A papa tem bolacha Maria, mas não é para bebés. Avelãs, nozes, amendoins e banha de porco fazem as delícias do pica-pau e de outras aves insectívoras. João Cosme abre a caixa transparente e tapa um buraco na árvore com a mistura que carinhosamente preparou em casa. «Eles adoram. Daqui a pouco estão por ai.»
O que até agora João Cosme, 45 anos, fotógrafo de natureza, fazia para conseguir fotografar a fauna selvagem – atrair os animais a um local com alimento e escondendo-se por perto -, fá-lo agora para ajudar a bicharada a renascer (ou a não morrer) depois dos incêndios que devastaram 85% do concelho de Vouzela, onde ele mora, deixando sem comida os animais de quem habitualmente ninguém se lembra. «Em Portugal, na contabilização dos danos dos fogos, nunca nos lembrámos deles. Lá fora não é assim. Ainda recentemente, a propósito dos incêndios na Galiza, li notícias que contabilizavam essas perdas.»
Fotógrafo profissional há 15 anos, um dos poucos em Portugal que sabe fotografar fauna e flora, João Cosme também traz agora na bagagem do seu carro sacos de sementes, que vai buscar ao armazém onde a Câmara Municipal de Vouzela guarda os bens que têm sido doados para ajuda. A ideia de alimentar os animais selvagens, salvando agora da fome os poucos que se salvaram do fogo, partiu de si e do Nuno Neves, vice-presidente da Montis, uma associação de conservação da Natureza, e de imediato recebeu o apoio da Câmara Municipal. «Houve uma pessoa que doou 800 euros especificamente para serem utilizados na conservação da fauna silvestre», conta Nuno, encostado a enormes sacos de sementes de girassol e a uma caixa de alimento para abelhas.
As sementes são o pão das aves granívoras, como os tentilhões, que perderam o que comer com o desaparecimento das árvores folhosas (carvalho e sobreiros, entre outras). João rapa uma porção de terreno, junto à árvore onde colocou a papa, e afasta-se. «Se nos escondermos, eles vão aparecer.»
Missão cumprida. Há que passar à próxima etapa: espalhar sementes e comida para coelhos domésticos numa zona do Parque Natural do Vouga Caramulo onde João avistou três perdizes pouco depois dos incêndios. Para se lá chegar, perto da aldeia de Covas, perdida na serra, há que percorrer quilómetros e quilómetros de terra queimada. Apesar da tragédia, a paisagem continua assombrosa. «Acho que aqui não ficou nada vivo. Conheço os animais pelos sons e o silêncio é total», confidencia João quando pára a carrinha. Miguel, recém-formado em Biologia pela Universidade de Aveiro, ajuda-o na tarefa de espalhar as sementes.
Por caminhos semelhantes àqueles também tem andado Nuno Neves, mas com o objectivo de colocar comida húmida para os mamíferos. Raposas, ginetas e fuinhas precisam de pão para a boca. «Sabendo que os problemas das pessoas estariam a caminho de ser resolvidos com a onda de solidariedade que se criou, preocupavam-me os animais.» As férias que ainda tinha por gozar, ele que faz trabalha numa fábrica de Oliveira de Frades como controlador de qualidade na assemblage de turbinas eólicas, foram passadas a proteger homens e animais. «Fi-lo não só porque sou um amante da Natureza mas também porque sou um cidadão consciente de que temos de melhorar o estado do Planeta.»
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