Foi já ao final da tarde que enfiámos o carro por uma estradinha ladeada de eucaliptos e pinheiros queimados. Era só mais uma semelhante a tantas outras pelas quais tínhamos passado ao longo do dia: estreita, sinuosa e monocromática não fosse pelo verde-claro dos muitos rebentos junto à base dos eucaliptos.
Nenhum de nós precisou de dizer nada quando vimos um ramo de flores artificiais cor-de-laranja numa das bermas, cuidadosamente preso por pedras. Numa estrada assim, qualquer mancha de cor diferente parece que grita, e o ramo gritava o mesmo que aqueles que encontráramos uns minutos antes atados aos rails do IC8, no troço entre Figueiró dos Vinhos e Castanheira de Pêra.
“Alguém morreu aqui”, diz o código da dor na estrada. “E nesta zona só pode ter sido a fugir dos incêndios”, pensamos os três. Mas quem teria sido e de onde fugia? Quatro meses e meio são muitos dias, milhares de notícias e dezenas de histórias arquivadas nas nossas memórias. E nós nem sabíamos onde estávamos. Bem podia o GPS indicar Estrada Municipal 1157. Teria de ser Benilde a contar a história daquele ramo de flores e, pelo caminho, deixar-nos com vontade de lhe arranjar rapidamente uma máquina de roçar e uma moto-serra.
“Abria as portadas e via tudo cinzento”
Benilde Silva tem 55 anos, nunca viu o filme Benilde ou a Virgem Mãe, de Manoel de Oliveira, e “da cidade” só conhece o apartamento de uns primos no Prior Velho. Mas deem-lhe as máquinas certas e ela corta o mato que for preciso. Foi o que fez no início de junho, limpando vários metros de terreno à volta da sua casa. Verde na altura só restou o do grande canteiro de flores, da horta e das árvores de fruto que plantara no ano anterior, logo a seguir a comprar a casa.
A casa de Benilde é branca, tem portadas de alumínio verdes e o telhado acabado de rematar. Dá quase tanto nas vistas como o ramo de flores cor-de-laranja com que alguém quis lembrar as cinco pessoas que morreram a fugir do fogo. Vinham todas de Sarzedas do Vasco, uma aldeia umas centenas de metros abaixo, e a mesma sorte podiam ter tido outras três que já não se aventuraram mais na estrada e se abrigaram nas traseiras da sua casa, debaixo dos andaimes. Benilde havia de fazer o caminho inverso e quase morrer num acidente, contar-nos-á daqui a pouco.
Agora mostra-nos as couves, os pimentos, os alhos-franceses e os nabos que já lhe enchem a nova horta, e as sardinheiras, os crisântemos e os lírios do jardinzinho que está a refazer aos poucos. “Cada vez que vou à praça de Figueiró trago uma flor. Sempre gostei muito de flores e tenho de recomeçar por algum lado.”
Um mês depois dos incêndios, recebia uma dezena de pequenas árvores de fruto doadas por um grupo de Seia. Foi no momento certo porque antes disso estava quase sem reação. “Todas as manhãs abria as portadas da janela da cozinha, via tudo cinzento e não ouvia os passarinhos. Agora já começa a haver o verde dos eucaliptos e dos fetos, só os passarinhos é que desapareceram.”
“Só quem passou é que sabe”
Estamos à entrada da sua casa. O silêncio é quebrado pelas nossas vozes e pela passagem de um ou outro carro na estrada. Da cozinha chega o beijocar do casal de periquitos que Benilde põe de vez em quando na rua para apanharem sol. Nos primeiros dias a seguir aos incêndios, eles nem piavam. Ela chegou a um ponto que gaguejava. “Até pedia perdão às pessoas”, recorda. “Foi do choque. As bolas de fogo por cima de nós, o fumo… Só quem passou é que sabe, não dá para entender.”
No dia 17 de junho, estava em casa a plantar umas alfaces quando recebeu um telefonema do filho, bombeiro voluntário, aflito porque o fogo andava perto da casa da avó. Benilde não hesitou: meteu-se no carro e acelerou rumo a Fontes. A mãe tem 81 anos e sofre do coração, não ia deixá-la sozinha no meio daquela aflição. Depois foi uma sucessão de acasos que podiam ter corrido muito mal.
“Fomos para casa de uns vizinhos, em Sarzedas do Vasco, mas a certa altura percebi lá de cima, da placa [terraço], que o fogo estava na direção de minha casa. Tinha aqui dinheiro para pagar ao empreiteiro e a escritura, tinha de cá vir. Enfiei a minha mãe no carro e vim só buscar as coisas.”
De regresso à aldeia, o fumo era tanto que Benilde perdeu a noção do local onde se encontravam. O carro embateu num muro e capotou duas vezes. Foi o cabo dos trabalhos para retirar Olinda do interior, por sorte só com uma costela partida. No hospital de Coimbra, Benilde ouviu os gritos da mãe de Bianca, a menina de 4 anos que vivia na aldeia de Nodeirinho e morreu com a avó, e então chorou.
“Temos de erguer a cabeça, de reagir”
Passaram entretanto quatro meses e meio. Parece muito tempo no calendário, mas é pouco para quem tem de recomeçar do zero. Benilde considera-se uma mulher de sorte porque sobreviveu para contar e não perdeu nenhum familiar nem sequer a casa. Mas o seu carro foi para a sucata, viu arder o barracão com várias máquinas e este ano teve de esquecer o trabalho na apanha da azeitona porque os olivais desapareceram. “Recebo uma pensão de viuvez de 250 euros que não chega, mas também não posso ficar de braços cruzados, a chorar. Costumo dizer: ‘Hoje estou em baixo, amanhã em cima’. A mágoa está cá, a gente não se esquece. Mas temos de erguer a cabeça, de reagir.”
Desde julho, Benilde já foi vezes sem conta à Câmara de Castanheira de Pêra saber do andamento do seu processo, da hipótese de receber ajuda financeira. Umas vezes dizem-lhe para ter paciência, noutras admitem que não sabem em que pé andam as coisas. Como não lhe sobrou dinheiro para reconstruir o barracão, comprou um grande plástico preto com que cobriu a lenha para aquecer a casa no inverno.
“Faz-se o que se pode, como se pode”, diz, com um sorriso. “Sair daqui é que nunca porque isto era um paraíso. E vai ficar tudo verde e bonito outra vez. É por isso que digo às pessoas: ‘Voltem para aqui como dantes, não venham só ao fim de semana.”
Benilde Silva, 55 anos
Mora em Sarzedas do Vasco (Castanheira de Pêra)
Ficou sem um barracão e tudo o que lá guardava
Precisa de uma máquina de roçar e de uma moto-serra
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