“Putin acredita em teorias estranhas, como o ‘passionarismo’. Para ele, a Rússia tem a missão histórica de iluminar a Humanidade e salvá-la das suas próprias perversões”

Foto: Manon Jalibert

“Putin acredita em teorias estranhas, como o ‘passionarismo’. Para ele, a Rússia tem a missão histórica de iluminar a Humanidade e salvá-la das suas próprias perversões”

O que têm em comum Elon Musk, o patrão da Tesla e da SpaceX que acredita ser possível colonizar Marte, e o filósofo russo Nikolai Fiodorov, o Sócrates de Moscovo, que considerava que os humanos têm o “dever de ressuscitar as gerações anteriores”? O que une os investimentos da Google em busca da imortalidade e a múmia de Lenine colocada há quase um século na Praça Vermelha? Qual a ligação entre os atuais delírios tecnológicos de Silicon Valley e a utopia soviética de transformar o mundo e o messianismo eurasiático de Vladimir Putin? As respostas são dadas no livro Lenine foi à Lua (edições Zigurate), da autoria de Michel Eltchaninoff, filósofo francês que fala a língua de Dostoievski, assistiu in loco à ascensão do homem que mandou invadir a Ucrânia e é um especialista no pensamento russo. Uma obra sobre ideias loucas que continuam a ter muitos adeptos.

Lenin foi à Lua é um livro desconcertante, seja pelo lado anedótico, seja pelo lado assustador. Na introdução, menciona a viagem de Putin a Kaluga, em 2007, na parte ocidental da Rússia, e a promessa de criar, nas imediações, Tsiolkovski, a “Cidade do Futuro”. O que sabemos hoje sobre esse local?
A cidade fica junto a uma base de lançamento de mísseis e, recentemente, recebeu o Presidente russo e o ditador norte-coreano Kim Jong-un: uma aliança para o futuro!

O que é o cosmismo? Uma ideologia, uma filosofia, uma religião? Quem foram os primeiros cosmistas que queriam “conquistar a morte e invadir o Espaço”?
O cosmismo é um projeto algo louco que uniu, a partir do final do século XIX, na Rússia, cientistas e místicos, revolucionários e engenheiros. Tem como principal pressuposto que a vida humana não deve ficar limitada ao tempo e ao espaço. Os cosmistas acreditavam que o progresso científico e tecnológico poderia ajudar-nos a ressuscitar os mortos, a alcançar a imortalidade e a viver noutros lugares fora do planeta Terra. A ideia parece delirante, mas foi partilhada por alguns revolucionários bolcheviques e pelos pioneiros do programa espacial soviético.

Até que ponto Dostoievski pode ser considerado um cosmista?
Dostoievski não é um cosmista, embora tenha demonstrado grande interesse nas ideias do primeiro cosmista, Nikolai Fiodorov, um pensador cristão que desejava ressuscitar os mortos. Ele faz referência a isso no seu último romance, Os Irmãos Karamazov.

Em que consiste o “dever de ressurreição”, defendido por Fiodorov? O facto de Lenine ter sido embalsamado teve alguma coisa a ver com as teses cosmistas da imortalidade?
Fiodorov defendia que os cristãos não deveriam apenas acreditar na ressurreição dos mortos, mas também torná-la realidade através do progresso tecnológico. É interessante notar que alguns companheiros de Lenine, numa perspetiva revolucionária, não estavam muito longe desses sonhos de imortalidade. Alexandre Bogdanov, um dos líderes bolcheviques, fazia experiências de transfusão de sangue para rejuvenescer e viver mais tempo. Quando Lenine morreu, em 1924, os seus próximos decidiram embalsamá-lo para, um dia, talvez, o ressuscitarem. A múmia de Lenine, 100 anos depois, ainda está na Praça Vermelha, em Moscovo.

Como descobriu o cosmismo russo e o que o motivou a escrever sobre esse assunto?
Lendo livros de intelectuais russos frequentemente não traduzidos ou esquecidos! Acredito que estamos enganados ao imaginar o século soviético como um triunfo do marxismo e do materialismo. A URSS foi influenciada pelos ideais cosmistas. Ela concebeu o programa espacial e as ideias pseudocientíficas foram muito influentes. A minha motivação foi mostrar que o comunismo russo era um messianismo e que sua influência ainda existe.

Para escrever este livro, conversou com muita gente, incluindo novos cosmistas russos, como Anastasia Gatcheva e Danila Medvedev. Conseguiu conter o riso quando lhe disseram que “o comunismo não pode ser construído sem vencer a morte” ou que é possível “transplantar a cabeça do patriarca Cirilo no corpo do Presidente Putin”?
Danila Medvedev é um transumanista russo que quer criopreservar os corpos dos falecidos, enquanto aguarda a possibilidade de os ressuscitar no futuro. A sua visão de uma Rússia bicéfala, com uma liderança religiosa e uma liderança política, é delirante. Por vezes, o que parece insano é possível. Sim, ri-me, mas devo confessar que senti alguma inquietação.

Apresenta uma lista impressionante de transumanistas de Silicon Valley influenciados pelo cosmismo russo – Elon Musk (Neuralink, X, Tesla, SpaceX), Sergei Brin e Ray Kurzweil (Google), Jeff Bezos (Amazon), Peter Thiel (Palantir)… Acha que podemos classificá-los como discípulos ou herdeiros intelectuais de Fiodorov?
Os transumanistas anglo-saxónicos costumam referir-se aos cosmistas russos, cujas ideias começaram a circular na América hippie dos anos 70. Elon Musk gosta de citar um cosmista russo, Konstantin Tsiolkovski, e não é por acaso: o seu sonho é levar a Humanidade para Marte. Ele acredita que, em breve, teremos os meios tecnológicos para viver muito mais tempo e viajar pelo Universo. O cosmismo russo e soviético é uma das fontes inspiradoras dos transumanistas libertários americanos de hoje.

Elon Musk acredita que teremos os meios tecnológicos para viver muito mais tempo e viajar pelo Universo. O cosmismo russo é hoje uma das fontes inspiradoras dos transumanistas libertários dos EUA

Quando Putin diz que a Rússia deseja “construir um novo mundo”, está também a revelar as suas crenças no cosmismo e a seguir o exemplo de alguns dos conselheiros que defendem um novo “homo sovieticus”?
Que eu saiba, Putin não é cosmista, embora acredite que vá viver muito tempo. Ele celebrou este mês o seu 71º aniversário e prepara-se para ser reeleito, em 2024, para mais seis anos à frente da Rússia. Ele acredita em teorias estranhas, como o “passionarismo”, um género de energia cósmica, da qual os povos da estepe eurasiática (incluindo os russos) seriam hoje os fiéis depositários. Ele fala com frequência do assunto. Em suma, Putin é um líder perigoso para o mundo porque acredita em e personifica um certo tipo de messianismo. Na opinião dele, a Rússia não é um país como os outros, tem uma missão histórica – iluminar a Humanidade e salvá-la das suas próprias perversões. Ao declarar guerra aos ucranianos, está convencido de que combate os novos nazis. Ao enfrentar a Europa e os EUA, crê estar a lutar contra o satanismo. É por essa razão que ele considera a sua guerra sagrada – e também por isso deve ser implacável e não ter limites.

Foi dos primeiros intelectuais europeus a identificar e a denunciar o putinismo. Defendeu as Pussy Riot, Oleg Sentsov, Alexei Navalny e fundou a associação Novos Dissidentes. Em 2014, apelou a um boicote ocidental aos Jogos Olímpicos de Inverno de Sochi e, quatro anos depois, pediu ao Presidente francês que não fosse a Moscovo e a São Petersburgo durante o Mundial. É frustrante ter razão antes de tempo?
A cegueira de muita gente em relação à Rússia é antiga e profunda. Vladimir Putin criou para si próprio a imagem de um Presidente transgressor. Com as suas piadas e provocações, conseguiu criar a perceção de que é um anti-herói da sétima arte. Conquistou um público global de fãs que detestam o “politicamente correto”. É uma estratégia de comunicação que funcionou. Até seduziu líderes franceses, como [os presidentes] Jacques Chirac e Nicolas Sarkozy. Outros, como Emmanuel Macron, acreditaram que era possível confiar nele. Todos foram enganados. Boa parte da opinião pública mundial viu em Putin a solução para as suas angústias. Para os conservadores, ele personifica os valores tradicionais da Europa cristã. Para os nostálgicos da autoridade, é um líder firme, com mão de ferro. Para a esquerda anti-imperialista, ele é o campeão do antiamericanismo. Para alguns críticos da globalização cultural, é o guardião das diferenças civilizacionais. Para os populistas de direita, foi um dos primeiros a desafiar as elites políticas, antes de Trump e Bolsonaro.

Ao estudar os seus discursos e ideologia, notei que Putin se referia a filósofos que defendiam a guerra e posturas imperiais.
Ele está convencido de que os russos devem dominar uma Europa que se mostra fraca, desorientada, amnésica e cansada. Há muito que o seu discurso tem subjacente a ideia de um confronto entre a Rússia e um Ocidente decadente. Daí os meus alertas. Fiquei muito preocupado ao ver, por exemplo, que Emmanuel Macron não percebia o perigo e tentava apaziguar Putin.

Poucos dias depois da invasão da Ucrânia, numa entrevista ao Le Monde, afirmou que Putin estava a promover uma “guerra de civilizações”. Já podemos dizer que o Presidente russo cometeu o maior erro da sua carreira política?
Putin apostou tudo ao invadir a Ucrânia. Ele nunca aceitou que Kiev se emancipasse de Moscovo e considerou o confronto com o Ocidente inevitável. Neste conflito, o tempo pode jogar a seu favor. A Rússia tem imensos recursos, muitos homens para combater. Putin não pode dar-se ao luxo de perder. Prefere o caos generalizado à confissão da sua impotência. Portanto, a situação é tão perigosa quanto era há quase 20 meses. Putin não vai parar.

Com a morte de Prigozhin e a prisão de Navalny, ainda existe oposição na Rússia? Onde estão os novos dissidentes?
Os opositores estão detidos, exilados ou forçados ao silêncio. No entanto, a sociedade russa é criativa. O YouTube e o Telegram estão acessíveis e repletos de opiniões e iniciativas antiguerra. É possível ajudar os ucranianos, prestar assistência aos desertores russos ou até colar adesivos contra a guerra, nas ruas, sem ser apanhado pela polícia.

O seu próximo livro poderá chamar-se Na Cabeça de Emmanuel Macron?
Pensei nisso em 2017, quando ele foi eleito Presidente da República. É um político que adora discutir ideias e cultura. Cita filósofos e escritores nos discursos. Foi assistente do filósofo Paul Ricœur, de quem adotou algumas ideias, nomeadamente a necessidade de fundamentar a política tanto no eixo vertical da decisão do Estado quanto no eixo horizontal do debate democrático. No entanto, Macron privilegia a vertical há vários anos, em detrimento da horizontal. Daí ter imposto a impopular reforma das pensões…

Agora quer modificar a Constituição e convocar referendos…
Ele sabe que as pessoas querem uma democracia que não se baseie apenas na eleição de representantes e permita uma expressão mais direta da vontade popular. Também procura dar uma imagem menos autoritária de si mesmo. Quis mostrar que estava disposto a aceitar referendos em questões como a imigração.

Em 2017, publicou Na Cabeça de Marine Le Pen, alertando para o perigo de “normalização” da Frente Nacional [atual União Nacional (UN), extrema-direita]. Estão reunidas as condições para que ela seja Presidente em 2027?
A maioria dos observadores concorda com essa possibilidade. Para surpresa de todos, após o terceiro fracasso de Le Pen nas presidenciais [maio de 2022], a UN elegeu 88 deputados para a Assembleia Nacional [junho de 2022]. Esse avanço acelerou a desdiabolização. Os seus deputados participam nas comissões parlamentares, afirmam-se a nível nacional e local. Macron convidou o jovem líder da UN, Jordan Bardella, e os outros líderes partidários para dialogarem neste outono. Marine Le Pen capitaliza: com o seu discurso social, a favor dos mais modestos, apoiou os protestos contra a reforma das pensões. Com o seu discurso anti-imigração e a favor da ordem, beneficia do medo causado pelos distúrbios nos bairros populares e tem muita cautela para não ser acusada de racismo. Le Pen e Bardella pretendem aproveitar-se das dúvidas e dos medos para transformarem França num país antieuropeu e fechado sobre si próprio. A conquista do poder pela UN deixou de ser ficção científica.

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