“O governo Lula tem de fazer mais para despolitizar as Forças Armadas brasileiras, porque aqueles que estiveram envolvidos nos planos golpistas permanecem quase todos impunes”

“O governo Lula tem de fazer mais para despolitizar as Forças Armadas brasileiras, porque aqueles que estiveram envolvidos nos planos golpistas permanecem quase todos impunes”

É um académico que sabe e adora comunicar. Nas redes sociais e em órgãos de comunicação social de referência (The New York Times, Foreign Policy, Americas Quarterly, El País, ZDF, Globo) é capaz de comentar – em português, inglês ou alemão – o que se passa no mundo e também no país onde escolheu viver, o Brasil. Professor e investigador na Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo, Oliver Stuenkel, nascido há 42 anos em Dusseldorf, especializou-se nos desafios colocados pelos países do chamado Sul Global ao Ocidente.

Escreveu há poucas semanas [na Foreign Policy] que uma das ações menos conhecidas da administração de Joe Biden tem a ver com a forma como se envolveu na disputa eleitoral entre Lula da Silva e Jair Bolsonaro. Os EUA salvaram a democracia brasileira?
Em primeiro lugar, é importante lembrar o papel que alguns outros atores tiveram nesse processo. Em particular, a mobilização da sociedade civil. Essa dinâmica interna tem de ser destacada. Porém, através de uma série de conversas e entrevistas com especialistas em assuntos militares, com políticos e diplomatas brasileiros, começámos a perceber que a pressão dos Estados Unidos ao longo do ano 2022 parece ter sido crucial para dividir e alertar alguns elementos golpistas nas Forças Armadas brasileiras. Os EUA fizeram saber que não aceitavam uma rutura democrática no Brasil. Criou-se um ambiente muito hostil a esse tipo de ação, ao contrário do que se verificou em 1964 [Washington apoiou a conspiração e o golpe contra o então Presidente João Goulart, instaurando um regime militar que vigorou até 1985].

Como se exerceu a pressão americana?
Boa parte ocorreu nos bastidores. Sabemos das viagens dos dirigentes dos EUA. É muito raro que, num período eleitoral, o chefe da CIA, o secretário da Defesa, o conselheiro de Segurança Nacional, entre outros, visitem o mesmo país. Sabemos hoje que, para o setor antidemocrático das Forças Armadas brasileiras, a falta de apoio dos EUA foi um fator-chave. O ex-vice-presidente do Brasil, depois da derrota eleitoral, explicou aos seus seguidores que não havia mais nada a fazer. Ele sabia que uma parte da população desejava que as Forças Armadas dessem um golpe de Estado.

Está a referir-se ao general Hamilton Mourão?
Sim. Ele veio dizer [aos bolsonaristas] que entendia a insatisfação, mas que o ambiente internacional não o permitia. Outra explicação importante. Os EUA não pressionaram para que existisse uma vitória do Lula, pressionaram para que os generais reconhecessem o resultado eleitoral.

Para que houvesse respeito pela vontade popular?
Exato, e isso é muito significativo.

Porquê?
Por norma, vemos o envolvimento dos EUA com muito ceticismo, a perceção é de que só ocasionalmente defendem a democracia. Por terem vários regimes autoritários como aliados. Parece-me que Washington não queria uma rutura democrática no Brasil, talvez por recear um maior ostracismo brasileiro no Ocidente e isso facilitar a atuação chinesa no maior país da América do Sul. A China não se preocupa se os seus parceiros têm governos democráticos ou respeitam os direitos humanos. Com frequência, consolida a sua influência em Estados em situação de isolamento. Vejamos o que aconteceu com a Venezuela, com a Rússia e com uma série de países africanos que estão sob sanções ocidentais…

Interesses estratégicos…
Por um lado, evitar essa abertura estratégica à China; por outro, o fator Trump. Jair Bolsonaro posicionou-se como um dos principais fãs do ex-Presidente americano e questionou a legitimidade das eleições, em 2020. Para a administração Biden era muito importante evitar uma escalada autoritária na maior democracia do subcontinente.

Podemos dizer que a estrutura do Estado brasileiro já está desbolsonarizada? Os generais golpistas foram afastados?
Houve avanços, mas é um processo longo. Há que dizer que o Brasil, desde a sua independência, vive numa tensão permanente entre civis e militares. Vimos como logo no início do século XX – com o tenentismo – se criou a ideia de que os militares são mais patriotas, mais comprometidos com a nação, mais competentes, menos corruptos e que podem envolver-se em aventuras democráticas. Em momentos de crise, quando os civis se comportam de forma irresponsável, permanece essa ideia de que os militares precisam de atuar. É uma visão profundamente paternalista, como se os civis fossem crianças e os militares os adultos que precisam de intervir e supervisionar o que acontece. Isto é algo que um só governo não consegue eliminar.

Como assim?
É preciso demitir generais, afastar quem não denuncia situações graves. Como dizemos no Brasil, “o buraco é mais em baixo”. É uma questão que tem a ver com a educação e a formação dos militares, é preciso mudar os currículos nas academias. As nossas Forças Armadas nunca reconheceram de forma explícita as violações cometidas durante a ditadura [1964-1985] e isso deve-se ao processo de transição para a democracia, que foi excessivamente harmonioso.

Lula gostaria de ser um ator internacional como Modi, que tem um papel-chave na contenção da China. Só que a Índia é uma potência nuclear e tem o espaço de manobra estratégica que falta ao Brasil

Harmonioso?
Não teve nada a ver com o que aconteceu na Argentina, nos anos 80, em que houve um colapso moral das Forças Armadas e uma grave crise económica devido à guerra com o Reino Unido, como retrata o filme Argentina 1985 [realizado por Santiago Mitre e protagonizado por Ricardo Darín]. No Brasil foi diferente. Foram os generais que conduziram a transição e ditaram que não haveria aquilo que eles designavam como “caça às bruxas”. Essas exigências foram cumpridas e, 35 anos depois, surge um indivíduo [Bolsonaro] com uma narrativa enviesada e romantizada da ditadura militar.

Que pode então ser feito?
O governo Lula tem de fazer mais para despolitizar as Forças Armadas, porque aqueles que estiveram envolvidos na elaboração de planos golpistas, aqueles que planearam a violência de 8 de janeiro de 2022, permanecem quase todos impunes.

Há processos a decorrer…
São processos simbólicos. Uma coisa é condenar cidadãos que estiveram em Brasília a destruir propriedade pública, outra coisa são os generais. Por enquanto, tudo indica que esses oficiais de alto escalão sairão ilesos. Temos o direito de questionar se algum general, se algum coronel, será expulso, será preso… No Brasil, o controlo civil sobre as Forças Armadas é muito mais recente do que parece. Só se criou um Ministério da Defesa em 1999. Antes, as chefias militares tinham assento no gabinete presidencial e faziam automaticamente parte do governo. O primeiro responsável pela pasta da Defesa com competência direta para decidir, por exemplo, orçamentos militares, foi Nelson Jobim [2007-2011]. Os outros cinco ministros civis que o antecederam não tinham poder nenhum.

Com Lula, a diplomacia brasileira voltou a ser “ativa e altiva”?
Esse conceito concebido por Celso Amorim [ex-ministro dos Negócios Estrangeiros e atual conselheiro do Presidente] voltou a ser recuperado logo a seguir às eleições de 2022. Ainda antes de tomar posse, em novembro desse ano, Lula foi ao Egito, à Cimeira do Clima, anunciar: “O Brasil está de volta.” De certa forma, é verdade, devido ao isolamento internacional causado por Jair Bolsonaro. O país deixou para trás a abordagem trumpista e de abandono do multilateralismo. Está novamente envolvido no combate às mudanças climáticas, regressou ao G-20, recebeu convite para participar no G-7…

Não é estranho que o Brasil tenha três grandes atores na sua política externa – Lula, Celso Amorim e Mauro Vieira [ministro dos Negócios Estrangeiros]? Que nem sempre parecem estar em sintonia…
Do ponto de vista geopolítico, está de volta, está mais ambicioso do que no tempo de Bolsonaro. Neste momento, tem uma abordagem que alguns chamam de não alinhamento, outros de multialinhamento, de neutralidade estratégica, de equidistância face às principais potências. É um caminho cada vez mais difícil num ambiente de grande turbulência geopolítica, com as relações entre os EUA e a China, ou entre a Rússia e o Ocidente, a piorarem. Claro que o Brasil quer manter e fortalecer os laços com o Ocidente, mas é o maior comprador mundial de diesel russo e também um dos maiores importadores de fertilizantes da Rússia. Lula já disse explicitamente que quer que Vladimir Putin esteja na cimeira dos G-20, no Rio de Janeiro, em novembro.

Um anúncio surpreendente…
O Brasil assinou o Estatuto de Roma [acordo que permitiu criar o Tribunal Penal Internacional e que entrou em vigor em 2002] e, portanto, em princípio, terá de prender o Presidente russo se este entrar em solo brasileiro. Isto parece o novo normal do Brasil. Em alguns momentos, parece estar do lado do Ocidente; em outros, não. Creio que existe uma intenção de aparente neutralidade, mas depois há a parte retórica. Lula gosta de falar de improviso, os assessores dele ficam em desespero. As palavras importam, pesam e muitas vezes atrapalham. Já tivemos afirmações dele muito controversas, das quais discordo em absoluto – sobre Zelensky e a Ucrânia, sobre Maduro e a Venezuela, sobre Israel e o Holocausto.

Lula está a comprometer a capacidade do Brasil de mediar alguns conflitos? Ou está a tentar ser o líder do Sul Global?
Ele gostaria de envolver mais o Brasil nas grandes questões. Sem dúvida que as nações do Sul Global têm de se sentar à mesa na hora de debater a reforma das instituições internacionais. O diretor do FMI tem de continuar a ser sempre um europeu? O presidente do Banco Mundial tem de ser americano? Os EUA e o Ocidente ainda ditam demasiadas condições. Porém, o que pode o Brasil fazer pelo futuro da Ucrânia? Conversei recentemente com dirigentes ucranianos e, na perspetiva deles, os governantes brasileiros demonstram ignorância sobre o conflito.

Um comentário que, presumo, lhe tenha sido feito na Conferência de Segurança de Munique [16-18 fevereiro].
Já antes ouvira algo assim. Em Munique não houve sequer uma participação brasileira de alto nível, com ministros e o Presidente [Lula estava na Etiópia, na Cimeira da União Africana]. A perceção na Ucrânia e no Ocidente é de que o Brasil tem simpatia pela Rússia.

Como é que Lula pode contrariar essa perceção?
Um dos países que inspiram o Brasil é a Índia. Narendra Modi [primeiro-ministro da Índia] também se posiciona de forma ambígua, compra armas e energia russas, mas é visto como um aliado do Ocidente. Creio que Lula gostaria de ser um ator internacional como Modi, que tem um papel-chave na contenção da China. Só que a Índia é uma potência nuclear e tem o espaço de manobra estratégica que falta ao Brasil.

Daí os entendimentos nos BRICS?
Os BRICS tornaram-se um instrumento-chave da política externa brasileira. Até Bolsonaro, que se apresentou como o candidato pró-EUA e anti-China, acabou por abraçar os BRICS – estava tão isolado no Ocidente, que se virou para os BRICS como uma espécie de seguro de vida diplomático. Mas a única coisa que une esse grupo é o incómodo com a liderança internacional dos EUA. Só que o Brasil possui uma visão reformista, não revolucionária, das organizações internacionais existentes. Por isso se opôs ao alargamento dos BRICS. Lula não quer pertencer a um clube antiocidental. Na próxima cimeira, em outubro, na Rússia, Putin pode ter a seu lado os presidentes do Irão, da Síria, da Bielorrússia…

O que pensa do fracasso das negociações entre a UE e o Mercosul?
Uma oportunidade perdida para todos. Parte das preocupações ambientalistas europeias em relação ao acordo é um protecionismo velado, porque não o assinar não vai preservar um centímetro de floresta no Brasil. Pelo contrário. O Brasil teria de adotar padrões ambientais muito mais exigentes. A alternativa é que o Brasil amplie agora o seu comércio com a China, que se importa muito menos com as questões ambientais.

Palavras-chave:

Mais na Visão

Mais Notícias

Mariana Patrocínio passeia por Londres em família

Mariana Patrocínio passeia por Londres em família

De Zeca Afonso a Adriano Correia de Oliveira. O papel da música de intervenção na revolução de 1974

De Zeca Afonso a Adriano Correia de Oliveira. O papel da música de intervenção na revolução de 1974

Cláudia Vieira e as filhas em campanha especial Dia da Mãe

Cláudia Vieira e as filhas em campanha especial Dia da Mãe

Passatempo: ganha convites para 'A Grande Viagem 2: Entrega Especial'

Passatempo: ganha convites para 'A Grande Viagem 2: Entrega Especial'

Prepare a mesa para refeições em família

Prepare a mesa para refeições em família

EDP Renováveis conclui venda de projeto eólico no Canadá

EDP Renováveis conclui venda de projeto eólico no Canadá

25 exposições para ver em maio, em Lisboa e no Porto

25 exposições para ver em maio, em Lisboa e no Porto

Azores Eco Rallye: as melhores fotos do Peugeot e-308 da Exame Informática

Azores Eco Rallye: as melhores fotos do Peugeot e-308 da Exame Informática

5 tipos de mães - descubra qual o seu e de que forma isso afeta o seu filho

5 tipos de mães - descubra qual o seu e de que forma isso afeta o seu filho

Joana Villas-Boas: a mulher que não larga o novo presidente do FC Porto

Joana Villas-Boas: a mulher que não larga o novo presidente do FC Porto

Sony anuncia Reon Pocket 5, um ar condicionado para usar dentro da roupa

Sony anuncia Reon Pocket 5, um ar condicionado para usar dentro da roupa

De férias, Demi Moore deslumbra ao lado das filhas

De férias, Demi Moore deslumbra ao lado das filhas

Os

Os "looks" de Zendaya na promoção de "Challengers", em Nova Iorque

Mono No Aware, a nova exposição da artista  visual Kruella d’Enfer

Mono No Aware, a nova exposição da artista visual Kruella d’Enfer

Portugal faz bem: Margarida Lopes Pereira cria objetos a partir de esponja reciclada

Portugal faz bem: Margarida Lopes Pereira cria objetos a partir de esponja reciclada

25 de Abril, 50 anos

25 de Abril, 50 anos

Pagamentos com cartões explicados a

Pagamentos com cartões explicados a "principiantes"

25 de Abril contado em livros

25 de Abril contado em livros

O futuro começou esta noite. Como foi preparado o 25 de Abril

O futuro começou esta noite. Como foi preparado o 25 de Abril

A FeLiCidade faz-se ao som de música, cinema e literatura no CCB

A FeLiCidade faz-se ao som de música, cinema e literatura no CCB

Pigmentarium: perfumaria de nicho inspirada na herança cultural da República Checa

Pigmentarium: perfumaria de nicho inspirada na herança cultural da República Checa

Ratos velhos, sistema imunológico novinho em folha. Investigadores descobrem como usar anticorpos para rejuvenescer resposta imunitária

Ratos velhos, sistema imunológico novinho em folha. Investigadores descobrem como usar anticorpos para rejuvenescer resposta imunitária

Caras conhecidas atentas a tendências

Caras conhecidas atentas a tendências

Em “Cacau”: Sal foge com Cacau para o Brasil para a juntar a Tiago

Em “Cacau”: Sal foge com Cacau para o Brasil para a juntar a Tiago

Tempo de espera para rede de cuidados continuados aumentou em 2022

Tempo de espera para rede de cuidados continuados aumentou em 2022

Os nomes estranhos das fobias ainda mais estranhas

Os nomes estranhos das fobias ainda mais estranhas

Conheça os ténis preferidos da Família Real espanhola produzidos por artesãs portuguesas

Conheça os ténis preferidos da Família Real espanhola produzidos por artesãs portuguesas

Azores Eco Rallye: elétricos ‘invadem’ as estradas de São Miguel este fim de semana

Azores Eco Rallye: elétricos ‘invadem’ as estradas de São Miguel este fim de semana

25 peças para receber a primavera em casa

25 peças para receber a primavera em casa

Grafologia: o que a sua letra diz sobre si

Grafologia: o que a sua letra diz sobre si

Vencedores do passatempo ‘A Grande Viagem 2: Entrega Especial’

Vencedores do passatempo ‘A Grande Viagem 2: Entrega Especial’

Exame Informática TV nº 859: Veja dois portáteis 'loucos' e dois carros elétricos em ação

Exame Informática TV nº 859: Veja dois portáteis 'loucos' e dois carros elétricos em ação

A reinvenção das imagens

A reinvenção das imagens

Sofia Arruda desvenda o nome da filha

Sofia Arruda desvenda o nome da filha

Inédito: Orangotango visto a criar uma pasta feita de plantas para curar ferida

Inédito: Orangotango visto a criar uma pasta feita de plantas para curar ferida

Jardins Abertos em Lisboa: Conhecer a cidade verde  em quatro fins de semana gratuitos

Jardins Abertos em Lisboa: Conhecer a cidade verde em quatro fins de semana gratuitos

O tom de batom que está de volta e todas queremos usar

O tom de batom que está de volta e todas queremos usar

TAG Heuer Formula 1 acelera para 2024 com Kith

TAG Heuer Formula 1 acelera para 2024 com Kith

Vista Alegre: Há 200 anos de memórias para contar

Vista Alegre: Há 200 anos de memórias para contar

Ordem dos Médicos vai entregar a ministra

Ordem dos Médicos vai entregar a ministra "seis prioridades para próximos 60 dias"

Tesla introduz novo Model 3 Performance

Tesla introduz novo Model 3 Performance

Tarifário da água no Algarve abaixo da média nacional é erro crasso -- ex-presidente da APA

Tarifário da água no Algarve abaixo da média nacional é erro crasso -- ex-presidente da APA

Regantes de Campilhas querem reforçar abastecimento de água e modernizar bloco de rega

Regantes de Campilhas querem reforçar abastecimento de água e modernizar bloco de rega

Salgueiro Maia, o herói a contragosto

Salgueiro Maia, o herói a contragosto

Portuguesa Aptoide vende participação em projeto de loja de aplicações para carros

Portuguesa Aptoide vende participação em projeto de loja de aplicações para carros

Parceria TIN/Público

A Trust in News e o Público estabeleceram uma parceria para partilha de conteúdos informativos nos respetivos sites