Não chegámos a ouvir Clara Martins dizer nenhuma palavra em mirandês, mas foi por ela que soubemos que a língua mirandesa está de boa saúde e recomenda-se. Clara tem 12 anos e cresceu a ouvir os avós a dizerem “bila” em vez de vila ou “lhargo” em vez de largo. Quando entrou na escola primária (apesar de a disciplina não ser obrigatória) quis matricular-se nas aulas de língua mirandesa. Agora, no secundário, continua a ter a disciplina uma vez por semana. E será assim até ao 12.º ano. “O meu professor dá muitas lições por aí, em escolas de cá e de Espanha”, conta.
Pedimos-lhe que nos fale da escultura que ocupa o centro da Praça. “O senhor está vestido com a capa de honra mirandesa, que era usada pelos homens que tinham cultura e muito dinheiro. A mulher tem um xaile mirandês, sempre com as franjas, e a algibeira. À frente põe as coisas de que precisa para levar para o campo, atrás carrega lenha.” A mãe de Clara, Alice Martins, acrescenta que a capa era usada pelos homens quando iam à missa. Hoje, diz, “só o Presidente da Câmara a usa quando recebe visitas importantes”. O amor de Clara à língua e às tradições mirandesas pode enganar. Gosta muito da terra onde nasceu, mas é em Lisboa, onde “há mais gente e monumentos” que quer ir estudar Medicina e morar.
Quando, duas ou três vezes por ano, este grupo de espanhóis de Salamanca decide vir a Portugal comer “bacalao”, hesita na escolha do destino: Almeida, Vilar Formoso ou Miranda do Douro?Ontem, optaram pelo caminho mais curto (uma hora de viagem). Mas nem foi tanto pela distância. “Aqui os comércios contam histórias de outro tempo. Têm a mesma porta, o mesmo balcão, o tratamento personalizado”, nota Felipe Sanchez, 54 anos, dono de uma empresa de bolos que o leva a atravessar a fronteira para o lado de cá do Douro todas as semanas. Margarita Rodriguez ajuda o amigo: “Aqui vive-se o ambiente castiço, puro, de sempre. Como se te transferisses para outro mundo”, atalha, que há pressa para provar o bacalhau à Brás e com Natas que os aguarda no restaurante.
Seriam 2 da tarde quando uma imensa mancha preta e cor de vinho tomou conta da praça. Foi preciso subir a um escadote para conseguir pôr todos os membros da Confraria dos Vinhos Transmontanos dentro de uma fotografia só. Cruzaram-se com a Caravana VISÃO à saída da Sé de Miranda, onde tinha decorrido a entronização de trinta novos confrades. Gualtar Martins, de 50 anos, faz as apresentações: “Queremos promover, divulgar e valorizar no País e no estrangeiro os vinhos transmontanos.” A sede é em Valpaços, foi lá que esta confraria nasceu, há dois anos, por iniciativa de confrades produtores de vinho. Hoje tem representantes de todos os concelhos, produtores de vinho e não só. Para ser confrade basta gostar de vinho e de Trás-os-Montes. José António Silva é o mestre de cerimónias. Ergue o padrão da Confraria, com uma cepa em forma de V (“de vinho e de Valpaços”, explica) e uma cabaça que se levava para as tarefas do campo “e era onde tradicionalmente se bebia o néctar”. O que distingue afinal os vinhos transmontanos? “Os aromas. Os vinhos tintos são vinhos machos, encorpados, com alma”, responde Gualtar. Da praça os confrades seguiriam para a prova de vinhos na Estalagem de Santa Catarina.
Não há ano em que o casal Aurora Ortega, 75 anos, e Baltazar Fontanilla, 83, não venha pelo menos uma vez a Miranda do Douro. São espanhóis, de León, mas isso não os impede de serem devotos do Menino Jesus da Cartolinha, a imagem mais conhecida da Sé de Miranda. “Venceu-nos, mas nós adoramo-lo”, diz Aurora, emocionada.
Contam as gentes de Miranda que por altura da Guerra da Restauração, em 1711, estando a cidade cercada pelos espanhóis, sem mantimentos ou munições que lhe permitisse resistir, apareceu um menino nas ruas incentivando o povo a continuar a luta. O apelo da criança surtiu efeito. De enxadas, paus e forquilhas fizeram-se armas e, assim, os portugueses se libertaram do invasor. O menino, esse, ninguém voltou a encontrá-lo, mas para a história ficou como sendo o Menino Jesus.
“Interveio para salvar os seus, e todos os que se metem para ajudar aqueles que estão a ser vítimas para mim são abençoados”, diz Aurora, justificando, assim, a adoração que tem ao Menino. O que ela não sabe, certamente, é que figura de altar com guarda-roupa como o do Menino Jesus da Cartolinha dificilmente haverá outra. Do traje de oficial de cavalaria, que normalmente traz vestido, ao fato-macaco e ao pijama, passando por sapatilhas, socas e até jóias (anéis de curso, pulseiras, insígnias), nada lhe falta. Tudo oferendas dos devotos. Muitas são as grávidas que fazem promessas para que lhes corra bem o parto e vêm depois trazer-lhe uma peça de criança.
A loja de António Martins, 72 anos, dá para o Largo da Câmara. Tem o teto repleto de candeeiros. É um comércio como muitos em Miranda, virado para os espanhóis. Há atoalhados, bronzes, pijamas, navalhas… de tudo um pouco. A mercadoria está espalhada logo à entrada, no pátio que dá acesso à loja, com seixos do rio no chão. “Dantes era aqui que quem vinha das aldeias prendia o macho, porque era fresquinho”, conta-nos.
Ricardo Baptista justifica o vermelho dos olhos com alergias, mas mais tarde, quando dois colegas escoteiros se juntarem a ele na nossa mesa de trabalho da autocaravana, há-de dizer que a noite foi longa. Ricardo é de Macedo de Cavaleiros, Susana Rocha de Beja e José Manuel Costa de Braga. Vieram a Miranda reunir-se com mais cerca de 80 dirigentes escotistas de Portugal e Espanha na quarta edição do Travessia, um encontro que pretende “quebrar barreiras” entre os grupos escotistas dos dois países, para organizarem mais actividades em conjunto, explicam.
A Caravana VISÃO despediu-se de Miranda ao som de gaitas de foles e dos pauliteiros. Com as suas danças guerreiras, motivadas pela localização fronteiriça destas terras, os pauliteiros recordam tempos em que as lutas com Castela eram uma constante e animam em vários fins-de-semana do mês as ruas de Miranda.