arranjei um quartinho ali para os lados de Setúbal. Estou a ajudá-las com as coisas práticas. Uma amiga minha russa é que lhes está a ensinar português, abriu uma escola na sua sala de jantar e todos os dias das sete às oito da noite dá aulas a quem quiser. Amanhã vou com eles tratar dos papeis lá no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras para poderem trabalhar enquanto cá estão e poderem ter acesso à Segurança Social. Não posso dizer SEF que o meu marido fica doente… Já viu… há um ano acontecia aquela tragédia ao Homeniuk… agora podemos todos entrar… umas vezes somos irmãos, outras somos loucos, outras perigosíssimos, tudo depende de quem aguenta as fronteiras da Europa com os outros, não é?
Olhe, mas o que é que eu estou para aqui a dizer, não vamos agora falar de política que a senhora não está com tempo, eu sei, e tem lá o seu almoço com as suas amigas lá no clube de Monsanto, não é? Dê um abraço à Dona Joana, é um amor de pessoa, vou ter saudades dela. Ah, e já agora diga-lhe que a minha sobrinha mais velha é arquiteta mas também é uma ótima jardineira, se ela precisar, ela faz tudo… e é ótima rapariga, anda desconsolada, deixou lá o namorado, faz-lhe bem arranjar emprego vida nova depressa. Agora só falta mesmo o meu pai. Tem 95 anos e insiste que quer lá ficar. Já não está muito capaz, sabe como é. Toda a vida viveu naquela casa e não há maneira de o tirarmos de lá. Diz que enterrou ali ao fundo da rua a nossa mãe, o seu pai, o seu avô, a família toda está ali. Diz que tem de combater ao lado do genro e do neto. E ninguém o consegue demover. Vou ter de lá ir eu. Se o meu marido vai, fica lá, e eu tenho mais influência sobre o meu pai, ele não ouve ninguém. Na verdade, ele é meio surdo, mal pode andar, o pobre coitado, vê mal do olho esquerdo, não dá conta de si mas insiste em fazer tudo sozinho e depois cai, aleija-se, fica cheio de mazelas, não sabe usar o telemóvel que lhe deixaram, quando tenta não tem rede, uma aflição…
Que triste vida a nossa, não é? E que triste acabar os dias a ver a aldeia onde nasceu destruída. A nossa casa está intacta, mas é a única, até parece de propósito. Mas eu não durmo bem, senhora, ele não tem medo de nada e se lhe dá na cabeça ainda se junta aos mais novos e vai para a frente de batalha. Ou aparecem-lhe soldados à porta e ele é bem capaz de os insultar e de os desafiar para um combate. Enfim… cada um tem a sua missão na vida, e esta é a minha, cuidar do seu pai, agora do meu.
Já tenho o bilhete para partir amanhã para a Polónia e tenho boleia até Medyka para atravessar a fronteira a pé até à Ucrânia. A Guarda das Fronteiras da Polónia fechou algumas pistas de carros para fazer mais corredores pedestres e dizem-me que por ali está tudo muito bem organizado e tenho companhia e ajuda para o resto da viagem. Não é a cidade mais próxima mas é a mais segura. São uns 300 quilómetros, é coisa pouca. Estou em contacto com um vizinho que já me disse que na primeira oportunidade arranja-nos o seu carro ou alguém que ajuda parte do caminho para tirarmos de lá o meu pai.
Ou o convenço a partir, ou o meto à força num autocarro para atravessar a fronteira ou fico lá eu a tomar conta dele, o que é que uma pessoa pode fazer? A senhora também não ia deixar o seu pai sozinho, não é?