Foi o documentário de Leonor Noivo, Outras Cartas ou o Amor Inventado que, de alguma maneira, as despertou para as Novas Cartas Portuguesas, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, uma obra publicada em 1972, que partia das Cartas Portuguesas, de Mariana Alcoforado, para falar da condição das mulheres, e que foi proibida pelo Estado Novo e levou as autoras ao banco dos réus, processadas e acusadas de ofensas à moral e aos costumes.
Leonor Buescu, 27 anos, e Catarina Rôlo Salgueiro, 30 anos, decidiram levar as Novas Cartas à cena. Porém, não meteram apenas as mãos à obra, não se limitaram a fazer uma seleção dos textos, puseram também os pés ao caminho para consultar o processo das “Três Marias”, no Campus da Justiça. E a partir das leituras e da investigação, criaram Ainda Marianas, uma produção da companhia Os Possessos que irá estrear amanhã, quinta-feira, 21, no Teatro Nacional D. Maria (TNDMII). Um espetáculo “partilhado e pensado desde o início a duas cabeças”, em que assinam em conjunto a dramaturgia e a encenação. Em palco vão estar as atrizes Ana Baptista, Rita Cabaço e Teresa Coutinho. A cenografia e os figurinos são de Ângela Rocha.
A peça estará em cena no TNDMII até 8 de maio. Será depois apresentado a 11 de junho, n’A Oficina, em Guimarães, coprodutora do espetáculo, em Almada, no Funchal e em outras salas do país.
Jornal de Letras: O que as levou a pôr em cena as Novas Cartas Portuguesas?
Leonor Buescu (LB): Sabíamos da história à volta do livro, da proibição, d processo das “Três Marias”, mas nunca tínhamos pegado nele para o ler.
Catarina Rôlo Salgueiro (CRS): Quando vi o filme da Leonor Noivo, apercebi-me dessa lacuna e pensei que era incrível que um livro tão importante não fosse dado nas escolas. Depois de o ler, fiquei empolgada e entusiasmada. E falei com a Leonor, que também está comigo n’Os Possessos.
LB: Numa conversa com a Catarina, para preparar os próximos espetáculos da companhia, pensámos se seria possível fazê-lo em palco e se nos interessava. E, obviamente interessou.
CRS: Na altura em que saiu, fizeram-se alguns espetáculos, sobretudo em França, mas cá julgo que ainda não se tinha pegado nele numa linguagem teatral.
O que fundamentalmente as interessou nas Novas Cartas?
CRS: Desde logo a questão da autoria, de terem mantido no anonimato quem escreveu o quê. E as escritoras abdicaram dela em prole de uma coisa maior, de um livro que desafiou o regime, não só pela linguagem, mas pelos temas que aborda. Na altura, o próprio facto de ser de três mulheres deve ter tido peso em todo o processo que o envolveu.
LB: Em primeiro lugar, acho que é literariamente interessantíssimo, cruzando a prosa, o poético, o epistolar, sendo um conjunto de textos muito diferentes entre si. Mas também a forma como Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa os entreteceram, numa comunhão a três, pegando em Mariana Alcoforado, no mote das suas Cartas Portuguesas, para uma reinvenção, compondo a figura da freira de Beja em várias possibilidades de outras Marianas.
Daí o nome que deram ao vosso espetáculo: Ainda Marianas?
LB: Sim. Porque precisamente não fala de uma condição feminina, mas de múltiplas. Essa é uma das componentes de que gosto muito nas Novas Cartas, o modo como dão a heterogeneidade de se ser mulher. E, por outro lado, é espantoso o que aconteceu com o livro, a proibição, o facto de poder ter implicado que as autoras fossem para a prisão.
CRS: Se não tivesse havido o 25 de Abril, não sabemos se isso não teria acontecido. Na verdade, além de ser o livro que é, tudo o que o envolve é muito apaixonante.
LB: E foi muito impressionante mexer nesse processo histórico, em que o livro foi acusado de ser pornográfico e atentatório da moral pública. Interessou-nos também o lado de investigação documental, perceber como o livro não existe apenas como objeto literário, mas também político.
Como correu a investigação?
LB: Fomos, na realidade, um pouco à descoberta, sem saber o que encontraríamos. Lemos não só as Novas Cartas, mas também o trabalho de Ana Luísa Amaral sobre a obra e muita bibliografia suplementar para procurar pistas de trabalho. Depois, fizemos a pesquisa no Campus da Justiça, onde está o processo, que não está digitalizado.
CRS: E é pena que não esteja. Ou editado. Porque é importante aceder ao processo e dá-lo a conhecer. Realmente dá trabalho, anotar, transcrever. Mas valeu a pena.
LB: Foram muitas horas de transcrição manual. Um mergulho a fundo no processo. E descobrirmos todos aqueles depoimentos de defesa das Três Marias foi muito fascinante, sobretudo que tantas pessoas o tenham feito, declarando inacreditável a proibição do livro, evocando os muito anteriores casos de Flaubert, Baudelaire, Joyce… E entre esses testemunhos estão os de Alexandre O’Neill, David Mourão-Ferreira, Fernanda Botelho.
Esses testemunhos integram Ainda Marianas?
LB: Na dramaturgia, quisemos, antes de tudo, replicar a heterogeneidade do livro. Por isso usamos textos das Novas Cartas, mas também alguns testemunhos da defesa e partes do processo. Fizemos uma espécie de costura da documentação histórica e da parte literária.
BANDEIRA FEMINISTA
As Novas Cartas são consideradas uma obra fundadora do feminismo em Portugal. Isso é sublinhado em Ainda Marianas?
LB: Evidentemente que existiu essa motivação. E percebemos como houve na altura uma enorme repercussão internacional. O livro foi passado clandestinamente para França e teve o apoio de movimentos feministas de vários países e de personalidades como Simone de Beauvoir. E não apenas na Europa, houve também manifestações das feministas norte-americanas, protestos em Nova Iorque e em Los Angeles.
CRS: Foi uma bandeira. O julgamento das Três Marias foi considerado uma causa feminista internacional.
LB: Só nos apercebemos verdadeiramente dessa dimensão, da sua importância na História do feminismo, quando avançámos na investigação. Possivelmente ultrapassou até as expectativas das autoras. Aliás. Houve algum desentendimento entre elas, na medida em que Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno assumiram esse lado marcadamente feminista, enquanto Maria Velho da Costa afastou-se progressivamente dessa ideia, entendendo que não tinha sido escrito com esse objetivo.
E 50 anos depois, é um livro que continua a causar impacto em termos de mentalidades, da condição das mulheres?
CRS: Infelizmente… Se não soubéssemos que tinha sido escrito no início dos anos 70, acho que muitos daqueles textos podiam estar a sair como crónicas hoje, nos jornais.
LB: Não é um livro cristalizado. E, de qualquer maneira, não é demais salientar a sua qualidade literária, independentemente de todos esses aspetos, e que de alguma maneira ficou encapsulada, por força da vertente política. São realmente textos lindíssimos que ressoam até hoje. E não é só a questão feminina que é abordada no livro, mas também a guerra colonial, as dinâmicas de poder, o sistema político da altura. São mais de uma centena de textos e escolhemos 20, sabíamos que não podíamos abordar tudo.
CRS: Tivemos mesmo muita dificuldade em selecionar, porque de facto há muitos que faria todo o sentido incluirmos no espetáculo, porque falando da época em que foram escritos, também nos remetem automaticamente para os dias de hoje.
LB: Pensámos sobretudo no que poderia ser interessante em cena. E nunca esquecendo a figura de Mariana Alcoforado, quase um mito, a freira enclausurada que espera pelo seu amado e lhe escreve cartas, embora haja quem discuta a sua autoria, uma ideia estereotipada do feminino. Não podemos pensar o que é ser mulher hoje sem olhar para as Marianas do passado. A ideia de clausura e do feminino foi mesmo trabalhada pela Ângela Rocha na cenografia e nos figurinos.
Do ponto de vista da encenação, que preocupações houve?
CRS: Tratar o material documental de forma respeitadora, não queríamos deturpar o que aconteceu. Tentámos ser o mais fieis possível às transcrições e, ao mesmo tempo, sem nunca esquecer que é um espetáculo de teatro. Em relação ao livro, a preocupação foi realmente tentar abranger a diversidade de temas, com a consciência de que nunca seria possível fazer jus à obra.