Aos 66 anos já ninguém espera grandes partidas da vida. Maria da Glória, viúva, a morar sozinha vai para que tempos, contentava-se com a sua casinha junto à estação do Vimieiro, onde morava com a filha, os netos e o genro. Não imaginava que um fogo dantesco lhe iria levar parte da equação da tranquilidade do último terço da sua existência. Assim, de repente, viu-se sem casa, sem roupa, sem pertences.
Naquela noite saiu para a rua de pijama e robe dobrado sobre o braço, mas só porque os passageiros do comboio que foi evacuado à sua porta lhe bateram na janela da cozinha, implorando-lhe que fugisse perante a iminência da chamas. Já estava na casa da cultura de Santa Comba Dão (transportada pelo herói João Silva) quando se deu conta de que, no meio de tamanha aflição, nem a prótese dentária tinha levado. Nem a medicação que lhe põe o colesterol no eixos, domina a tensão e afasta a depressão.
Na casa da cultura encontrou Luísa Mariana, 39 anos, que coordenou a estadia de cerca de mais de 700 pessoas ali refugiadas enquanto o perigo as ameaçou. Ela, que em tempos foi escuteira, partiu para a frente da batalha assim que viu a coisa a ficar feia e acabou a passar duas noites neste espaço camarário. Depois, quando as pessoas regressaram às suas casas – ou não, porque neste concelho perderam-se 96 primeiras habitações – Luísa quis continuar a ajudar. Foi ter com Carla Coimbra, 45 anos, a chefe dos escuteiros de Santa Comba, que já acionara um plano de emergência para auxiliar cinco membros do seu agrupamento que ficaram sem teto.
A coisa cresceu de tal maneira, a solidariedade foi tão ilimitada, que rapidamente os escuteiros pegaram nas tralhas, mudaram-se para a escola profissional, junto ao rio, e que agora já não funciona, e aqui estabeleceram o quartel general da ajuda. No andar de baixo, organizou-se um enorme centro logístico, onde estão todos os bens doados e é aqui que as estimadas 140 vítimas vêm para buscar alimentos, roupa, produtos de higiene e mobiliário.
Maria da Glória havia de voltar a encontrar Luísa Mariana neste centro de recolha e entrega. Depois de duas semanas em Alverca, em casa de uma irmã, houve que regressar à terra e à realidade, ainda que esta não lhe sorria. E houve que vir em busca de auxílio.
Desta segunda vez leva consigo um édredon, toalhas de banho, mantas, panos de cozinha, toalhas de mesa e roupa; só não conseguiu arranjar sapatos porque calça o 41. “O que vale é que a minha irmã me comprou uns”, conta.
Para já, Maria da Glória está a viver em casa da filha na mesma aldeia, mas não quer que se torne numa solução permanente. Tem o seguro em dia, porém calcula que não seja suficiente para tanto gasto. “Fui falar com os presidentes da câmara e da junta e eles disseram que o Estado também ia apoiar, mas não sei de mais nada.”
Não sabe nem poderia saber, já que o decreto-lei que põe tudo preto-no-branco para os concelhos afetados só saiu na quinta-feira passada e ainda ninguém pegou nas três linhas de apoio que podem ser acionadas. Quem o garante é Agostinho Neto, 43 anos, vice-presidente da Câmara de Santa Comba Dão, explicadno que, até 25 mil euros, o proprietário pode dar início às obras rapidamente e sem grandes burocracias. Acima desse valor, terá de esperar pelo concurso distrital.
Enquanto esperam e não esperam, os habitantes, muitos deles de idade avançada e sem família a quem recorrer, só podem contar com a bondade alheia. Sabemo-lo quando o dirigente do agrupamento de escuteiros de Rio Maior, Luís Vicente, 45 anos, nos conta que passaram o fim de semana a limpar, pintar e arrumar uma casa emprestada por uma família importante da região e que servirá a um senhor que ficou sem nada. Quando lá entrar, irá encontrar uma despensa cheia de alimentos, todos os utensílios de cozinha, escova de dentes e desodorizante na casa de banho e a cama feita com tanto preceito que até parece a de um hotel. A mobília foi suportada quase na totalidade pela loja Laskasas, que fez questão de entregar as coisas em mão e instalá-las na própria casa, enquanto os escuteiros esfregavam os azulejos da cozinha.
Quanto a Maria da Glória, há que ter fé nas palavras sinceras de Luísa Mariana, ditas à despedida: “Vou falar com a Maria João para ver se ela tem uma casa livre para si.”
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