A pandemia não travou o lançamento de novos projetos imobiliários mesmo que por enquanto as cidades se revelem uma sombra do que já foram há bem pouco tempo. Nos primeiros nove meses de 2020 entraram em processo de licenciamento 33.614 fogos em Portugal, de acordo com a Confidencial Imobiliário, o que mostra que esta atividade, apesar do fantasma do surto de Covid-19, pouco difere do que aconteceu em igual período de 2019, quando se contabilizaram 34.377 fogos.
Em Lisboa, as obras não pararam e multiplicam-se os lançamentos de novos empreendimentos que prometem revitalizar algumas das zonas mais emblemáticas da capital.
Na Infante Santo, mais precisamente no antigo hospital da CUF, na Estrela, prepara-se o arranque da construção do mais recente projeto residencial da promotora Avenue. Serão 87 apartamentos integrados no empreendimento Villa Infante, um dos poucos em Lisboa construídos em registo de condomínio fechado. A promotora adquiriu por 26,2 milhões os seis edifícios (um dos quais o Palácio Sasseti do século XVI) integrados numa generosa área de mais de 12.000 m2 que faziam parte do complexo de saúde transferido em novembro passado para o novo hospital CUF Tejo.
As obras do projeto assinado por Frederico Valsassina e que deverão arrancar já no próximo mês, irão injetar mais 40 milhões para transformar o espaço num seleto condomínio fechado com um jardim com mais de 3.000 m2, uma preciosidade em tempos de pandemia. “São raros em Lisboa os projetos com este conceito de condomínio fechado e neste caso, este grande jardim interior, murado, está talhado para as crianças brincarem em segurança e os pais aproveitarem para descansar, ler ou praticar exercício físico”, realça Aniceto Viegas, CEO da Avenue, que em apenas cinco anos já soma uma dúzia de projetos e cerca de 500 apartamentos construídos ou em curso (um dos quais o Liberdade 266, no emblemático edifício do Diário de Notícias).
A comercialização ainda não arrancou por isso os preços não estão definidos mas a pandemia não assusta o responsável da Avenue cujos projetos anteriores atraíram estrangeiros de várias geografias, representando cerca de 60% do total de clientes. “O imobiliário é uma atividade de longo prazo, não necessita de vender todos os dias, tem é de vender todos os anos. Já sabemos que 2021 vai ser complicado mas não há uma única entidade a nível global que diga que Portugal não vai crescer depois da pandemia. Todas elas apontam para uma recuperação da riqueza até ao final de 2022 e início de 2023 e por isso temos é de continuar a preparar os nossos produtos para quando a economia retomar”, reforçou ainda Aniceto Viegas.
Casa na Lapa por 30 milhões
Na mesma sintonia está a Vanguard Properties, do multimilionário francês Claude Berda, que continua somar projetos, entre os quais a Herdade da Comporta e o Castilho 203, cuja penthouse foi comprada por Cristiano Ronaldo por mais de sete milhões.
As mais recentes novidades da Vanguard na capital assentam em dois empreendimentos – um de construção de raiz, na Graça, com 15 apartamentos, todos eles com uma vista aberta sobre a cidade e um outro na Lapa, bastante singular uma vez que se trata de uma só propriedade com mais de 2.600 m2.
Esta propriedade, o Lapa One, integra um palacete reabilitado com cinco suites, sala de cinema, SPA, biblioteca, piscina interior e exterior, entre outros luxos, e ainda dois apartamentos para hóspedes ligados à casa principal. “É uma casa como as que se fazem em Londres, para quem está habituado a espaços enormes e não tem problemas de dinheiro… Queremos construir a melhor casa da Lapa, ou até mesmo de Lisboa”, resume José Botelho, administrador da Vanguard Properties e braço direito de Berda, acrescentando que a construção vai arrancar em outubro. À venda por 30 milhões, o valor justifica uma abordagem diferente para a venda. “Vamos criar a figura de embaixadores da marca e são essas pessoas que irão dar a conhecer o projeto junto de uma clientela selecionada de várias geografias para além de Portugal como o Brasil, África do Sul, França, Turquia, Suíça e Ásia”, adianta José Botelho.
A avançar neste verão, o outro projeto, os Terraços do Monte, será construído num terreno na Graça que pertenceu em tempos à extinta EPUL (Empresa Pública de Urbanização de Lisboa), e que autarquia acabou por vender à Vanguard. Inicialmente o empreendimento previa 28 apartamentos mas foram reconvertidos em apenas 15 porque, diz José Botelho, “há falta de casas em Lisboa com áreas generosas e há cada vez mais estrangeiros a procurarem esses imóveis uma vez que querem mesmo residir em Portugal”, sublinha ainda, acrescentando que para o segmento de luxo “há pouca oferta” e a procura mantém-se elevada mesmo para casas como estas onde os preços podem chegar aos sete milhões.
Patrícia Clímaco, diretora da Castelhana, a unidade residencial da consultora CBRE, reforça e diz que neste momento há uma “mudança de paradigma no mercado” que está a condicionar o produto novo. “As casas ganharam uma relevância que não tinham no período pré-Covid – deixaram de ser apenas para residir e são também para trabalhar, e às vezes, com toda a família lá dentro. Havendo crédito à habitação, muitas famílias estão a fazer um upgrade e querem casas com mais espaço interior e exterior, com maiores comodidades e outro tipo de layouts”, sublinha a responsável da Castelhana, acrescentando ainda “que as famílias nunca pouparam tanto em outros interesses como viagens e gastos em vestuário”, canalizando essas poupanças para o imobiliário.
Jorge Costa, diretor de Empreendimentos da consultora Quintela e Penalva/Knight Frank. corrobora e fala de uma “nova procura, que está orientada para a qualidade” e onde as casas se querem espaçosas, “com salas que podem chegar a ter uma área de 40 ou 50 m2, por exemplo”.
Edifícios anti-Covid
Mas outros fatores anteriores mesmo à pandemia têm contribuído para esta aposta dos promotores em casas maiores direcionadas mais para as famílias e menos para os investidores.
Patrícia Clímaco classifica de “tsunami” para o setor imobiliário o que tem vindo a acontecer nos anos mais recentes e que acabou por travar o interesse em determinado tipo de investimento. As sucessivas alterações na lei do arrendamento urbano (o Novo Regime do Arrendamento Urbano), a implementação das chamadas zonas de contenção nos bairros históricos de Lisboa e que impede a conversão de casas para alojamento local e a mais recente medida de acabar com os Vistos Gold em Lisboa (e todas as localidades no Litoral) a partir de julho de 2021, contribuíram para uma reorientação do tipo de projetos imobiliários em curso.
“Há três anos, 90% da oferta que tínhamos na nossa carteira era reabilitação nas zonas da Baixa, Almirante Reis ou Ajuda mas atualmente esse peso reduziu para 25%. Cada vez é mais difícil aos promotores fazerem reabilitação urbana. Basta ver a quantidade de prédios que existem à venda na zona histórica (e ainda antes da pandemia) e ninguém lhes pega. A esmagadora maioria dos novos projetos são de construção de raíz em zonas como a Alta de Lisboa ou Parque das Nações”, sublinha a responsável da Castelhana.
O percurso da Habitat Invest é um bom exemplo deste novo padrão. A promotora lançou vários projetos de reabilitação nos últimos anos, boa parte deles direcionados para investidores interessados em apostar na então fervilhante atividade turística que existia na capital (o 8 Building, junto ao mercado da Ribeira, é um dos maiores da carteira com mais de uma centena de unidades).
Mas em 2020 marcou pontos no mercado doméstico quando em plena pandemia vendeu, em menos de três dias, 80% dos apartamentos da segunda fase do empreendimento Valrio (com 55 unidades apartamentos), que está a ser construído na Avenida de Berlim, perto do Parque das Nações.
Apesar do apelo da construção nova, os projetos de reabilitação da Habitat Invest na Lisboa antiga seguiram o seu curso, incorporando já os impactos da pandemia. O Duque 70, um condomínio residencial fechado, com 52 apartamentos (e preços a iniciarem nos 440 mil euros), jardim interior e piscina, que resultou da reabilitação de quatro edifícios de traça tradicional, é o primeiro projeto residencial “a ser qualificado para a saúde em Portugal pela Nova Medical School da Universidade NOVA de Lisboa”, diz Pedro Vicente, administrador da Habitat Invest.
O edifício da Avenida Duque de Loulé, que está prestes a concluir, vai incorporar normas que visam promover a saúde de residentes e visitantes. “Antes da pandemia, pouco nos preocupávamos com a circulação dentro dos edifícios. Mas agora é preciso pensar como se vai circular no interior das áreas comuns e que é preciso entrar por um local e sair por outro, por exemplo. As ferramentas da Nova vão ser aplicadas no regulamento do condomínio e definir regras que estão orientadas para a proteção e segurança das pessoas nestas questões pandémicas. Hoje temos o Covid-19, amanhã poderá ser outra pandemia qualquer”, aponta Pedro Vicente.
E o balanço da comercialização do Duque 70 não poderia ser melhor tendo em conta o momento que o Mundo atravessa – 80% do condomínio está vendido, maioritariamente a portugueses e brasileiros.
“Não nos podemos queixar. É um percurso muito melhor do que esperávamos nestes tempos que estamos a viver e só vem provar a vitalidade do mercado”, acentua o responsável da Habitat, acrescentando que “apesar das ‘bombas’ lançadas ao Alojamento Local e aos vistos Gold, os habituais bodes expiatórios dos valores altos das casas, os preços continuam a resistir a descidas”.
Para Jorge Costa, da Quintela e Penalva, a oferta insuficiente de imóveis nas zonas centrais da cidade, criando pressão em alta para o que está em venda e os elevados custos de construção contribuem para essa manutenção dos preços.
“Há um tema que é importante abordar e que assenta nos atrasos na construção provocados por uma ineficiência municipal. Estamos a falar em tempos de licenciamento, de aprovação de projetos de arquitetura, muito para além daquilo que é o normal. Projetos de arquitetura que deveriam ser aprovados em 90 dias e que por vezes levam mais de um ano. Qualquer business plan que seja feito, define encargos e receitas mas claro que quando o tempo para a concretização do projeto é excedido em 300 ou 400% por parte da autarquia, tudo isso acaba por afetar as contas”, sublinha o responsável
Outro fator que tem contribuído para os valores elevados das casas assenta no custo de construção, diz ainda o mesmo responsável. “Temos conhecimento de algumas construtoras que dão orçamentos válidos apenas por 15 dias, com sucessivas revisões quinzenais. Existem neste momento projetos que efetivamente pararam porque as construtoras a quem foram adjudicados os trabalhos não têm como garantir o preço que foi contratado para a boa continuidade da obra”, enfatizou ainda Jorge Costa, diretor de Empreendimentos da consultora Quintela e Penalva/Knight Frank.
Quarteirão da Suíça pronto em 2023
Moroso está também a ser o processo que vai dar vida nova ao quarteirão do Rossio, que integrou a emblemática pastelaria Suíça e a Casa da Sorte. É um dos projetos mais importantes da Baixa Pombalina.
Há cerca de dois meses, a Assembleia Municipal de Lisboa aprovou a proposta do promotor, o fundo britânico JCKL Portugal e dos arquitetos do ateliê Contacto Atlântico, para transformar os cinco edifícios do quarteirão num grande espaço comercial recuperando o espírito dos Armazéns Grandella. A expetativa do promotor é que a obra esteja terminada em 2023.
Com cinco pisos cada, os cinco edifícios somam uma generosa área de mais de 12.000 m2, boa parte da qual se encontrava devoluta há 45 anos pois só os pisos térreos onde se encontravam as lojas – entre as quais a pastelaria Suíça que ali esteve durante 96 anos – estavam a funcionar. O projeto arquitetónico do Contacto Atlântico prevê que mais de metade da área total, entre 6.000 a 7.000 m2, seja ocupada pelo grande espaço comercial, cerca de 1.500 m2 para escritórios e o restante para comércio e serviços.
“Os pisos superiores tiveram como último uso um hotel que se foi degradando até se transformar em pensões e coisas do género. Estavam fechados há muito tempo. Chegou a ocorrer um incêndio, cujos danos nunca foram devidamente reparados e hoje, quem está no 1º andar, consegue ver o céu lá em cima, no 5º andar… Portanto, o aspeto exterior do edifício é muito melhor do que o aspeto interior”, conta André Caiado, arquiteto fundador da Contacto Atlântico, ateliê que soma 17 projetos concluídos e mais 11 em curso, só na zona histórica de Lisboa.
Apesar do estado de degradação, o objetivo é reabilitar o Rossio Pombalino, assim se chama o projeto, no espírito da traça original. “Por sorte, ainda existem reminiscências do que era o método construtivo e que nos permite refazer de acordo com aquilo que ainda temos”, explica o arquiteto. E dá exemplos: “Encontrámos portadas originais em madeira maciça e por isso teremos o modelo para fazer as que forem necessárias; as cantarias conseguimos fazer com a mesma técnica de corte e acabamento, os caixilhos serão em vidro duplo, mas em madeira e o mais próximo possível do que se imagina que eram os primeiros caixilhos de madeira que o edifício teve; vamos recuperar uma solução de telha idêntica ao original, entre outros pormenores”.
A caminho de Belém, mais precisamente na rua da Junqueira, prosseguem as obras de um outro projeto com imponente escala que vai contribuir para a revitalização da cidade antiga. Naquele que foi o palácio dos Condes da Ribeira, datado do século XVIII, funcionaram várias escolas, a última das quais o Liceu Rainha D. Amélia. Coube à Metro Urbe a conceção do projeto que contempla a reconversão do antigo palácio num hotel cinco estrelas com 65 quartos e a construção do Museu de Arte Contemporânea Armando Martins (MACAM).
O proprietário do espaço, o empresário Armando Martins, do grupo Fibeira, com atividade na promoção imobiliária, hotelaria e serviços, tem uma vasta coleção (já premiada pela Fundação ARCO de Madrid) de peças de artistas como Paula Rego, Vieira da Silva, José Malhoa, Almada Negreiros, Pedro Cabrita Reis, entre muitos outros.
“O projeto é 50% reabilitação profunda e 50% obra nova. Na parte do palácio ficará o hotel e aqui foi possível recuperar a fachada, a escadaria monumental e a capela. Todos os outros espaços estavam obsoletos”, explica o arquiteto João Pedras, um dos sócios fundadores da Metro Urbe. Já a parte nova, que acolherá o futuro museu, está a ser feita no logradouro onde existiram nos tempos do liceu o ginásio e os laboratórios de Físico Química. O término da construção está previsto para finais deste ano.
Obras que estão a moldar a velha Lisboa e a somar um novo capítulo na revitalização da cidade, num percurso com quase uma década.