Imagine, caro leitor, que necessita mesmo, mesmo de arrendar casa no competitivo mercado de Lisboa. E que até encontra, pasme-se, uma habitação a preços acessíveis. Que hipóteses teria, perante o previsível número de candidatos que naturalmente surgiriam, de efetivamente ser o escolhido sendo uma pessoa negra? E que desconforto, desalento e frustração tamanho desafio para as pessoas das minorias étnicas? Pois, agora imagine que essa situação discriminatória, inúmeras vezes partilhada e denunciada nos meios de comunicação social, passaria a ser feita às claras e sem pruridos éticos? É precisamente isso que está a acontecer no Reino Unido, como denunciaram recentemente os media britânicos.
No igualmente difícil mercado de arrendamento londrino, onde pessoas dos vários cantos do planeta disputam por um lugar decente para se acomodarem a valores razoáveis, os senhorios e os seus intermediários imobiliários já estão a implementar um peculiar e rigoroso sistema de verificação de identidade do potencial inquilino onde são exigidas declarações pessoais e até fotos.
“No pior momento de sempre para o mercado de arrendamento, os ativistas apontam o dedo aos consultores e proprietários de casas por estarem a incrementar o potencial de discriminação ao exigir documentos similares e biografias pessoais aos potenciais candidatos ao imóvel a explicar porque razão se consideram inquilinos desejáveis”, denunciou recentemente o “The Guardian”.
Também o “Observer”, num outro artigo, cita candidatos que foram encorajados a reunir o máximo de informações pessoais nas suas inscrições. “Ter frequentado o universo Oxbridge (expressão usada para se referir ao conjunto de pessoas que estudaram em Oxford e Cambridge) ou uma universidade do Russell Group e a referência a um alto salário é visto como uma clara vantagem”, escreve o jornal. Os potenciais inquilinos também relataram ter sido solicitados a permitir que os consultores acedessem aos seus perfis do LinkedIn. Outras táticas adotadas incluem o incentivo aos inquilinos para licitar a renda acima do preço de mercado ou avançar com vários meses de aluguer antecipadamente.
“Um agente imobiliário da Kinleigh Folkard & Hayward (KFH), em Londres, pediu a um grupo de possíveis inquilinos que enviassem uma foto sua e um breve perfil para juntar ao pedido de aluguer de uma propriedade no norte de Londres”, referiu o “Observer”. Questionado, o agente relativizou a questão e apontou para a necessidade “do senhorio em estabelecer uma ligação com os futuros inquilinos – caso contrário seriam apenas nomes no papel”.
Mas quem protege os inquilinos não aceita esta justificação e tem vindo a desdobrar-se em denúncias. Dan Wilson Craw, diretor interino do grupo de campanha Generation Rent, criticou o uso de biografias, lembrando que é “muito intrusivo” e que solicitar fotos é “uma receita para discriminação”. Lembrou o ativista que desta forma “os proprietários podem escolher os inquilinos que parecem mais convencionalmente atraentes”.
Um outro ativista, Tom Darling, diretor de campanha da Renters ‘Reform Coalition, sublinhou que esta forma discriminatória de selecionar candidatos torna ainda mais complicado o acesso à habitação por parte das minorias. “É como se candidatar a um emprego mas é pior ainda porque os empregadores sempre precisam ser um pouco mais discretos sobre o racismo”, realçou Tom Darling.
Para António Machado, membro da direção da Associação dos Inquilinos Lisbonenses (AIL) estes métodos discriminatórios vindos de terras de Sua Majestade não o espantam: “O Reino Unido é a nação mais racista do mundo, o que não deixa de ser curioso tendo em conta que foi a nação que mais colonizou. Mas Portugal não fica muito atrás em relação ao que passam as pessoas vindas das ex-colónias…”. E, no entanto, sublinha, “são estas pessoas que fazem aquilo que os portugueses não querem fazer e só por isso já as devíamos receber de forma civilizada”.
Por cá, garante, não há queixas formalizadas de discriminação a serem entregues à AIL. “Recebemos apenas notas de registos não formais vindos não só de não nacionais mas também nacionais”, diz António Machado, explicando que esta ausência de formalidade assenta no facto da associação não poder intervir formalmente nos casos.
Mas a pressão tem vindo a subir desde a pandemia, a acompanhar a crise de habitação que se vive na capital, onde a situação está mais agudizada, diz. “Percebemos que a situação tem vindo a piorar nos últimos tempos… A questão surge, a maioria das vezes, com a não renovação do contrato de arrendamento quando termina o prazo estipulado”.
Combater a discriminação assente no rendimento do candidato seria possível, por exemplo, através da exigência de um seguro de renda, em caso de incumprimento e despejo e de um seguro multi-riscos para eventuais danos causados no imóvel, defende o responsável da AIL. “Isto para prevenir mas não creio que os incumprimentos sejam uma questão… Segundo a ex-secretária Ana Pinho, os incumprimentos de renda por parte dos inquilinos não excediam os 3%/3,5%…”, sublinhou ainda António Machado, acrescentando que as “seguradoras, a respaldo do Estado, seriam obrigadas a respeitar as regras se assim fossem estipuladas”.
A AIL fez chegar ao Governo esta e outras soluções para dinamizar o mercado de arrendamento mas a associação ficou sem resposta. “Devem achar que o sistema deve dar muito trabalho a implementar…”, remata, sarcástico, António Machado.