É uma descida ao fundo do mar, à natureza escura onde a vida foi esculpida, com as suas insondáveis águas e seres quase líquidos, formas iniciais que atravessam o tempo e se revelam à luz, ao olhar rente ao chão, que se direciona para baixo. E é esse olhar que Hugo Canoilas propõe aos visitantes de Moldada na Escuridão, patente ao público até 30 de maio, na Galeria de Exposições Temporárias do Museu Gulbenkian. “Na arte, quando tentamos criar novas relações ou condições de perceção, podemos levar a pequenas diferenças, de uma forma alargada, no modo de olhar e de estarmos uns com os outros”, sublinha ao JL.
Moldada na Escuridão, com curadoria de Rita Fabiana, é uma instalação especialmente criada a convite da Gulbenkian e apresenta um conjunto de obras em vidro, têxteis, novos materiais que tem explorado neste trabalho, que desenvolve desde 2020.
Hugo Canoilas nasceu em 1977, fez o curso de pintura na ESAD, Caldas da Rainha, e um mestrado no Royal College of Art de Londres. Começou a expor em 2000 e rapidamente se afirmou como um dos mais importantes nomes da cena artística portuguesa. Entre as suas recentes exposições, destacam-se On the Extremes of Good and Evil, no Museu Mumok, na Áustria, e Pólipos Cnidários Reparados pelo Olhar do Observador, em 2021, no Museu de Serralves, em que se iniciou o seu mergulho nas profundezas oceânicas, trazendo à superfície da sua arte as questões ecológicas. Projeto de um ecossistema artístico e que corresponde a uma “metamorfose” num percurso que já leva mais de duas décadas, na pintura, escultura, instalação, performance, com grande abertura aos textos e aos grandes temas da agenda contemporânea.
E tudo começou por um completo “fascínio “pelas pinturas rupestres. Não por acaso, está a desenvolver, desde 2018, o projeto A Gruta, numa cave da sua galeria em Lisboa, onde já convidou artistas como Szófia Canoilas, Vasco Costa, Sílvia das Fadas, Filipe Feijão, Katharina Höglinger, a deixarem inscrito o seu trabalho. Na Quadrado Azul, Hugo Canoilas expõe atualmente, com Willem Weismann, trabalhos recentes na mostra Flotsam & Jetsam.
Entretanto, hoje à tarde, o artista faz uma visita guiada a Moldada na Escuridão e, no âmbito da exposição, será exibido, a 25, no Grande Auditório, o filme Theodora or the Progress, do coletivo Alpina Huus, seguido de um debate com a participação de Canoilas, Elise Lammer e Chus Martínez, moderado por Rita Fabiana.
Jornal de Letras: Com Moldada na Escuridão é uma viagem pela arte ao início da vida na Terra que propõe?
Hugo Canoilas: O fundo do mar é um espaço de liberdade poética e artística. Rachel Carson, uma bióloga marinha, que foi pioneira na chamada de atenção para as questões ambientais, escreveu, em 1951, uma explicação sobre a formação do planeta, como a crosta terrestre, as montanhas e bacias do mar foram esculpidas, na escuridão. É uma imagem muito bonita, que escolhemos para título da exposição e traduzimos esse texto, pela primeira vez para português, e publicámos no catálogo. Ela explica a evolução, como passaram dois milhões de anos, e no fim, o mar está em nós, porque os mesmos componentes químicos estão no nosso sangue, nos nossos ossos.
Como descobriu esse texto?
Foi um artista holandês que mo passou, depois de ter escrito para uma revista sobre uma exposição que fiz no Mumok, em Viena. E fiquei fascinado. É um texto entre o poético e o científico, numa escrita maravilhosa, oferecendo imagens para podermos compreender o que não podemos ver. Esse modo por vezes muito especulativo está associado ao meu interesse nas profundezas do mar como espaço de maravilhamento.
Porquê?
Por ser o da criação do mundo, da descoberta de novas formas de vida. É como se víssemos uma coisa pela primeira vez, o que escapa ao constrangimento que nós, humanos, temos de tudo compartimentar e racionalizar. É preciso voltar a um certo estado de inocência para ver à nossa volta.
Artisticamente, como começou a interessar-se pelo fundo oceânico?
Foi progressivo. Talvez tenha começado por volta de 2012, em torno das pinturas paleontológicas que eu transformava, a partir desse imaginário, dessa estética que, nos anos 50, 60, tentava dar imagens à teoria evolucionista e que era a mesma linguagem que se usava na ficção científica, do ponto de vista das ilustrações. Recriava e refazia essas pinturas de grandes dimensões, porque tentavam representar os animais na sua escala, portanto por vezes tinham seis, oito metros. E as fontes gráficas que usava tinham sempre representações das primeiras formas de vida que foram marítimas, seres próximos de alforrecas, bivalves e por aí fora. Entretanto, começou a existir um discurso muito forte sobre os oceanos.
Sobre a necessidade de os conhecer e preservar?
Sim. Havia a ideia, muito ligada à tecnologia, ao sistema económico, de procurar, no espaço, novos planetas para onde se poderia ir viver, colonizar, extrair matérias-primas. E em sentido contrário, surge o pensamento de nos voltarmos para o interior, e sobretudo procurarmos novos modos de viver. É preciso conhecer melhor o nosso planeta, porque grande parte do fundo dos mares ainda está por descobrir. E há que olhar para dentro. Isso implica muitas forças que começam a trabalhar em conjunto, cientistas, da biologia marinha, da microbiologia, da filosofia, e outros, criando um campo, para mim, muito fértil em termos artísticos.
UM AGIR MAIS LIVRE
É produtiva para a arte a relação com a ciência?
Há efeitos positivos para a arte e para a biologia. Por outro lado, estão envolvidas ideias que ultrapassam o mar, por exemplo sobre classe, género. A microbiologia trouxe uma outra perceção do mundo em que vivemos, no sentido de sermos seres plurais. São novas camadas e possibilidades de leitura que se oferecem. Caso bem com esses desenvolvimentos e o meu trabalho acabou por seguir por aí. Sinto que cada vez crio mais em função de um agir mais livre. E em diálogo com os materiais e com uma grande abertura ao que vai acontecendo.
Também às questões ambientais?
Muita gente acredita que a arte pode criar uma nova sensibilidade para entendermos o humano e o não humano, o vivo e o não vivo, de outra maneira. Não acredito que possa ter um impacto direto e imediato, mas, por exemplo, Moldada na Escuridão implica uma consciência diferente do corpo.
Em que sentido?
As paredes estão parcialmente pintadas de preto, há luzes a apontar sobre os objetos, as pessoas entram e imediatamente têm que olhar para baixo. Se olhamos uma pintura que está na parede, o olhar é vertical, estritamente humano, enquanto o olhar para baixo pode ser animal e, ao mesmo tempo, é o olhar tecnológico, dos robôs que vão às profundidades do mar, onde não conseguimos ir, para mapear os fundos. Esse é também o olhar que, de alguma maneira, me forma, porque vou vendo algumas expedições com esses robôs, através de canais da Internet, e a sua visão acaba por influenciar também algumas decisões que posso tomar quando estou a criar as obras. Há a vontade de levar as pessoas a experimentar uma forma de olhar diferente.
SALTO NO ESCURO
A arte pode ser um fator de mudança?
E é um contraponto à tecnologia, sem negar a necessidade e o proveito que as tecnologias nos trazem, na medida em que podemos adicionar novas qualidades a um sistema que contabiliza quantidades. Na verdade, o racional é um rolo compressor que tudo comprime e o trabalho da arte tenta balancear o racional e o não racional no nosso quotidiano. Por isso, na exposição, oferecemos objetos, sons, cheiros, a possibilidade de tatear, de usar todos os sentidos e isso é muito importante, para lutar contra um sistema cada vez mais rápido. Moldada na Escuridão foi feita de forma a exigir um determinado tempo, uma relação do corpo com as coisas. É como se o tempo de quem vê se aproximasse mais do tempo de quem faz aquelas peças. Por outro lado, procurei que houvesse um movimento coletivo que envolvesse todos os que fizeram comigo a exposição. Por isso, peguei na equipa, nas obras e fomos fotografá-las nos jardins, para o catálogo.
Também levou as suas medusas de vidro até à praia da Foz do Arelho. Porquê?
Há qualquer coisa que acontece no momento em que as obras saem do atelier ou do local onde foram feitas e são mostradas. Eu antecipo esse sentimento, levando-as para outros lugares, para chegar com outro grau de consciência à exposição. Faço-o quase como um ritual de passagem. E aquelas a que chamo Poças ou Conchas, que apresento na exposição, surgiram, precisamente, desse ato de levar os vidros para a praia para perceber quão natural ou quão extraterrestres aqueles seres podiam ser. E ao juntar todas as peças, procurei que formassem pequenos ecossistemas, levando mais a fundo essa ideia de relação de cada entidade com outras criaturas, forças, objetos. Esse é o grande salto no escuro desta exposição.
METAMORFOSE ARTÍSTICA
Que seres são estes que habitam o seu fundo do mar?
São baseados nas alforrecas. Tenho um enorme fascínio por essas criaturas, das mais antigas que existem no nosso planeta. São, no meu entender, de uma beleza extrema e ao mesmo tempo oferecem uma imagem de perigo, causam medo. Essa é também uma boa imagem da relação com o mundo hoje. Não queremos ter sentimentos apocalípticos e, ao mesmo tempo, há um medo, uma nuvem escura que está a passar por cima de nós. Há um glaciar que vai derreter por completo em 2028 e vai acelerar tudo de uma forma incrível e uma guerra que não faz nenhum sentido. Por outro lado, a alforreca é um ser que sofre uma série de transformações e há até quem ache que é uma imagem da metamorfose que está a acontecer no meu trabalho.
E é?
É verdade. Sinto que há uma força que vem das novas gerações, que tem a ver com a potência de expressão das questões da ecologia, da fluidez sexual que também é dos corpos, das ideias, coisas que acho muito positivas. E não tenho medo nenhum de perder o que era tido como certo, no passado, mesmo no meu trabalho. Vou aprendendo e transformando-o em diálogo com essas pessoas, mais jovens. A escolha dos materiais, como o vidro ou a lã, é, por exemplo, uma influência direta da minha mulher, uma artista mais nova, Andreia Santana, uma das finalistas do Prémio EDP este ano. Realmente, já usufruí do reconhecimento do meu trabalho dentro das expectativas que a história de arte fundamentou, europeias, ocidentais. Agora, há uma explosão em micronarrativas, que são uma possibilidade de descobrirmos outra parte de nós e de nos exprimirmos de outra forma. Estou a passar por um processo altamente transformador. E sinto-me liberto.
O que procura nesses novos materiais?
Talvez não sejam associados ao universo do homem e sinto como se estivesse a começar de novo. A feltragem da lã, por exemplo, é um trabalho muito demorado. E diferente do vidro, meio alquímico. É uma forma de me conhecer também a mim próprio, através do interior que se torna exterior. E mostro esse trabalho, porque também sou eu.
PEGADAS ARTÍSTICAS
Um poema de Sophia de Mello Breyner também foi importante no trabalho que tem desenvolvido?
É muito bonito, fala de grutas, alforrecas, e que descobri justamente quando já estava a criar alforrecas e a construir uma gruta, na cave da Galeria Quadrado Azul. Passei esse poema à Rita Fabiana e ela até sugeriu um verso de Sophia, “Filhos da floresta e do mar”, que cheguei a pensar para título da exposição da Gulbenkian… (riso)
Mas como surgiu a ideia de criar A Gruta?
Acho que a primeira pintura que fiz a óleo foi um detalhe da caverna de Lascaux. Tinha uns 15 anos e sentia um enorme fascínio por pinturas rupestres. Mais tarde, um filme de Herzog reavivou a minha curiosidade. E comprei, na altura, um livro que dizia que não se sabia ao certo porque se faziam essas pinturas, mas que resultavam da expansão da consciência humana. Isso foi um clique e consegui fazer um arco no tempo com as questões que atravessam o pensamento contemporâneo. Ou seja, podem oferecer imagens da equidade de género, da relação horizontal com a Natureza, da veneração pelos elementos, sendo um gesto comunitário, possivelmente um ritual. Sobretudo com a revolução tecnológica em que a nossa subjetividade começa a ser substituída pela da máquina, achei muito interessante juntar pessoas com outros tipos de conhecimento, nessa caverna artificial.
Como foi construída?
Com materiais que encontrámos. É um sítio onde se entra com alguma dificuldade, não existe a ordem racional da arquitetura, as paredes são rugosas, mas onde vamos incorporando diferentes intervenções. E é escuro, só com ajuda de uma lanterna ou do telemóvel as conseguimos descobrir. No fundo, é como a crosta terrestre com pegadas humanas.
É um projeto que vai continuar?
A Gruta não tem estado aberta ao público por causa da pandemia, mas queria trazer pessoas de outras geografias. Agora virá um artista suíço que vai estar lá uns dias a pintar e depois espero que se possa mostrar em breve. O contacto com esses artistas e com a diversidade do que fazem tem sido muito importante para o meu trabalho. Evidentemente, é um projeto que depende da generosidade e de uma relação muito especial com a minha galeria.
Na Quadrado Azul, mostra atualmente algumas obras recentes com Willem Weismann. Como surgiu essa exposição?
Não conhecia Willem Weismann, falámos um pouco e percebi que, nas suas pinturas, ele lidava muito com a acumulação de lixo e a incapacidade de nós, humanos, pararmos de o produzir. Ele propôs que se chamasse Flotsam & Jetsam, que são termos ingleses para naufrágios e barcos, que acabam por deixar ou deitar ao mar muitos materiais. E é curioso que as formas nos meus têxteis começaram por uma imagem que criei quando estava a ler um conto de ficção científica do Pedro Neves Marques, que falava de um ser estranho avistado a nadar à volta de uma plataforma de extração de petróleo no mar, E que acabou por ser uma espécie de preâmbulo para esta exposição. No fundo, tudo é circular… (riso). Portanto, tem alguns ecos de Moldada na Escuridão, com o desafio de acontecer nesse branco, quase pornográfico, da galeria. Mas também com a minha vontade de descer as telas para propor também o olhar para baixo.
PINTURA OMNIPRESENTE
E que olhar retrospetivo tem sobre o seu percurso?
A pintura está sempre omnipresente. Quando estou a trabalhar com o vidro, lembro-me de como faço aguarela, quando desenho aquelas formas, como fazia com o pastel. Durante um tempo abandonei as telas normais e comecei a pintar só em tecidos, para se tornar mais decisivo, porque todos os erros que fizer ficam lá inscritos. Olho e vejo muita pintura, nos interstícios do meu trabalho. Mas talvez nem interesse se é ou não. (riso) Também sinto que refreei alguns impulsos. Já houve momentos em que era muito assertivo e as pessoas reconheciam uma linha programática forte, que relacionavam com algumas figuras da história de arte, e gostavam muito. Neste processo em que agora estou a aprender também encontro outras forças genuínas, se calhar, abraço novos conteúdos, mas tenho sempre na pintura a valência, a capacidade para devolver e oferecer alguma coisa de volta aos outros.
O facto de se ter mudado para Viena abriu-lhe outras possibilidades?
Imensas. Mudei-me para lá por amizades e pelo interesse pela cena artística, que achava muito diferente da nossa. E gosto de me sentir estrangeiro num lugar e lá sinto-me mesmo, porque sou branco, mas não tão branco… (riso) Mas fui muito bem recebido, tenho aprendido imenso e ao fim de algum tempo comecei a ter muitas oportunidades. Sinto-me um artista austríaco na Áustria, um artista português em Portugal. Desde janeiro do ano passado também faço umas temporadas em Nova Iorque, porque a minha mulher mudou-se para lá. E estou a abrir para outro universo que significa outras diferenças no modo de fazer e de estar. E isso enriquece imenso.