“Não vás, já não tens casa”. Quem assim falou foi o carteiro. Era a madrugada de segunda-feira, 16 de outubro, e Karel van Egmond, 62 anos, apressava-se a regressar à quinta de onde tinha fugido umas horas antes para ver o que se salvara. O encontro casual com o carteiro de Melo, a aldeia do concelho de Gouveia onde até a Farmácia Central ardeu, prenunciava o pior. Karel confirmaria rapidamente que tinha mesmo perdido tudo. Quase tudo: quando saiu a correr, depois da amiga e vizinha Manuela Gaspar o ter ido alertar de que o fogo estava mesmo a chegar, teve tempo de pegar na máquina fotográfica, um livro sobre aves, uns binóculos, o computador portátil e uma mochila com os documentos. Os cães também não ficariam para trás.
Dentro da casa destruída, no meio dos escombros negros, só um antigo serviço de chá de porcelana tinha resistido às altas temperaturas mantendo as formas originais. As memórias de uma vida – “Coisas que escrevi, o relógio com a inscrição do meu avô… ” – desapareceram naquela noite de domingo.
Um mês depois ainda se sente a pairar “entre a terra e o céu” mas já teve tempo para pensar no assunto. E é sereno, num português hesitante – procurando, e quase sempre encontrando, a palavra certa – que este holandês de Haia conta a sua história. Estudou Economia e História, trabalhou na sua cidade como responsável financeiro de uma instituição académica ligada à História e deixou sempre que uma paixão ocupasse espaço na sua vida: o atletismo. Orgulha-se de recordar os seus melhores tempos e os triunfos, já como veterano, na maratona. Investiu também numa carreira como treinador. As primeiras viagens a Portugal, para o Algarve, prendiam-se com esse entusiasmo: era um bom sítio para os treinos durante o inverno holandês. Quando se mudou definitivamente treinava a então sua mulher Annelieke van der Sluijs com o objetivo de a conseguir levar aos Jogos Olímpicos de 2004, na Grécia. Isso não chegou a acontecer e o grande desafio, no fim desse ano, seria, antes, a mudança para uma quinta na Serra da Estrela, onde o casal se instalou em 2005. Seiscentas árvores – oliveiras, árvores de fruto, carvalhos, freixos… –, algumas ovelhas passaram a ser o seu mundo. E Karel entregou-se a ele com entusiasmo, decidido que estava a mudar de vida e a confiar mais num trabalho direto com a natureza – “usar mais a força dos meus braços do que a cabeça”. Recorreu a poucas ajudas. Quando se separou, em 2010, tornou-se ainda mais solitário, uma característica sua que reconhece, sem dramas. No último mês aprendeu alguma coisa sobre o assunto: “Sempre quis ser independente de tudo e disse muitas vezes que não precisava de ajuda. Neste momento passei a aceitar que as pessoas me podem ajudar, agora preciso dessa ajuda. Foi uma aprendizagem”.
Está, diz, “no dia 31” de uma nova vida contando aquele funesto 15 de outubro como “dia zero”. Na verdade, já tinha havido outros recomeços (foi uma pneumonia viral, em 2000, que o fez começar a pensar mudar de vida), mas nenhum como este.
Quando o encontramos, ainda à espera da concretização de qualquer apoio oficial para sua perda (que estima entre 200 e 300 mil euros) já consegue falar numa “motivação muito grande para começar de novo, mas de outra maneira”. “Sempre pensei muito na questão ‘o que acontece quando se perde tudo?'”, conta, quando já lhe adivinhámos alguma propensão para a filosofia e a poesia. “Foi isso que me aconteceu agora a mim, já aconteceu a muita gente….”. Pausa. “Sinto-me muito bem. É um novo começo, ao mesmo tempo uma libertação do passado.”
A primeira coisa que comprou depois do dia que mudou tudo foi um dicionário de holandês-português. Sinal de que há um caminho a percorrer, muito provavelmente nestas mesmas encostas serranas que inspiraram o escritor Virgilio Ferreira (1916-1996) nascido e sepultado aqui mesmo, em Melo.
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