Eleito, em novembro de 2023, presidente do Comité de Políticas Educativas da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), para um mandato de três anos, o ex-ministro da Educação do Governo de António Costa vai passar a acumular o cargo, no primeiro dia de 2025, com o de diretor da Agência Europeia para as Necessidades Especiais e a Educação Inclusiva. Com sede na Dinamarca, a organização independente conta com 31 países-membros, tendo por objetivo oferecer informação baseada em evidência aos diferentes Ministérios da Educação, de modo a melhorar as práticas inclusivas nos respetivos sistemas de ensino. Oportunidade para uma entrevista sobre os principais temas da agenda global para setor, na qual confrontamos João Costa, 52 anos, com as ligações à realidade nacional, após uma semana em que o número de alunos sem pelo menos um professor deu que falar.
Quais vão ser as suas prioridades na Agência Europeia para as Necessidades Especiais e a Educação Inclusiva?
A agência tem um plano plurianual que está a ser desenvolvido, mas com áreas que são prementes e que correspondem a pedidos dos países. Por um lado, a monitorização e a avaliação de políticas de inclusão, que passam pela produção de indicadores e análise comparada da legislação dos vários países. Há um trabalho sobre a sustentabilidade e a eficiência, também financeira, dos sistemas de apoio aos alunos com mais dificuldades. O envolvimento parental é outro tema bastante importante, até para a tal avaliação e para a definição dos passos seguintes. E ainda um grande foco na imigração e na inclusão dos alunos imigrantes. O perfil demográfico da Europa está a alterar-se muito rapidamente e, se as políticas não acompanharem, corremos o risco de criar novos focos de segregação em contexto educativo.
O conceito de inclusão, antes muito associado a pessoas com deficiência, é hoje bem mais abrangente, como ficou expresso em Portugal no chamado decreto da Educação Inclusiva, de 2018, no qual teve intervenção direta. O que é mais complexo: criar condições para um ensino eficaz aos alunos com deficiência ou aos estrangeiros que não falam a língua do país de acolhimento?
Para falarmos de inclusão, temos primeiro que identificar os focos de exclusão, as barreiras no acesso à aprendizagem. Uma deficiência, o contexto socioeconómico e familiar dos alunos, não falarem a língua de escolarização, barreiras socioemocionais que criam uma má relação com a escola, ou o cruzamento de várias. Dizer qual é a mais complexa é muito difícil. O que torna os modelos de educação inclusiva um trabalho muito ambicioso para as escolas é exatamente o facto de se afastarem de uma referenciação a priori, ou seja, de dizerem que, se o aluno é autista, tem de seguir estas medidas. Porque dois alunos autistas podem ter características completamente diferentes. O que é muito ambicioso e é mais complexo é haver esta quase personalização da resposta educativa.
Os professores podem ter apreciado as boas intenções, mas queixaram-se da sua aplicabilidade, referindo obstáculos como o aumento do trabalho burocrático, a excessiva quantidade de turmas atribuídas ou o exagerado número de alunos por turma. Reconhece estes entraves a uma inclusão bem-sucedida nas escolas?
Sem dúvida. Temos de ter a noção de que a inclusão é sempre um processo, não é algo que se decreta e já está. Por vezes, habituamo-nos a pensar negativamente sobre nós, mas Portugal é um país de referência na inclusão. Porque iniciou este trabalho nos anos 90 e nunca desistiu. Há 15 anos, estávamos a integrar alunos com deficiência nas escolas ditas regulares e também parecia impossível. Hoje já não é. O que parece por vezes impossível é a aplicabilidade deste modelo de inclusão, mas a ambição passa também por saber que a mudança é incremental. Não podemos baixar os braços.
Segundo dados do último PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), divulgados no final de 2023, os imigrantes tiveram resultados muito inferiores aos dos falantes nativos de Português. No aproveitamento escolar, a inclusão não parece a ideal.
Globalmente, é isso que os dados mostram, mas o PISA tem uma boa notícia nesse ponto, que é uma diferença muito significativa, no contexto português, entre os imigrantes de primeira e de segunda geração. O que significa que, embora seja um grupo com dificuldades acrescidas, a sua integração e o esforço na sua inclusão vai trazer resultados. Agora, aquilo que sabemos, e neste momento estamos muito despertos para isso com um grande crescimento dos alunos estrangeiros nas escolas portuguesas e europeias, não só em número mas também na sua diversidade, é que temos muitos que não trazem uma língua de comunicação, como o inglês, o francês ou o espanhol. Vêm do Sudeste Asiático e têm dificuldades acrescidas. Isto convida, de novo, a uma reconfiguração de metodologias, de abordagens ao ensino do Português como língua estrangeira. Não temos inclusão quando encontramos esses resultados escolares mais problemáticos para alguns grupos.
Em 2022, procedeu-se a uma alteração legislativa para tentar mitigar as diferenças.
Flexibilizámos o ensino do Português como língua não materna exatamente para dar às escolas mais liberdade para o desenvolvimento das suas próprias medidas. Portugal recebe todos os alunos na escola pública, não deixa nenhum de fora, e há alguns agrupamentos com bons exemplos de turmas carrossel, em que alunos são envolvidos em processos de mentoria dos que chegam, enquanto estes vão fazendo uma integração parcial no currículo, intercalada com o estudo do Português. Uma característica dos modelos de educação inclusiva é que a inclusão é muito incompatível com a excessiva standardização, sendo muito mais desafiante para os professores.
Desafiante ou esgotante?
Também. É mais cansativo porque dá mais trabalho. Mas a verdade é esta e está a ser discutida a nível global: ser professor numa sociedade que valoriza a diversidade é muito mais difícil do que ter sido professor no meu tempo de aluno, em que os níveis de abandono escolar se situavam acima dos 50 por cento. Hoje, graças ao trabalho das escolas e dos professores, não convivemos bem com a ideia do “não serves para estudar, vai-te embora”. Isto reconfigura a profissão e é muito bonito ver as experiências positivas de professores que conseguem reinventar-se e fazer quase milagres com estes alunos.
No caso português como em outros, encerra um duplo desafio, no sentido em que há cada vez menos professores para executar uma tarefa mais ambiciosa.
Por isso é que num fórum como a OCDE, por exemplo, o debate sobre a falta de professores, que afeta praticamente todos os países, é sempre feito acompanhado de um debate sobre o perfil e as competências dos professores. Para que todos os esforços na atração de jovens para a profissão sejam acompanhados de uma consciência muito clara do que é a profissão hoje. Isto tem que ver com a diversidade, mas também com a relação com a tecnologia, por exemplo. Ser professor neste contexto de transformação digital é completamente diferente do que era há 20 anos.
Já completou o primeiro de três anos à frente do Comité de Políticas Educativas da OCDE. Ao longo deste ano, ganhou melhor noção da escassez global de professores?
A discussão no âmbito da OCDE é muito rica e mostra que há um problema global com origens diferentes. Há países em que a dificuldade não está no recrutamento mas sim na manutenção na profissão. Há outros em que as dificuldades têm a ver com a demografia. Há países em que apenas nalgumas áreas faltam professores. Ouvi-los é fundamental. Em muitos casos, o abandono tem que ver com o excesso de tarefas administrativas e, por isso, também no âmbito da OCDE, há uma linha de exploração da Inteligência Artificial para a redução do trabalho administrativo dos professores. É preciso encontrar esses fatores de desmotivação, compreender a especificidade de cada país e, sobretudo, alargar muito a capacidade formativa por parte das universidades.
Essa é a prioridade que defende para Portugal.
Houve um momento em que os cursos de formação de professores não eram procurados. Neste momento, são e há alunos muito bons a ficarem de fora. Não faz sentido o país ter uma necessidade estrutural, os jovens já estarem a procurar a profissão novamente e não haver vagas nas universidades. Fui a primeira pessoa em funções no Ministério da Educação que disse claramente: “Temos um problema de falta de professores.”
No seu tempo de governante, que medida gostaria de ter introduzido na carreira dos professores e não conseguiu?
Gostava de ter podido aumentar o vencimento na entrada da carreira, para a tornar mais competitiva.
E a recuperação do tempo de serviço, que defendeu durante a campanha para as últimas Legislativas?
É óbvio que, se tivesse tido essa possibilidade, teria um mandato mais tranquilo. Sempre disse que a ambição dos professores era legítima. O governo como um todo tinha a preocupação de encontrar uma solução que fosse equitativa para todas as carreiras da administração pública. Com este novo Governo, criou-se agora uma situação de desequilíbrio entre carreiras.
O que pesou foi a obrigação de estar alinhado com o governo como um todo?
E também o facto de haver uma visão integrada para as carreiras da administração pública. A preocupação do governo que eu integrei era garantir que o que era feito numa carreira especial tinha reflexos nas carreiras gerais. Essa paridade foi agora descontinuada.
Por falar no atual Governo, chegou a acreditar na redução em 90% do número de alunos que estavam sem pelo menos um professor, em comparação com o ano anterior, anunciada pelo ministro Fernando Alexandre?
Só posso comentar com base nos dados a que tenho acesso e esses evidenciam que se estavam a comparar duas realidades não comparáveis, ou seja, o total de alunos que nalgum momento não teve uma aula durante o primeiro período com os alunos que não tinham aulas desde do início do ano letivo. Se fizermos a comparação entre o que é correspondente, temos um quadro relativamente parecido.
O ministro precipitou-se?
Houve falta de sentido crítico na análise dos dados quando fez o anúncio, mas não houve má-fé.
Que tópicos se discutem nos fóruns internacionais sobre a falta de professores?
A atratividade das carreiras, a gestão de expectativas do que é ser professor hoje e o desenvolvimento profissional. Por exemplo, no contexto da Inteligência Artificial, existem empresas que têm como objetivo o lucro a apresentarem produtos para a educação. Defendo que devem ser os professores a dizer às empresas do que precisam.
Vê a Inteligência Artificial (IA) como alternativa capaz de desempenhar o papel de professor, no futuro?
A pandemia ensinou-nos que não há máquina que substitua a essência humana da relação educativa.
A questão é mais centrada no apoio que pode dar ao trabalho do professor?
Sim, os benefícios observam-se na desburocratização do trabalho do professor, que cruza muito com o tema da inclusão, na personalização da resposta educativa. Ainda hoje fiz o exercício de pedir a uma ferramenta da IA para fazer um plano de aula específico para um aluno com determinadas características. E ela fez, num instante, com sugestões boas, para as quais tenho de olhar criticamente. Mas é algo que, de repente, está feito em menos de um minuto. Há países, como a Coreia do Sul e o Japão, que estão a realizar experiências com trabalhos de casa personalizados, ou seja, os alunos recebem trabalhos de casa dirigidos às suas dificuldades específicas. Também já existem tutoriais virtuais que ajudam os alunos a estudar.
É uma preocupação na OCDE a capacidade da IA para escrever teses de mestrado e de doutoramento?
Sou professor e a solução rápida para isso é fazer duas ou três perguntas ao aluno sobre o trabalho que entrega. Consigo perceber se foi feito por ele ou não. É preferível encarar como uma ferramenta de aprendizagem, como era a enciclopédia em papel.
Seguindo na tecnologia, tem havido avanços e recuos quanto à utilização de manuais escolares digitais e ao uso dos telemóveis dentro das escolas. Quais são os atuais focos de discussão sobre estes dois temas?
Temos a frente mediática e a académica, que tenta construir evidências. Os debates que me parecem mais sérios são os que procuram responder à pergunta: como é que os humanos aprendem num contexto de relação muito diferenciada com a tecnologia? Se as neurociências não nos puderem informar sobre como é que se está a desenvolver a aprendizagem neste momento, não vamos ter a resposta sobre o uso adequado da tecnologia. Devemos apostar numa dimensão qualitativa, ou seja, não é sobre ter ou não ter manuais digitais nem sobre ter ou não ter telemóvel. Mas sim quando é que os tenho e o que faço quando os tenho. Lembro-me de visitar uma escola do primeiro ciclo em Elvas com vários alunos estrangeiros. Cada um tinha um aluno português que era seu mentor e usavam o telemóvel para traduzir para a língua do aluno estrangeiro. Sempre me angustiou entrar numa escola e ver os miúdos todos agarrados ao telemóvel no intervalo, em vez de estarem a subir árvores ou a conversarem uns com os outros, mas, se aquela máquina não estivesse lá, aquela ajuda não estaria presente.
O segredo é encontrar a medida certa?
É um dilema que os sistemas educativos enfrentam ao nível global, uma vez que a tecnologia avança mais depressa do que o tempo que é preciso para decidir. Por outro lado, se não prepararmos os alunos para viver neste mundo digital, estamos a acelerar desigualdades e exclusão. Por outro lado ainda, não queremos que o sistema educativo fique refém das empresas que desenvolvem a tecnologia. Portanto, o que se vai tentando construir são os equilíbrios e, além disso, pilotar bem algumas experiências que existem.
Sobre a disciplina de Cidadania e de Desenvolvimento, o primeiro-ministro Luís Montenegro afirmou o seguinte: “Vamos reforçar o cultivo dos valores constitucionais e libertar esta disciplina das amarras a projetos ideológicos ou de fação.” Teme pelo futuro desta disciplina?
Nos debates que se seguiram, tornou-se evidente que aquilo que o primeiro-ministro se referia como amarras ideológicas tem que ver com educação sexual, igualdade de género e multiculturalismo. O combate a estas dimensões é uma agenda da extrema-direita, e eu espero que haja o bom senso de não se darem passos atrás quando nós sabemos, por exemplo, que o combate à violência doméstica, à violência no namoro, à gravidez precoce ou às doenças sexualmente transmissíveis se faz através da educação. As declarações do ministro da Educação tranquilizaram-me um pouco. Há muito mais ideologia em não querer cidadania na escola do que em cumprir a Constituição quando diz que compete aos sistemas educativos formar cidadãos informados e esclarecidos.