“A divulgação do conhecimento é essencial para a construção de uma sociedade mais justa e democrática, até porque muitos investigadores são pagos com dinheiro público, o que torna ainda mais importante esse retorno”

Foto: Marcos Borga

“A divulgação do conhecimento é essencial para a construção de uma sociedade mais justa e democrática, até porque muitos investigadores são pagos com dinheiro público, o que torna ainda mais importante esse retorno”

Aos 9 anos, Inês Torres recebeu um livro sobre o Antigo Egito como presente do pai, e poucas horas de leitura bastaram para que tivesse certezas sobre o seu destino: queria ser egiptóloga. Estudou Arqueologia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, mudou-se para Oxford para frequentar o mestrado em Egiptologia e fez o doutoramento na disciplina de coração em Harvard, onde também foi professora de Egípcio Clássico, entre 2017 e 2020. Aos 31 anos, de volta a Portugal, acaba de lançar o livro Como É Que a Esfinge Perdeu o Nariz (Editorial Planeta, 336 págs., €16,90), com cerca de 50 perguntas e respostas sobre a Egiptologia, para ser lido sem ordem certa, numa linguagem simples e acessível. Sacudir o pó de uma disciplina aparentemente mais séria e divulgá-la é, aliás, uma das suas missões, trabalhada, para já, numa página de Instagram (@umaegiptologaportuguesa) e através do podcast Três Egiptólogues Entram Num Bar. Natural de Barcelos, está de mudança para Lisboa, para fazer um pós-doutoramento na Universidade Nova de Lisboa, onde é também investigadora.

Queria ser egiptóloga desde miúda, mas começou por estudar Arqueologia. Porquê?
Em Portugal não existia uma licenciatura em Egiptologia. O meu pai aconselhou-me a ter uma base de conhecimento geral sobre História ou Arqueologia. Escolhi Arqueologia, porque adoro a parte da cultura material dos objetos, dos artefactos. Poder ver essas peças traz ao de cima o facto de estes indivíduos terem existido. Como são tão distantes de nós no espaço e no tempo, ao vermos algo que foi criado por estas pessoas imediatamente nos transporta para esse passado.

É interessante perceber como algo tão longínquo chega aos nossos dias.
Gosto sempre de fazer este exercício: pensar na História de Portugal, que nem sequer 900 anos tem, e na diferença, em termos de civilização e cultura, de nós, portugueses de hoje em dia, versus D. Afonso Henriques. Há uma tendência geral de pôr os egípcios numa caixa, como se eles pensassem todos da mesma maneira. Como, para os nossos cérebros, é difícil imaginar 3 500 milénios de História, acabamos por compactar tudo num só momento. Quando às vezes digo “os egípcios”, estou a fazer uma generalização muito grande. Os egípcios do tempo da grande pirâmide não são os mesmos do tempo de Ramsés II.

E como se passa essa mensagem?
É muito importante para mim que as pessoas percebam que, quando falamos das culturas [egípcias], estamos a falar de pessoas. Eram muito diferentes de nós, mas continuavam a ser seres humanos. Mesmo dentro do mesmo período histórico, a forma como teriam vivido as pessoas da elite versus os camponeses seria muito diferente. Eram mundos à parte, tal como hoje, e realidades bem díspares. Tento sempre realçar que, apesar de termos tanta informação sobre o Antigo Egito, não sabemos tudo. Nem sempre é possível responder a todas as perguntas com a clareza que desejaríamos.

Como surgiu a ideia deste livro?
Foi um convite lançado pela Andreia Rasga, que trabalha na Planeta [editora], mas já o imaginava há muito tempo. Tinha esse sonho de poder escrever um livro que não fosse só académico. Para mim, é igualmente importante a divulgação do conhecimento. Considero que é algo essencial para a construção de uma sociedade mais justa e democrática, até porque muitos de nós, investigadores, trabalhamos ou somos pagos com dinheiro público, o que torna ainda mais importante esse retorno. Tinha essa ideia de criar algo que fosse interessante, divertido e desse a oportunidade às pessoas de aprender o que querem e, ao mesmo tempo, humanizar estes indivíduos de um passado tão distante e, contudo, ainda muito parecidos connosco em alguns aspetos.

No caso da alimentação. Alfarroba, mel, tâmaras para adoçar; o pão e a cerveja tão presentes na dieta egípcia. Continuamos a encontrar-se pontos em comum até com Portugal?
Sem dúvida. A alimentação, os ingredientes – até porque temos uma cultura mediterrânica, apesar de não estarmos no Mediterrâneo, tal como o Egito –, muitos dos frutos e vegetais que eles comiam, nós também usamos. Era essa também a minha ideia. Claro que as pirâmides, os túmulos e os templos são importantes, e menciono-os no livro. Mas eu queria ir para além disso. Às vezes, centramo-nos muito na grandiosidade, que é fabulosa, destes monumentos, mas acabamos por nos esquecer das coisas mais comuns. O que come uma pessoa? Como se diverte? Como descansa? Quem tem a possibilidade de descansar? Provavelmente um camponês não teria essa possibilidade. Isso leva-nos a pensar um pouco em como se formam as desigualdades e em como o poder acaba por ser mantido por uma elite.

As primeiras perguntas do livro são sobre a escrita hieroglífica. Esta opção tem que ver com o facto de a Egiptologia ter também começado por aí?
Não houve bem uma ordem quando juntei as perguntas. A escrita, porém, é uma das maiores curiosidades que as pessoas têm. Acabei por começar com a escrita, pareceu-me natural. O deciframento dos hieróglifos é um marco importante que não pode ser ignorado pela Egiptologia, porque abriu as portas a uma quantidade incrível de fontes e de recursos, os quais nos ajudam a perceber os egípcios pelas próprias palavras. Em setembro deste ano, celebram-se os 200 anos do deciframento dos hieróglifos e também se comemoram os 100 anos da descoberta do túmulo de Tutankamon. É um ano importante para a Egiptologia.

Pode dizer-se que se celebram os 200 anos da Egiptologia?
Depende muito de egiptólogo para egiptólogo. Há quem olhe para o decifrar dos hieróglifos como o momento de criação da disciplina enquanto área científica. Mas, ao fazer isto, estamos a posicionar o estudo arqueológico num local secundário. Há quem não goste muito disto. Eu acho sempre um pouco estranho marcarmos o nascimento de uma área científica… Não podemos falar de Arqueologia em 1822, mas havia o colecionismo. É, de facto, controverso.

O que tem tido uma grande influência na Arqueologia e Egiptologia é a criação de modelos tridimensionais digitais e a utilização de drones

Os emojis não são os novos hieróglifos mas andam lá perto?
É sempre complicado fazer essa comparação, porque os hieróglifos são uma escrita que acaba por representar toda uma língua, enquanto nós não conseguimos escrever coisas só com os emojis. De qualquer forma, o que ressalta aqui é a importância do visual. A escrita hieroglífica tem uma componente visual muito importante, que não temos na escrita latina. Por exemplo: a palavra “prever” (o futuro) era escrita com o símbolo de uma girafa no final da palavra, porque, comparativamente a um Homem, a girafa consegue ver mais à frente do que um ser humano; ela consegue ver as coisas mais longe. Essa parte visual, quando traduzimos, perde-se um pouco.

Por que razão a funerária é das áreas mais estudadas do Antigo Egito?
É um acidente de preservação. Isto acaba por dar um pouco a ideia errada de que eles eram obcecados com a morte. É verdade que se preparavam muito para a morte, porque gostavam muito de viver e queriam fazê-lo eternamente. Mas é importante pensar que o que sobrevive do Antigo Egito são monumentos funerários, porque eram construídos no deserto, onde não vive quase ninguém e o clima é muito seco. A preservação destes elementos arquitetónicos faz-se da melhor forma. A grande maioria das cidades onde eles viviam o seu quotidiano foi continuamente habitada, desde o Antigo Egito até aos dias de hoje. É difícil fazer escavação numa cidade, custa muito dinheiro. Temos menos provas e evidências citadinas, das rotinas das pessoas, e isto também porque as cidades eram situadas à beira-rio, com climas mais húmidos e onde é mais difícil preservar os artefactos e edifícios.

A funerária é a sua área de especialização. Qual a razão desta escolha?
Interessa-me muito a parte funerária mas também a social. A relação entre a morte e a memória. Para viverem eternamente, os antigos egípcios tinham de ser relembrados. Não tem só que ver com o túmulo mas também com fazer oferendas em nome dos mortos. Ora, fazer oferendas significa que pessoas têm de ir lá e, portanto, os túmulos egípcios estariam constantemente cheios de pessoas. Interessa-me o facto de só sobrevivermos se formos relembrados. É isso que eu estudo, essa ligação entre os mortos e os vivos e a forma como eles acabam por interagir nestes espaços tumulares.

O que a fascina mais na civilização do Antigo Egito?
As pessoas. Gosto de perceber a psicologia. O que nos faz humanos, o que nos diferencia. E os antigos egípcios têm algo que valorizo muito. Em teoria, pelo menos; na prática, não o sabemos. Em teoria, existia muito a ideia de justiça, de verdade, de equilíbrio, que era um conceito a que os egípcios chamavam “Ma’at” – um conceito e uma deusa muito importante. E Ma’at era algo praticado; essa ideia de praticar o bem, de ser justo, de dizer a verdade. Era uma responsabilidade do rei assegurar que existia justiça, que o país estava equilibrado, que não havia guerras. Num nível macro, havia essa responsabilidade de manter o Ma’at. Mas num nível individual, quem não fizesse o bem, quem não dissesse a verdade ou ajudasse o próximo não tinha direito ao Além, à eternidade. O que de certa forma acaba por ser uma ideia quase adotada pelos cristãos. Não havia inferno, mas eles tinham uma segunda morte.

Já participou em alguma escavação no Egito?
Participei em janeiro; pela primeira vez, estive no Egito em trabalho de campo. Foi uma experiência muito enriquecedora. Escavar no Egito não é fácil, há todo um processo burocrático e administrativo que é preciso fazer com muita antecedência. Tive a sorte de estar num sítio absolutamente fantástico. Na atual Luxor, antiga Tebas, há um complexo religioso que é um dos mais importantes do Antigo Egito, o templo de Karnak. Dentro dele temos o templo principal que é dedicado ao deus Ámon e, depois, outros templos consagrados a outros deuses, e um deles é para a deusa Mut, que era consorte ou mulher do deus Ámon. Estive nesse templo mais pequenino; não escavei no templo em si, mas atrás, onde estão os edifícios utilizados pelos sacerdotes e membros da administração do templo e que trabalhavam aí.

Os avanços tecnológicos ajudam nas escavações ou continua tudo a obedecer a um modelo mais tradicional?
O tradicionalismo numa escavação acaba por depender muito de quem está à frente dela e das possibilidades financeiras de cada um. Nem sempre é possível ter as últimas tecnologias disponíveis. Mas o que tem vindo a ter uma grande influência na Arqueologia e Egiptologia é a criação de modelos tridimensionais digitais e a utilização de drones, por exemplo para tirar fotografias e fazer fotogrametria. Tiram-se várias fotografias de uma área ou de um objeto e elas são usadas na criação de um modelo tridimensional, que pode ser depois manipulado nos nossos computadores.

Página de Instagram, podcast, agora o livro. Este seu movimento de tornar o Antigo Egito mais acessível a todos é também mundial?
Sim, sinto muito isso na Europa e nos Estados Unidos da América. Há uma tentativa significativa no sentido de se divulgar assuntos que tradicionalmente não teriam saído do meio académico. Isso para mim é uma missão, quase um dever de um investigador, especialmente daqueles que trabalham em países como Portugal, onde há mais falta dessa divulgação. Não quero estar a denegrir o trabalho dos investigadores que vieram antes de mim – antes pelo contrário. O que quero dizer é que os livros de Egiptologia de autores portugueses são extremamente importantes e interessantes, é também neles que acabo por me apoiar para fazer o meu trabalho, mas têm uma linguagem mais formal e não são para toda a gente.

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