“A linguagem está sob policiamento. É um sintoma de que as democracias já falharam: permitiram essa ditadura do politicamente correto, uma forma eufemística de neutralizar o poder das palavras”

Foto: Marcos Borga

“A linguagem está sob policiamento. É um sintoma de que as democracias já falharam: permitiram essa ditadura do politicamente correto, uma forma eufemística de neutralizar o poder das palavras”

Conhecemos-lhe a militância crítica dedicada às mazelas da educação nacional, reconhecemos a sedução (e os anticorpos) de quem não prescinde de exercitar a palavra e o pensamento na ágora cultural. Mas António Carlos Cortez, nascido em 1976, agora investigador na Universidade do Minho e professor de Ensino de Formação para Adultos, com passado de livreiro e o mesmo gosto por jogar futebol de que se orgulha um Chico Buarque, diz, algo modestamente, ter uma “vida dedicada a coisas muito anacrónicas”. Isto é, os livros, a escrita, o ensino, a crítica literária (escreve desde 2004 a coluna Palavra de Poesia no Jornal de Letras, colabora com as revistas literárias Colóquio-Letras e Relâmpago, e prepara-se para inaugurar uma página de crítica de poesia na Ler). Este é ano de comemorações: o autor assinala 25 anos de produção poética, hoje contabilizada em 15 volumes, vários deles recebedores de prémios, a que se juntarão em breve Condor e Novos Demónios, Antigos Ritos. Ficcionista estreado no romance em 2022 com Um Dia Lusíada, Cortez acabou de editar Cenas Portuguesas10 Contos (Editorial Caminho, 272 págs., €17,90), um volume “quase pícaro” que cresceu a partir dos textos há muito guardados nas gavetas. Revelam um prosador audacioso, irónico, esbanjador de pistas literárias. É sobre a poesia e a prosa que mais deseja falar por estes dias, mesmo que o perfil público o empurre sempre para rever a matéria educativa e política dada.

Tem sido um porta-voz contra o digital no ensino. Preocupa-o que a mensagem se perca e o vejam como um Velho do Restelo?
O Velho do Restelo n’Os Lusíadas é muito importante: é a voz da consciência nacional. Só dentro desta ideologia oca dos últimos 40 anos é que ele é usado para caracterizar aqueles que não acreditam no País. E essa é uma interpretação errada: o Velho do Restelo é aquele que vem avisar os portugueses sobre a vã cobiça, a vã glória de mandar, a perseguição da fama, os ludibriados pelo cheiro da pimenta. Não tenho nada contra o digital: tenho é contra o uso instrumental e instrumentalizante do digital. Contra essa ideologia oca de se achar que, por os alunos saberem carregar em teclados e terem uma certa performance digital, vão ganhar discurso, linguagem, curiosidade científica. Hoje, os alunos das universidades estão todos com um tablet aberto nas aulas, mas não leram nenhum livro, não têm referências, não sabem escrever. As gerações com idades entre os 15 e os 35/40 anos foram espoliadas de um contacto com o livro, e no lugar onde menos se esperaria que o fossem: a escola. Não tenho receio nenhum de que me vejam como um Velho do Restelo, bem pelo contrário: vou juntar-me a outros Velhos de que gosto muito. Vasco Graça Moura avisou contra este provincianismo tecnológico, assim como Jorge de Sena ou David Mourão-Ferreira que, em 1993, no livro Magia, Palavra, Corpo, falava já da incuriosidade dos estudantes no Ensino Superior. Michel Desmurget, autor de A Fábrica de Cretinos Digitais, aborda os problemas de saúde, de perda de linguagem e de memória, de competências, de literacia literária e científica, por parte desta geração. Se nada se leu, e hoje em dia eles nada leem, de que é que vale o digital?

Informação não é conhecimento. O que falhou foram as sucessivas reformas educativas que secundarizaram as humanidades e decapitaram o espírito crítico e o espírito científico. A Ciência e o conhecimento só podem nascer do espanto e da novidade

Vasco Graça Moura e David Mourão-Ferreira viveram um momento histórico em que o complexo nacional era “estarmos atrasados e fechados ao mundo”. Hoje, somos as gerações com mais acesso a informação. O que falhou?
Informação não é conhecimento. O que falhou foram as sucessivas reformas educativas que secundarizaram as humanidades e propositadamente decapitaram o espírito crítico e o espírito científico. A Ciência e o conhecimento só podem nascer do espanto e da novidade – que é justamente o que não há no ensino. Os erros que cometemos são os mesmos de sempre, é como diz o Antero: “A nossa fatalidade é a nossa História.” Fascinados pelo moderno, somos como o Carlos da Maia e o Ega [em Os Maias], que vão a correr atrás do elétrico na esperança de virem a ser civilizados. Mas é como escreveu Eça de Queirós: a civilização fica-lhes curta nas mangas.

Que programa ideológico está por detrás dessa decapitação de mentes, capacidades, futuros?
A ideologia oca do nosso tempo tem que ver com um paradigma: nos últimos 40, 50 anos, tivemos a passagem da escola dos mestres, dos magísteres, para um modelo de massificação do ensino. Isso foi necessário em Portugal pelas razões que sabemos: a entrada no sistema escolar de uma massa grande de alunos que não estudaria se não tivesse havido a Revolução do 25 de Abril. E, desse ponto de vista, foi bom: entre 1974 e 1984/85, houve uma defesa intransigente da democracia e era necessário que a educação fosse de qualidade, com formação técnica, científica, humanística e artística. A partir de 1986, a reforma de bases do sistema educativo vai gradual e paulatinamente acantonar as humanidades, e acreditar que o progresso se faz apenas e só de modo imediato; ou seja, formando alunos nas áreas técnicas. O resultado é este: os países do Sul da Europa são mais pobres do que os do Norte. No caso português, temos ordenados dos mais baixos da União Europeia, mas insistimos numa formação deficiente no Ensino Secundário em que tudo é Powerpoint, tudo é gamificação, em nome de um suposto progresso – e isso serve a ideologia dos mercados. Ou seja, o ter países em que se juntam duas coisas: pessoas capacitadas para trabalhar tecnicamente bem, mas incapazes de pensar criticamente por que razão recebem maus salários.

Os maus professores, o fraco acesso dos alunos aos livros e a outros bens culturais… Tudo isto se resolveria com dinheiro e bons salários?
Claro que não. Um bom salário na função docente teria de ser proporcional ao grau de exigência. Não podemos exigir quando se paga tão mal. Por outro lado, quando não há condições de trabalho nos estabelecimentos de ensino, com horários esmagadores e um ambiente socioeconómico inimigo do professor e da escola… A verdade é esta: se houvesse bons salários, conseguiríamos cativar gente que veria na carreira docente um futuro. Mas nem isso temos: há professores congelados há anos no 4º escalão, no 7º escalão… Que jovens com qualidade querem, de facto, ser professores?

Está otimista com a mudança de governo e o apressado anúncio de medidas para a Educação, e a recuperação dos anos de carreira dos docentes?
Não. Depressa e bem, não há quem. Este acordo com os professores é somente para dividir os sindicatos, razão pela qual a Fenprof não o assinou. Na Educação, precisávamos de ter tempo, de fazer uma grande reflexão nacional com professores, secretários de Estado, ministro da Educação, ministro das Finanças, ministro da Cultura, primeiro-ministro, forças da oposição. De considerar que a Educação é suprapartidária, é de interesse nacional. De fazer com que as gerações que estudam hoje nas escolas portuguesas tenham as mesmas igualdades de oportunidades. As democracias estão a perder para os neofascismos pelos mesmos erros que cometeram nos anos 1910, 1920, 1930. Quando não defendemos o bem comum, quando não defendemos as classes médias, quando decapitamos as pessoas de saber e de utopia, estamos a hipotecar o futuro. O sonho dos regimes totalitários é que as democracias falhem nas políticas sociais, na ajuda aos mais pobres. E, no fundo, as democracias europeias venderam a alma ao diabo. Enquanto se fez negócio com a Rússia de Putin, esteve tudo bem; agora temos o novo negócio da guerra, vamos ver aonde isso nos vai levar. Mas, regressando à pergunta, se antes eu já não estava otimista com um governo que poderia ter feito muito mais em oito anos e não fez, confesso que me pergunto muitas vezes se estes políticos de hoje sabem quem foram Olof Palme, Willy Brandt e os pais da social-democracia, porque muitas políticas que defendem nada têm a ver com um social-democrata.

Quando não defendemos o bem comum, quando não defendemos as classes médias, quando decapitamos as pessoas de saber e de utopia, estamos a hipotecar o futuro

Que políticos admira?
Não sou sindicalizado nem partidarizado: sou livre. Mas sou um homem de esquerda. Tenho uma profunda admiração por políticos que, se tivessem hoje a oportunidade, atuariam de forma decisiva contra a corrupção de Estado. Admiro Francisco Sá Carneiro, Álvaro Cunhal, Francisco Salgado Zenha. Admiro políticos que enfrentaram o fascismo, que combateram ao lado dos estudantes, que eram jovens e não traíram a juventude, que disseram não à Guerra Colonial. O que aconteceu em Portugal é triste porque o aburguesamento cavaquista trouxe-nos até esta indigência, à competição desenfreada, ao individualismo – incluindo o individualismo transformado em ideologia do sucesso. Esta é uma palavra que eu abomino. Os rankings de sucesso não têm nada que ver com educação. A educação serve para formar eticamente uma pessoa, e para esta mobilizar o que tem de melhor de si para poder ser feliz durante o tempo que tem para viver. Isto é utópico, é romântico. Se preferem o realismo mais cruel, o pragmatismo mais estupidificante, então é pena. Significa que não há ideal. Se não há ideal, quando tudo é pragmático, utilitário, o homem está a secar as suas faculdades: a imaginação, a sensibilidade, a abertura ao outro, o tentar compreender o outro.

As gerações mais novas, atraídas pelos populismos, estão a confundir esses ideais com os chavões atuais do combate à corrupção, dos limites à imigração?
Sim. A linguagem está sob policiamento. É um sintoma de que as democracias já falharam: permitiram essa ditadura do politicamente correto, que é uma forma eufemística de neutralizar o poder das palavras. Não podemos dizer que Adolf Eichmann era um simples funcionário nazi [alusão ao ensaio de Hannah Arendt sobre o julgamento daquele em Jerusalém, Eichmann em Jerusalém – Uma Reportagem Sobre a Banalidade do Mal, de 1963]: ele é um criminoso de guerra. As palavras têm peso, como diz Carlos de Oliveira. Tudo isto é bacoco, perigoso e, até certo ponto, infantil. Mas o diabo está nos detalhes, divide, diverte.

Comemora este ano 25 anos de poesia. É aí que o leitor pode encontrar a sua biografia, a sua Lisboa, as leituras e músicas importantes?
Sim. Sobretudo as leituras e Lisboa. Mas as cidades e os lugares, tais como as pessoas, são o que nós imaginamos delas. A música tem um papel preponderante no meu processo da escrita. Há uma linha – Bauhaus, Joy Division, Nick Cave, Leonard Cohen, The Smiths, Legião Urbana – a que se juntam outras sonoridades enquanto escrevo. Os poemas nascem do que essa banda sonora produz em termos de imaginação. Por exemplo, Cenas Portuguesas foi escrito ouvindo Jorge Palma, Amália Rodrigues, José Mário Branco, Trovante, Fausto… Ainda conheci, como dizia Cardoso Pires, uma certa “Lisboa à balda”, com essas figuras bairristas curiosas que aparecem no livro, como, por exemplo, a mulher que vendia passadeiras na Estrada de Benfica e que gritava um pregão. Ou o sapateiro Armando, assim chamado não por acaso, já que uma figura muito importante na minha vida foi o meu padrinho de batismo Armando, um homem da Voz do Operário que tinha a 4ª classe, e que foi sapateiro e fiel de armazém na Lisboa dos anos 1940. É a ele que devo muitas leituras.

Armando é o protagonista de País Real: Um Regresso, distinguido com o Prémio do Conto Portugal 2050 – APE/Lab 50, agora também incluído em Cenas Portuguesas.
Esse é um conto que imagina Portugal como uma distopia, para usar um termo muito em voga, e que coloca este sapateiro Armando num país sob uma ditadura digital já normalizada, em que ele é o único a ter bibliotecas – no caso, duas bibliotecas. Armando é também alguém que resiste, que lê Jorge de Sena, que no seu último dia de vida vai consultar o horóscopo de Fernando Pessoa sobre o futuro de Portugal.

Cenas Portuguesas explora temas como a PIDE, a Censura, os ideais perdidos dos anos 1960 ou a sida, mas também as figuras tristes, os “engenheiros” dados às “homilias” palavrosas. É a realidade aqui ao lado?
O poeta maravilhoso que é Manuel Resende tem esse poema em que diz “não vou eu chatear a realidade”. A “realidade” é a literatura. No fundo, alguns destes contos são sobre os pequenos poderes e sobre as frustrações da vidinha, da realidade ali mais à mão de semear, da tristeza contentinha do português que não mudou assim tanto.

E Condor, livro de poesia que conclui a trilogia iniciada com Jaguar (2019) e Diamante (2021), e que sairá para as bancas em novembro, dedica-se à realidade?
Otávio Paz tem uma definição de poesia que me agrada muito: “A poesia é uma erótica verbal.” Condor é um livro com 24 poemas longos torrenciais, nem mais nem menos; uma espécie de estiramento do poema em prosa para experimentar linguagem e resgatar um filão que tem grandes momentos em poetas como Ruy Belo, António Nobre, Álvaro de Campos, mas também Helder Moura Pereira ou Nuno Júdice. São poemas que exigem um estar ali com o corpo do poema, a calibrar imagens, frases, ritmos, a fazer um trabalho de ficcionalização da biografia. Ruy Belo escrevia poemas longos, tomando duches frios para se manter acordado durante a noite e escrever dezenas de versos [para A Margem da Alegria]. É claro que a experiência de Condor não é essa. Mas durante algum tempo, escrevendo esses 24 poemas longos, é como se estivesse nesse embate poético, erótico, sensual, carnal, corporal, com a palavra, com as imagens de uma vida – a minha, a dos outros, a dos que se cruzaram comigo.

Denunciando com grande veemência a existência de uma crise profunda da literacia literária, o que o leva a publicar tanto?
Mas é precisamente por tudo o que eu digo que publico ensaio, poesia, contos, um romance. E é também por um motivo muito simples: eu gosto de viver. Jorge de Sena tem aquele verso “fiel dedicação à honra de estar vivo”. E eu não diria menos. Isto [a vida] não dura muito, é breve. Então, com todos os falhanços, que são muitos, com todos os erros, que são alguns, façamos com que no final possamos dizer: “Eu dei quanto pude com algum talento que me foi dado.” Se tenho a ilusão bacoca de que a literatura vai salvar o mundo? Não tenho. Escrever é outra coisa. Escrevo porque me dá gozo, porque me divirto, porque é a minha maneira de estar implicado no real. E sei que há momentos mágicos, que haverá quem leia os poemas e os livros e que, devagar, os vai multiplicando. É como diz Alberto Caeiro: “Ser poeta não é uma ambição minha. É a minha maneira de estar sozinho.” 

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