“Não há uma linha clara a separar o nível em que a ansiedade é crucial para a sobrevivência da espécie daquele em que é capaz de destruir vidas”

“Não há uma linha clara a separar o nível em que a ansiedade é crucial para a sobrevivência da espécie daquele em que é capaz de destruir vidas”

“A depressão é um segredo de família que toda a gente tem.” Esta é uma das ideias partilhadas na eloquente palestra TED de Andrew Solomon, em outubro de 2013, que totaliza mais de 13 milhões de visualizações. À beira de completar 60 anos, no final do mês, e com um percurso de vida assinalável, o autor de O Demónio da Depressão (Quetzal, 816 págs., €24,40, 2ª edição) – distinguido com o National Book Award, em 2001, e na lista dos 100 melhores livros dessa década, do jornal The Times – empreendeu uma luta sem tréguas contra o “funeral no cérebro” (metáfora de Emily Dickinson) que o levou a querer por fim à vida. Viajou pelo mundo, entrevistou médicos e pacientes, conheceu muitas formas de tratamento e fez um enquadramento político, histórico e social da doença. 20 anos depois da primeira depressão grave, o autor atualizou este atlas no epílogo da nova edição. Nascido em Manhattan e com ascendência judaica, formou-se em Inglês e Literatura, doutorou-se em Psicologia e é ativista e filantropo em direitos LGBT, saúde mental, educação e artes. Na escrita, colaborou com o jornal The New York Times e a revista The New Yorker, entre outros. É casado, tem dois filhos, agora adolescentes, e está a escrever um novo livro sobre suicídio juvenil. Na conversa intimista, via Skype, com a VISÃO, a partir de Nova Iorque, Andrew Solomon deixa uma nota de esperança e sublinha a importância do amor em tempos sombrios.

A sua descida ao inferno aconteceu três anos depois da morte da sua mãe, do fim de um relacionamento e do seu regresso aos EUA. O que se passou?
Eu achava que era resiliente. Ao ver-me no meio de uma depressão terrível, acreditava que bastava ter autodisciplina e força de vontade para a superar, mas percebi que não era capaz vencer obstáculos sozinho, de lidar com o que estava a acontecer-me ou de tomar conta de mim. Deixei de estar no topo do mundo e a vida, como a conhecia, acabou. Senti-me patético. Foi uma experiência dolorosa e devastadora.

Levou cinco anos a escrever este tratado. Porque o fez?
O livro deu-me um propósito e serviu para me redimir do tempo desperdiçado, em que estava mal e a vida me parecia inútil. Durante esse período, fui bem acompanhado, não passei dificuldades financeiras, não tinha filhos e pude voltar a casa do meu pai para ter apoio. Quando não estou tão deprimido, tolero a ideia de explorar o que pode haver de positivo no processo, algo que muita gente não está disposta a fazer, evitando o assunto. Entendi que tinha a responsabilidade moral de ajudar quem estivesse a passar por isto.

Ser homossexual pesou na decisão, uma vez que é ativista LGBT?
Foi outro fator significativo. Em jovem, mantive essa faceta secreta por achar que se os outros soubessem a verdade sobre mim ficariam horrorizados, porque o tema era malvisto na altura e, em certa medida, ainda é. Fui ajudado e decidi não ter mais segredos. Saí do armário e quis contribuir para que outros, como eu, se sentissem menos sós. Já basta sentirmo-nos sós quando estamos deprimidos.

Ainda se diz que ter depressão é só para quem pode. O que pensa disso?
A negligência da saúde mental de quem é pobre é um desastre humanitário e económico. No meio de tantas dificuldades que não escolheram, as pessoas carenciadas tendem a não reconhecer nem a tratar o problema.

A causa da doença está na química cerebral ou em fatores ambientais?
O problema pode ser visto desses dois ângulos. Tenho pena de não ter compreendido mais cedo a interação entre um cérebro vulnerável à doença, fatores hereditários – a minha mãe sofria de depressão, embora menos grave do que a minha – e circunstâncias adversas, que me levaram ao limite. Fui incentivado a fazer terapia pela minha mãe, mas era jovem e achei que não era preciso. Se lidar com várias fontes de stresse ao mesmo tempo, tenho a impressão de estar a aproximar-me de um território perigoso, mas às vezes isso também acontece sem um motivo óbvio. É uma combinação de variáveis externas e internas.

O que diferencia a depressão, a tristeza e o luto?   
A tristeza faz parte do ser humano e está associada às experiências de amor e paixão, que não existem sem o sentimento de perda. Há dias, enviaram-me um vídeo do meu filho a jogar futebol quando tinha 7 anos. Agora, com 14, ele viu e sentiu-se: “A criança que eu era desapareceu!” Faz parte. O meu pai morreu há 20 meses e não fiquei desfeito como com a morte da minha mãe. Penso nele diariamente, está no meu carácter e ainda bem. Esse luto não requer comprimidos. No luto da minha mãe, fiquei paralisado, não conseguia escrever, dormir, tomar um duche e, quatro anos depois, mal conseguia funcionar. Fiquei muito tempo paralisado. O oposto da depressão não é a felicidade, é a falta de vitalidade. As emoções difíceis não devem ser obliteradas, apenas devemos impedir que escalem ao ponto de ser incapacitantes. 

Levou algum tempo até funcionar bem o tratamento com antidepressivos, até pelos efeitos secundários, na libido ou no peso, por exemplo. E agora?  
Sim, alguns foram horríveis, mas não menos do que os da depressão. Há 18 meses iniciei a toma de um medicamento e, embora não tendo excesso de peso, queria ter menos. Sei que a idade também contribui para isso e comecei a fazer exercício regularmente. Perdi um quarto do meu peso num curto período, mantendo o regime alimentar. Tenho mais saúde e energia e isso influencia a forma como os outros lidam comigo. Dizemos que a forma como nos mostramos não conta, mas conta.

As reservas que existem face aos antidepressivos têm razão de ser?
É complicado. Por um lado, ajudam a regular o cérebro quando está num caos e salvaram-me a vida. Os fármacos que temos são primitivos, embora sejam melhores do que há 50 anos. Por exemplo, não sabemos como ou porque é que funcionam. Aumentar os níveis de serotonina no cérebro ajuda muitas pessoas, mas não se fica deprimido por ter baixos níveis dessa substância. Continuo a tomá-los – são agora menos do que no início – e suponho que o farei para o resto da vida. Por outro lado, é verdade que há abuso no consumo e prescrições que não são bem feitas, ou porque os médicos nem sempre sabem o que fazer ou pela pressão das farmacêuticas. É simplista olhar só para o modelo farmacológico, que nos afasta de compreender a complexidade do problema: a depressão envolve as questões do trauma, até daquele que é causado pela doença, e tem uma componente espiritual, emocional, experiencial, além de estar ligada a aspetos da personalidade e ao amor.

A cura também envolve o amor…
É comum perguntarem-me como consegui passar por sérias crises depressivas e ficar suficientemente bem para escrever um livro, casar, ter filhos, entre outras coisas. Como disse, muita coisa jogou a meu favor. Tive amigos com quem contei e cresci numa família que sempre amei e me amou. Apesar de ter discussões acesas com os meus pais, eles foram pilares sem os quais nunca conseguiria chegar aonde estou: em recuperação. Tratar uma depressão não depende só de um comprimido, temos de lidar com os relacionamentos humanos, as conceções que temos de nós, encontrar um lugar no mundo, perceber se há pessoas que nos amam, como queremos lidar com elas e incorporar o que sabemos sobre nós nessas interações.

O oposto da depressão não é a felicidade, é a falta de vitalidade. As emoções difíceis não devem ser obliteradas, apenas devemos impedir que escalem ao ponto de ser incapacitantes

O que descobriu ao explorar vários tratamentos e técnicas, científicas ou nem tanto?
Fi-lo no âmbito da investigação para o livro e por curiosidade. Concluí que tudo funciona, mas não da mesma maneira nem para toda a gente. Há que estar aberto a outros pontos de vista, até os mais bizarros. Conheci pessoas de outras culturas para quem a minha forma de tratar a doença também era bizarra e obscura. No Senegal, experimentei um ritual de exorcismo em que não acreditava, mas funciona para quem o faz. Podem existir estudos a mostrar que um tratamento resulta – e tal justificar que se tente esse primeiro –, mas isso não significa que boa parte dos outros não sirva. É um erro pensar que sabemos o que é a depressão e que há uma resposta. E como me disse uma vez a neurologista Helen Mayberg, há uma parte que temos de ser nós a fazer, o que nem sempre é fácil.  

Como é para si ser paciente?
O meu médico, Richard A. Friedman, encara a psicofarmacologia como uma ciência e, também, uma arte, como fazer culinária: um pouco mais de sal aqui, alterar a confeção ali. Richard C. Friedman, muito perspicaz, morreu no início da pandemia e foi o melhor psicoterapeuta que tive [dos 31 aos 56 anos]. Uma vez, quando me senti magoado com o meu irmão, disse-lhe:  “Não quero estar neste ciclo, só penso em matar-me.” Respondeu: “Andrew, tens de cortar o intermediário.” Queria dizer que eu não estava a conseguir lidar com tamanho grau de hostilidade e zanga e dirigia esses sentimentos contra mim. Ele compreendia-me melhor do que eu e, após tanto tempo em terapia, quis saber se tinha sentimentos por mim. “Claro, nutrimos amor um pelo outro há anos!” Aquilo teve um profundo significado e foi transformador.

Mais do que o modelo, é a relação terapêutica que importa?
É crucial para mim. Contacto com muitos jovens para quem os relacionamentos são stressantes e preferem fazer terapia com Inteligência Artificial, em que não se sentem julgados por outro ser humano.

Quando tornou público o suicídio assistido da sua mãe [na fase terminal de cancro nos ovários], isso trouxe-lhe dissabores?  
Tivemos longas conversas familiares quando eu decidi expor o assunto no livro. Existiram casos similares em Nova Iorque, onde vivemos, que não tinham sido alvo de processos e, por acharmos que as pessoas deviam conhecer a situação que enfrentámos e entendermos que devia ser legal, decidimos arriscar. Consultei um advogado e houve detalhes que ficaram de fora.

O que pensa do mundo, cada vez mais ansioso, em que vivemos?
Não há uma linha clara a separar o nível em que a ansiedade é crucial para a sobrevivência da espécie daquele em que é perigosa e capaz de destruir vidas. A pandemia, o aquecimento global e o aumento do populismo nas redes sociais quebraram o sentimento de segurança, com consequências emocionais catastróficas. Quando eu era pequeno, o meu pai falava-me do Holocausto. “Porque é que as pessoas não se foram embora?”, perguntei. “Não tinham para onde ir.” Eu quero ter um sítio para onde ir. Tenho dois passaportes e candidatei-me ao terceiro. É assim que estou a lidar com este grau de ansiedade. Outros podem ter um colapso emocional ou não conseguir sair de casa. Espero que alguém consiga usar essa ansiedade para resolver a crise climática.

Como encara o que está a acontecer em Israel?
Nunca lá estive, mas tenho reservas face às políticas que Netanyahu representa, que são problemáticas. O Estado judaico de Israel tem direito a existir, mesmo que de uma forma diferente, mas ao ver o que se passa, questiono o propósito de continuar a matar gente sem que nada melhore. Na Segunda Guerra Mundial, lutava-se por uma causa e muitos morreram por ela. Fiz a cobertura da invasão do Afeganistão, penso na Guerra do Iraque, na da Ucrânia e nesta, em que milhares de pessoas vão morrer e nada vai mudar. É horrível viver assim. Quando se tem propensão para a depressão e tudo à volta se desmorona, política e socialmente, é uma luta constante para não entrar em paralisia. O que dizer às pessoas: podem direcionar a vossa energia para ajudar a reparar o mundo, em vez de pensar que é melhor desistir?

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