
SIM
JOÃO MIRANDA
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e advogado
A resolução do problema do acesso à habitação exige uma combinação de medidas e o envolvimento do setor público, do setor privado e do setor cooperativo. Cabe ao Estado incentivar e fomentar a construção privada e cooperativa, criar um parque habitacional público, ou apoiar quem não tem condições para suportar uma habitação própria ou arrendada. Mas também compete ao Estado atuar em caso de incumprimento pelos proprietários dos respetivos deveres urbanísticos de conservar, reabilitar e utilizar os imóveis.
Tendo o Governo anunciado a intenção de impor o arrendamento forçado de imóveis devolutos, logo levantaram-se vozes sustentando que a medida impõe um sacrifício inconstitucional do direito de propriedade privada. Sem razão.
Antes de mais, importa assinalar que uma medida desta natureza não é propriamente inovadora. Já está consagrada desde 2019 no Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação em caso de não pagamento pelos proprietários das despesas assumidas pelos municípios com as obras coercivas de conservação e reabilitação (artigo 108.º-B). E está também consagrada desde a mesma data na Lei de Bases da Habitação, em que se prevê a aplicação de sanções aos proprietários de habitações devolutas (artigos 5.º e 28.º). Se retrocedermos a 2014, verificamos ainda que a Lei de Bases da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e de Urbanismo consagrou o dever de utilizar os imóveis, a par com o dever de proceder à sua conservação e reabilitação [alínea a) do n.º 2 do artigo 14.º].
A invocação da constitucionalidade do arrendamento forçado traz à colação o debate travado em 2009, a propósito da consagração no Regime Jurídico da Reabilitação Urbana do mecanismo da venda forçada de imóveis não reabilitados. Nessa altura foi igualmente esgrimido o argumento da inconstitucionalidade por ofensa desproporcional à propriedade privada, tendo o então Presidente da República requerido a fiscalização preventiva da constitucionalidade. Todavia, o Tribunal Constitucional (TC), no Acórdão n.º 421/2009, pronunciou-se por unanimidade pela não inconstitucionalidade da medida, em nome dos poderes do legislador de conformação social da propriedade, invocando “a necessária compatibilização – a efetuar pelo legislador ordinário – entre o direito de propriedade e outras exigências ou valores constitucionais”. O direito fundamental de propriedade privada não é um direito absoluto e pode ser restringido para satisfação de outros direitos, nomeadamente do direito à habitação.
Se a Constituição já consente a expropriação ou a requisição por utilidade pública de imóveis devolutos (…) deve permitir, também e por maioria de razão, um meio menos ablativo da propriedade privada
A emergência que se vive no acesso à habitação justifica a adoção de medidas contra o incumprimento de deveres urbanísticos dos proprietários, mobilizando para o mercado os imóveis privados desprovidos de uso habitacional e permitindo dessa forma aumentar a oferta de imóveis para habitação.
Em concreto, a providência do arrendamento forçado nem sequer é a mais onerosa para os proprietários. Se a Constituição já consente a expropriação ou a requisição por utilidade pública de imóveis devolutos, desde que acompanhadas do pagamento de uma justa indemnização, deve permitir, também e por maioria de razão, um meio menos ablativo da propriedade privada, como é o arrendamento forçado de imóveis devolutos.
Mais: apesar de a Constituição contemplar, no artigo 88.º, n.º 2, o arrendamento forçado dos meios de produção e não da propriedade privada, a verdade é que a apropriação pública aí prevista envolve igualmente uma intervenção restritiva na propriedade privada. Não se compreenderia a permissão de uma medida para o abandono dos meios de produção, que não pudesse ser convocada perante a existência de imóveis devolutos, tanto mais que, conforme afirmou o TC no Acórdão n.º 421/2009, não existe um numerus clausus de instrumentos destinados a assegurar a utilidade pública urbanística, podendo o legislador ordinário criar, para além da expropriação, aqueles que sejam necessários a alcançar tal desiderato, desde que assegurados os mesmos procedimentos de defesa dos particulares perante expropriações.
Uma nota final para assinalar que o dever de utilização efetiva da propriedade privada também se aplica à propriedade pública, pelo que a Administração está obrigada nos mesmos exatos termos a colocar no mercado habitacional o seu património devoluto.

NÃO
PAULO OTERO
Professor catedrático de Direito na Universidade de Lisboa
1. O primeiro-ministro anunciou, a 16 de fevereiro, o propósito de criar “um regime de arrendamento compulsivo das casas que estejam devolutas”.
Apesar de não se conhecerem ainda os termos de concretização legislativa de uma tal medida, o certo é que já se sabe que a mesma, conduzindo a um mecanismo de arrendamento forçado de casas devolutas, se revela inconstitucional, à luz da garantia do direito (fundamental) de propriedade privada expressamente acolhida na Constituição, na Declaração Universal dos Direitos do Homem, na Convenção Europeia dos Direitos do Homem e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
A tutela da propriedade privada, num contexto constitucional multinível, deixou de ser um problema exclusivamente interno de Portugal.
2. Não se nega que a propriedade privada tem uma função social, fazendo daí decorrer, atendendo a interesses da coletividade, a possibilidade de serem introduzidas, por via legislativa, limitações ao direito de propriedade privada de imóveis destinados à habitação, sempre dentro dos parâmetros ditados pelo princípio da proporcionalidade – as limitações ou restrições não podem ser excessivas, nem desadequadas ou irrazoáveis face ao propósito visado.
A lei pode, a título exemplificativo, instituir incentivos fiscais ao arrendamento (v.g., reduzir a tributação em sede de IRS ou IRC das rendas), criar benefícios no acesso ao crédito para a realização de obras em imóveis destinados ao arrendamento, tal como pode estabelecer desincentivos fiscais a que as casas se mantenham devolutas (v.g., agravamento progressivo do IMT de imóveis devolutos). Tudo isto está na margem de liberdade conformadora do legislador.
3. O dever de o Estado estimular o acesso à habitação própria ou arrendada, isto no sentido de assegurar o direito à habitação, tem sempre de se compatibilizar com a garantia da propriedade privada.
Politicamente, o arrendamento compulsivo de propriedade privada para habitação traduzirá uma medida própria de um Estado em “transição para o socialismo”. (…) Nem o general Vasco Gonçalves, em 1975, foi tão longe
A lei não pode obrigar os proprietários privados a arrendar imóveis para habitação contra a sua vontade, pois estamos perante uma forma de arrendamento compulsivo que o art. 88.º, n.º 2, da Constituição apenas permite face aos meios de produção ao abandono. Ora, se essa medida fosse possível ao nível do arrendamento para habitação, a Constituição teria, por identidade de razões, feito expressa referência a essa admissibilidade, tanto mais que a solução existente ao nível dos meios de produção ao abandono é insuscetível de aplicação analógica ao arrendamento para habitação.
Qualquer mecanismo de arrendamento compulsivo traduzir-se-á sempre numa violação excessiva e, por isso, desproporcional do núcleo essencial do direito de propriedade privada.
O arrendamento compulsivo de imóveis para habitação consubstancia uma medida análoga a uma expropriação e, se não for acompanhada de uma justa indemnização a pagar pelo Estado, traduzir-se-á, materialmente, num ato de confisco (temporário) da propriedade privada.
4. Politicamente, o arrendamento compulsivo de propriedade privada para habitação traduzirá uma medida própria de um Estado em “transição para o socialismo”, à luz de um modelo marxista, nem sequer admissível no quadro da versão inicial da
Constituição de 1976. Aliás, nem o general Vasco Gonçalves, em 1975, foi tão longe no ataque à propriedade privada.
5. É certo que, em 27 de abril de 2020, no auge da pandemia, o primeiro-ministro já nos havia brindado, a propósito de medidas restritivas da liberdade, com a sua peculiar sensibilidade constitucional, afirmando que o confinamento seria implementado, “diga a Constituição o que diga”. O desprezo que mostrou pelo texto constitucional em matéria de liberdades básicas não permite auspiciar que, a propósito da garantia do direito de propriedade privada, revele maior ou melhor adesão ao propósito de respeito ou fidelidade pela Constituição.
Felizmente, todavia, ainda existem tribunais nacionais e europeus…
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