A sua guerra é a das palavras. Mas nela António Carlos Cortez convoca todas as outras guerras que marcam o passado recente de Portugal, incluindo as invisíveis e silenciosas, que se travam no quotidiano veloz dos dias comuns. Se já era assim na sua poesia e no seu ensaio, expressa-se com maior fulgor na sua estreia no romance. Um Dia Lusíada, que a Editorial Caminho acaba de publicar, pertence àquela categoria de romances inclassificáveis, híbridos, que vão beber à concepção de obra aberta a vontade de tudo incluir. Um romance, pretendeu o seu autor, que conseguisse abarcar a vida toda, desde os grandes acontecimentos até aos que apenas se intuem e podem rasgar novos horizontes ou cavar valas mais profundas.
Um Dia Lusíada é, também, uma revisitação da Guerra Colonial e das suas operações de maior envergadura, através de Elias Moura, um jovem formado em Literatura que de repente se vê no cais de embarque a caminho de África. Na cabeça, um livro ambicioso, que nunca será capaz de concluir. Ao narrador, oferece não só todos os seus manuscritos, como o relato da sua experiência, antes e depois do campo de batalha. Para António Carlos Cortez, que nasceu em Lisboa, em 1976, a literatura também é um campo onde a linguagem trava uma batalha decisiva, não a do contar, mas a do como se conta. É ainda o um desafio, diferente de livro para livro. Começou, em 1999, com o volume de poemas Ritos de Passagem, prolongando-se depois por dezena e meia de títulos, incluindo Jaguar, distinguido com o Prémio de Poesia António Gedeão 2020. Antes, a sua antologia A Dor Concreta recebeu o Grande Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes da APE, em 2018. Em Um Dia Lusíada perseguiu “uma prosa diamantina, uma irradiação absoluta”.
Jornal de Letras: Tem um longo percurso na poesia, no ensino e no ensaio. Este romance aglutina todas essas vertentes? Um Dia Lusíada é um poema que também é um ensaio, um ensaio que também é uma aula de literatura e de história do século XX…
António Carlos Cortez: É, de facto, um romance híbrido, com essas dimensões todas, incluindo citações de obras de outros escritores. De resto, os primeiros esboços do livro, com sete anos, já oscilavam entre a narrativa e a poema. Tinha um conjunto de textos em prosa poética, a que dei o título de Psycho Killer, com a história de um psicopata cuja figura não estava bem delineada. E um longuíssimo poema com mais de 700 versos, intitulado Condor, que quis publicar autonomamente quando saiu Jaguar. Como isso não se concretizou, as duas partes começaram a ganhar outro corpo. Pensei que talvez esse longo poema pudesse ser o livro que o Elias Moura escreve, com a vertente romanesca e de intriga nas partes seguintes. Aí, o protagonista conheceria alguém, o narrador, que tentaria organizar os seus manuscritos.
Ter sido construído em diferentes etapas explica esse carácter híbrido ou tem uma conceção muito aberta do que pode ser um romance?
Não me interessa propriamente contar uma história, mas experimentar a linguagem. Este romance é um convite a que os leitores percebam que a literatura é sobretudo manipulação e reinvenção de códigos. Neste livro, há vários estilos, páginas que lembram Fernão Mendes Pinto, o português do século XVII ou notas de rodapé ao jeito do ensaio. A minha concepção de romance é a de obra aberta, para usar o termo de Umberto Eco, disponível para receber todos os estilos e linguagens. Sendo também uma homenagem à literatura, assume a herança da experiência textualista, de autores como Almeida Faria, Maria Velho da Costa ou Ruben A., assim como do Ulisses, de James Joyce.
Entende o romance como laboratório, oficina?
O romance como ensaio, na tentativa de perceber o que é isso de escrever uma ficção, um longo poema, literatura. Porque a literatura é o espaço da imaginação verbal. Respeito o romance de estrutura linear, no qual acompanhamos o evoluir de uma personagem, mas não é o que quero fazer.
É sondar uma personagem por dentro?
Sim, há muitas páginas que mergulham no fluxo interior de Elias Moura. Este também é um ensaio sobre os infernos da criação, escrever para tentar sobreviver, por um lado, e para ironizar, por outro. Não sendo uma paródia da própria literatura, não deixa de o ser…
Com tudo o que se disse até agora, não espanta que o Elias Moura apelide o seu livro, que se dá a ler em Um dia Lusíada, com todos os acrescentos do narrador, de um “composto furioso”…
[risos] Diz isso e também que é uma guerra de saturação por palavras. Há um momento em que o Elias Moura mostra ao narrador o que foi a guerra química que fizemos em África e cruza essas experiências, aludindo ainda ao Vietname, com aquilo que para ele seria uma linguagem semelhante a um bombardeamento de Napalm. Foi o que tentei, em algumas passagens, alcançar: um bombardeamento verbal.
Bombardear também uma certa ideia de romance português, como se chega a sugerir em Um Dia Lusíada?
A literatura portuguesa conheceu um período muito florescente e rico no século XX no pós-Fernando Pessoa e tem hoje, na minha geração, gente que sabe, pensa e sente o que é fazer literatura e o que é isto de viver e fabricar um livro. Da minha parte, procurei oferecer aos leitores qualquer coisa que se afaste tanto quanto possível do romance que as pessoas estão à espera de ler. Digo bombardear como quem diz reinventar, que é o que mais me interessa. Reinventar permanentemente os modos de fazer linguagem.
Essa reinvenção é incompatível com contar uma história?
Não, mas o importante não é o que se conta, mas como se conta. Por vezes confunde-se o escritor que quer contar uma história e aquele outro que quer mostrar como é que essa história pode ser contada para ser qualquer coisa que provoque a imaginação. A literatura não nos vai dar grande coisa, mas pode dar-nos a faculdade raríssima de imaginar. É o que este livro procura ser: uma viagem à imaginação de uma personagem que foi combatente na guerra colonial e vive obcecado com a feitura de um livro. Busco esse objeto literário não identificado. Fazer igual, não faço. Parecido, também não. Procuro honrar o que aprendi de grandes mestres: memória, tradição e historicidade.
O conjunto inicial deste livro intitulava-se, como disse, Psycho Killer, embora no livro seja Trauma. O romance nasceu já numa condição limite?
Nasceu com a imagem de um homem, que tinha participado numa guerra, que escreve para não matar ninguém.
A ligação à Guerra Colonial esteve presente desde o início?
Está na sua origem e é um tema sobre o qual já li muito, que me persegue, como a guerra do Vietname ou a II Guerra Mundial, ainda para mais nestes tempos que estamos a viver. É no jogo mais perigoso, a guerra, que mostramos o que verdadeiramente somos. O livro Marcas da Guerra Colonial, do Jorge Ribeiro, e os estudos do Carlos Matos Gomes, marcaram-me muito. Somos filhos de pessoas que combateram em África, tema sobre o qual não se fala o suficiente na sociedade portuguesa.
Tal como foi travada à distância, a Guerra Colonial também anda arredada do espaço público?
Sem dúvida. E é uma distância que não faz sentido. Vejo uma certa desestruturação familiar e até uma dispersão em vários planos da vida portuguesa, nos anos 80 e 90, que alguma coisa deve a esse trauma da guerra. É impossível que não haja repercussões do facto de termos enviado milhares de jovens para a guerra, que depois foram pais logo na década de 60 ou nas seguintes. Consequências nas relações e no não dito. Todos teremos um familiar, mais próximo ou distante, que não fala dessa experiência traumática. E se fala é para aludir a coisas menos negativas. Há uma catarse que ainda não foi totalmente feita e que as novas gerações poderiam tentar compreender.
Muitas das consequências da guerra são invisíveis?
Sobretudo porque também há a guerra quotidiana. Após regressar da Guerra Colonial e, em particular, da operação Nó Górdio, o Elias Moura vai dar aulas para o ensino básico e secundário. E isso será outra guerra. Recentemente uma pessoa amiga contava-me que uma conhecida sua tinha partido os dois pés na rua por causa do pavimento. Eis ainda outra guerra. E muitas mais há. Tudo depende da sensibilidade de cada um, mas o quotidiano é violento.
Propício a homens e mulheres revoltados?
Certamente. O Camus fala disso e aponta algumas causas para que a guerra, no século XX, nunca tenha saído dentro de nós: a vitória da burocracia, o desejo de poder, o cortejo da morte (deusa à qual prestamos culto) ou o fetichismo da técnica (que torna o homem insensível). Este romance, e a personagem de Elias Moura, também é sobre isto. A pandemia só veio agravar a violência deste quotidiano de que falo, dominado pelo império tecnológico e por uma certa insensibilidade geral.
A vida do Elias Moura está intimamente ligada aos grandes acontecimentos do século XX e XXI. O que procurou nesta construção em espelho?
Há, de facto, uma série de coincidências. Ele nasce em 1945, no fim da II Guerra Mundial, faz a recruta em Mafra, é incorporado no final dos anos 60 início dos anos 70, passa pelas crises dos anos 80 e 90, e reforma-se em 2001, a 11 de Setembro… Essa construção em espelho é também a que ele próprio faz com a sua vida. O Elias Moura está sempre a saltar de uma época para a outra. Ao entregar os papéis para a reforma vê-se numa reunião de professores 20 anos antes, nesse conselho de turma acha-se no campo de batalha no norte de Moçambique, duas décadas antes, tudo isto recordado algures em 2020. É um homem português que resume o século e na sua visão encerra-se também, em jeito de alegoria, a de um certo Portugal.
E porquê o título Um Dia Lusíada?
É, por um lado, uma glosa ao poema do António Nobre — “Ai do Lusíada, coitado” — e, por outro, fruto do confronto obsessivo que o Elias Moura tem com Camões, ao ponto de o seu livro se apresentar como uma reescrita impossível, em verso livre, d’Os Lusíadas. É a imagem do Velho do Restelo que o acompanha desde o dia em que foi embarcado para África. Uma vida portuguesa e uma visão também profética: um dia, quem sabe, tudo isto ganhe sentido.