É um apaixonado por livros desde que leu, em pequeno, num quiosque ao pé de casa, um manual do bom detetive. Ainda sonhou ser investigador por conta própria ou ao serviço de qualquer força de segurança, mas na verdade esse sonho de infância cumpriu-se. Nascido em Tarragona, em Espanha, em 1976, Jorge Carrión não persegue criminosos, mas anda pelo mundo em busca das livrarias mais extraordinárias que a devoção aos livros foi capaz de abrir. Um encanto por esses espaços mágicos, bem expresso em Livrarias, que o levou a combater o comércio online e sobretudo o seu maior representante nesta área: a Amazon. Em 2017, lançou um manifesto de grande alcance que defendia o regresso ao local, à experiência, ao contacto humano e à sugestão que vai além do mais do mesmo. A esse texto juntou outros, reunidos agora em Contra a Amazon, que a Quetzal acaba de editar em Portugal. De passagem por Lisboa, Jorge Carrión apresentou-o na livraria mais antiga do mundo em funcionamento, a Bertrand Chiado, onde se sente sempre em casa.
Há quem defenda, para uma cidade, um centro de saúde ou um jardim em cada bairro. Também defenderia uma livraria?
Sim, sem dúvida. Tenho a sorte de viver em Barcelona, que passou por uma transformação muito interessante nos últimos 40 anos. Uma delas fez com que cada bairro tivesse uma biblioteca pública, o que teve um impacto enorme. Há uma relação causa-efeito entre a existência dessas bibliotecas e os índices de leitura e formação. Mas as livrarias também mudaram de geografia. Antes, estavam concentradas no centro de Barcelona, o que fez com que algumas tivessem de fechar devido ao excesso de turismo e gentrificação. Resultado: mudaram-se para a periferia, onde estão as pessoas e os leitores.
Em Portugal, estamos a viver essa transformação urbanística e social provocada pelo turismo, nomeadamente em Lisboa e no Porto. Esse movimento das livrarias deve ser apoiado por políticas públicas ou acredita que surgirá espontaneamente?
Se as bibliotecas são o resultado de políticas públicas, as livrarias decorrem de movimentos comerciais. Há ajudas, mas não as suficientes, isso é certo. O Estado devia proteger as livrarias históricas, mas também as de bairro, porque são lugares de encontro e cultura. Até porque, depois da Covid-19, a grande pandemia é a da solidão. As livrarias são grandes vacinas contra a solidão.
Ao discurso pessimista em relação ao fecho de algumas livrarias, prefere uma visão mais centrada no futuro?
O discurso apocalíptico não tem sentido, apenas gera mais discurso apocalíptico. A distopia gera mais distopia. Pelo contrário, o discurso utópico, baseado na realidade, gera mais utopia, mudanças positivas. Tento estar num ponto médio crítico, reconhecendo os perigos e os aspetos positivos do turismo (todos queremos viajar, por que razão deve ser um privilégio de alguns?) e das tecnologias. É preciso encontrar um equilíbrio entre o pessimismo e o otimismo, entendendo que todas as gerações da História pensaram que o mundo ia acabar porque o mundo delas se acabava.
Mas num tempo em que é possível ter acesso a todas os álbuns de uma banda, a todos os episódios de uma série, até a uma assinatura que nos dá acesso a infinitos livros, como dar futuro a espaços, como as livrarias, limitados?
O importante é perceber que, apesar do muito que nos é oferecido, esses serviços de música, de televisão ou de livros têm, eles próprios, muitas limitações. Há filmes e séries que não se conseguem ver, legal ou ilegalmente, na internet. Basta entrar numa biblioteca, qualquer que ela seja, para se perceber que a internet não tem 90% da oferta que ali se encontra.
Há um grande equívoco em relação à internet?
Sim, completamente. Há certamente muito na internet, e tem-se feito enormes avanços, mas existe uma parte significativa da nossa história e cultura que não está disponível. Além disso, é preciso entender que cada experiência cultural tem o seu contexto de receção ideal. Há filmes para ver no cinema, outros na televisão, alguns no telemóvel, tal como há livros que ganham ao serem lidos em papel e outros que são potenciados por uma utilização digital. O nosso tempo define-se pela convivência de linguagens, formatos e experiências. Num dia, mudamos do livro para as stories do Instagram, do podcast para um filme. Somos mutantes na nossa fruição cultural.
A ameaça das multinacionais tecnológicas é quererem fechar-nos num único formato?
Em parte, sim, mas para mim o principal problema dessas plataformas tecnológicas é acreditarem, absurdamente, que a sua natureza é o crescimento exponencial. É uma ambição impossível. Nada, nem ninguém, pode crescer ilimitadamente. Tudo tem um teto. Há uma competição pela nossa atenção que é selvagem e sem sentido.
Qual será a solução para essa contradição?
Só posso intuir e vejo-a, por exemplo, nos dois caminhos que, neste momento, a Netflix e a HBO estão a mostrar-nos. A primeira, pela quantidade. A segunda, pela qualidade. Com as séries Sucession e com The Last of Us, a HBO é sustentável e tem sentido. A Netflix tem vindo a acusar uma crise. É uma lição de todos os tempos: na época da quantidade, a qualidade continua a ser o mais importante.
No livro que agora publica, o manifesto Contra a Amazon é o texto mais célebre. Claro que fui ao site da empresa ver se o seu livro estava lá à venda. E está, em várias línguas. O que diz isso da Amazon?
Se é um livro, temos de o procurar nas livrarias [risos]. Mas, na verdade, a partir de certa altura, o livro deixa de pertencer ao seu autor. Vendê-lo é uma decisão da editora. Se a escolha fosse minha, não estaria na Amazon, mas não posso impor esta opção a ninguém. Curiosamente, recebi várias mensagens de leitores a dizerem que esse foi o último livro que compraram na Amazon. Depois de o ler, mudaram de perspetiva. Nesse sentido, a edição espanhola, com um cavalo de Troia na capa, capta a essência do livro.
Em sua defesa, a Amazon poderia dizer que não faz censura, o que também crítica no seu manifesto, nomeadamente referindo-se às edições que defendem ideias nazis.
Sim. A chave de qualquer boa livraria é a curadoria e a Amazon dispensa-a. Curadoria é ter uma equipa de pessoas que decide que conteúdos culturais devem ser promovidos, quer seja num museu, numa biblioteca ou numa livraria. A Amazon eliminou o fator humano.
Passamos da prescrição humana para o algoritmo?
Exato. E esse é o grande debate. Em quem acreditar: no conselho humano ou no conselho de uma máquina?
Nunca ficou positivamente surpreendido por um livro ou um filme sugerido pelo algoritmo?
Não confio no algoritmo, engano-o e manipulo-o. É que o algoritmo sugere-te o que acha que tu vais gostar, tendo em conta o teu historial. No sentido exatamente contrário, um bom livreiro aconselha-te o que vais gostar, mas não conheces. Isso é que é interessante – o desafio, a mudança, a surpresa, e não a continuidade. Se lês romance, a Amazon dá-te mais romance. Mas um livreiro pode aconselhar-te um livro de poemas que usa os mesmo jogos de linguagem de um autor que gostas. Não há algoritmo, por enquanto, que faça isto.
A tensão entre o global e o local é uma das marcas da globalização em que vivemos. A pandemia veio intensificá-la?
Muitíssimo, mas nem sempre com os resultados que esperávamos. Como acontecimento global, a pandemia impulsionou fenómenos globais, do vírus ao TikTok, passando por todos os serviços online. Mas, no pós-pandemia, estamos a assistir ao regresso ao local, aos laços familiares, ao encontro entre amigos. O mundo não mudou radicalmente como se chegou a anunciar. Mesmo o teletrabalho beneficiou as ligações de proximidade. Acredito que os despedimentos nas multinacionais tecnológicas se devem à guerra na Ucrânia e à crise que daí adveio, mas também a este reequilíbrio que todos estamos a fazer nas nossas vidas. A história do século XXI será a de um constante avanço e recuo na relação com a transição digital e com o que nos é próximo.
Mas e o preço, um dos elementos centrais para quem compra livros online?
Em Espanha, o preço do livro é fixo, o que não permite grandes variações, ao contrário do que acontece noutros países. Isso, por si só, limita muito a concorrência desleal. Mas o que todos queremos são boas experiências, contacto, compreensão e felicidade. Quando compras um livro na Amazon, recebes uma caixa de cartão, igual a todas as outras. Numa livraria, mesmo reconhecendo que possa ser mais caro, há o passeio até lá, o contacto visual e físico ou a possibilidade de um encontro inesperado. Numa época em que se faz a apologia dos 10 mil passos por dia, não deixa de ser paradoxal que se abdique de fazer mil até à livraria mais próxima. Comprar tudo digitalmente é contra a nossa natureza, até por razões de saúde.
Com tantas reservas em relação ao algoritmo e ao comércio digital, como tem assistido à entrada da Inteligência Artificial (IA) na criação de conteúdos, com o ChatGPT, por exemplo?
É, de facto, o início de uma nova época, tão forte como a da invenção da imprensa. São ferramentas novas e muito interessantes, com os seus perigos. O que de resto também aconteceu no tempo de Gutenberg. A difusão generalizada da Bíblia em cópias impressas deu origem a leituras divergentes da oficial. A IA generativa, como é conhecida, vai mudar tudo? Acredito que sim. Vai obrigar-nos a reformular as nossas profissões.
Em que medida?
Os meus amigos advogados dizem-me que o ChatGPT pode ser muito bom para encontrar a melhor lei para defenderem as suas teses. Fará sentido que toda a argumentação jurídica seja baseada na memória? Este pode ser um campo propício a muitas alterações. Se um jornalista se limitar a fazer um resumo de um livro, como há muitos que o fazem, tenho a certeza de que o ChatGPT fará esse trabalho muito bem daqui a uns anos.
Temos de aprender a usar esta ferramenta?
Quando se inventaram os caminhos de ferro, muitos defenderam que andar de cavalo era muito mais seguro. Como sempre, a questão não se coloca no perigo, mas como legislamos, controlamos ou elaboramos. O horizonte deve ser o de levar as empresas que recorram à IA a contribuir para uma renda básica universal.
O que sentirá quando descobrir que um livro de que gostou muito foi escrito com recurso a IA?
Não sei antecipar, mas consigo prever algumas tendências do futuro: a radical, que passará por escrever os livros à mão com toda a sua humanidade; um mercado com textos escritos por IA, tão forte como os sites que põem xadrezistas a jogar contra um computador; e uma larga maioria de textos híbridos. E, na verdade, os textos que escrevemos já o são.
Híbridos?
Sim. Quem não escreve hoje depois de fazer pesquisas no Google ou usando o corretor ortográfico? Quando o Photoshop surgiu, todos defendiam que era ético assinalar que uma fotografia fora manipulada. Hoje, quem o faz? A integração literária da IA será muito natural.