“No estado em que o planeta está, precisamos que toda a gente vá ao Ártico”

Foto: Michael Wharley

“No estado em que o planeta está, precisamos que toda a gente vá ao Ártico”

Vai ser quase impossível dar de caras com Dwayne Fields nesta sua primeira incursão a Lisboa, a não ser que se vá à National Geographic Summit, na próxima terça, 31, no Teatro Tivoli, ouvi-lo dissertar entusiasticamente sobre Expeditions of a Lifetime: A Ciência da Vida Real. Mas quem sabe? Ele garantiu-nos, a partir de sua casa, em Inglaterra, que tem intenção de fazer o máximo de turismo na sua estada-relâmpago em Lisboa. Afinal, estamos a falar de um explorador, que se tornou conhecido quando, em 2010, palmilhou 370 quilómetros para atingir o Polo Norte Magnético, tornando-se o primeiro jovem negro britânico a chegar lá – o que é a calçada portuguesa comparada com isso? Desde então, Dwayne, 38 anos, dedica-se a desviar outras pessoas para o seu amor à Natureza, que se traduz também numa maior consciência ambiental. Há três anos, fundou a WeTwo Foundation, que está a tratar da primeira missão à Antártida, neutra em carbono, com jovens ingleses provenientes de meios desprotegidos, como ele foi um dia.

Depois de todas as expedições que fez na vida, ainda sente saudades da sua infância, na Jamaica, no meio da Natureza?
Qualquer pessoa que esteja a ler esta entrevista deve lembrar-se do seu primeiro amor. Para mim, foi o campo e a floresta na Jamaica. Deu-me tudo aquilo de que precisava: oportunidades para me desafiar, para encontrar os meus limites. Lembro-me de subir às árvores para comer uma fruta lá em cima – um paraíso.

Saiu de lá com apenas 6 anos. Já voltou?
Até eu me espanto como me lembro tão bem das árvores, das plantas e dos frutos que apareciam ao longo do caminho que percorria. Recordo-me de pormenores que já não existem. Uma das coisas de que mais gosto é voltar lá, tirar as meias e os sapatos e andar descalço no chão – isso traz-me tantas memórias vívidas…

Quando a sua mãe emigrou, ficou na Jamaica com os seus irmãos e a sua bisavó. O que sentiu quando teve de se juntar a ela em Inglaterra?
No dia em que cheguei a Londres, olhei para o céu, que estava cinzento, e perguntei-me o que teria acontecido ao azul. Quando vi a nossa casa, como não encontrei nenhuma árvore junto à porta, pensei que elas estariam nas traseiras. Corri até lá, mas só encontrei um muro de tijolos. E fui ficando cada vez mais triste…

Pode dizer-se que nunca se adaptou?
Os miúdos acabam por adaptar-se bem às situações, mas não foi fácil. Lembro-me bem da primeira vez que vi neve: chorei, porque não sabia que ela caía do céu.

Ainda por cima, cresceu num bairro complexo…
Cresci em East London, que é dos sítios mais diversificados de Inglaterra, mas isso acarreta muitos desafios. Temos de aparentar ser duros; caso contrário, estaremos sempre do lado das vítimas, especialmente se formos jovens e negros.

Como sobreviveu nesse contexto?
Foi fácil. Pensei que, se andasse com aqueles tipos, se fosse amigo deles, se me risse das suas piadas, se dissesse que “sim” a coisas que não queria fazer, iria correr bem.

Optou por não ser uma vítima.
Escolhi esse caminho especialmente porque me sentia um pouco de fora em algumas conversas. No primeiro dia de escola, percebi que não reconhecia nenhum tipo de comida do refeitório. Então, olhei para o que a pessoa à minha frente na fila tinha no tabuleiro e pedi exatamente o mesmo. Também tentava escapar do tema desenhos animados – na Jamaica, não tinha televisão (nem eletricidade) –, pois não podia afirmar qual era o meu favorito. Portanto, se alguém dizia que era o Popeye, eu repetia a mesma opinião. Entretanto, ficava a desejar que não me fizessem mais perguntas sobre o assunto.

Essa mentalidade de ir atrás de tudo o que os outros dizem e fazem só mudou quando quase foi morto, em 2005, certo?
Sim, foi nesse momento que decidi mudar de vida.

Quando não há mais nada acima da minha cabeça além do céu, penso e planeio melhor. A Ciência comprova que estar ao ar livre fortalece os sistemas respiratório e imunitário

O que aconteceu nesse dia?
Roubaram-me uma mota que eu andava há meses a arranjar. Estava tão furioso que não agi como deveria: chamar a polícia, para serem eles a lidar com os ladrões. Estupidamente, fui reaver a mota pessoalmente. Eles até me disseram para eu a levar, que não queriam saber, mas havia um que ainda tinha um painel de plástico que me pertencia e insisti que mo devolvesse, apesar de já ter o que queria. Ele empurrou-me, eu virei-me e empurrei-o de volta. Pensei que era o fim da história, só que ele tinha uma arma e apontou-ma, muito perto, disparando-a duas vezes, sem que saísse alguma bala. Quando desistiu de tentar, como eu ouvi os cliques da arma, convenci-me de que devia estar a sangrar. A caminho de casa, tive de verificar várias vezes se realmente não tinha sido atingido, pois até sentia dores no estômago.  

O que fez a seguir?
Recebi um monte de mensagens de amigos a dizer que já sabiam o que se passara e que eu deveria reagir, pois ele só não me matara por acaso. Mas eu não queria fazer nada – sabia que acabaria na prisão ou a magoar alguém ou mesmo a mim.

Alguma vez pensou que, se não tivesse feito essa estupidez de ir ter com quem lhe tinha roubado a mota, nunca teria mudado de vida?
Absolutamente. Mas, na verdade, não estava contente com a minha forma de viver, não agia de acordo com aquilo em que acreditava. O meu copo ia encher, mais cedo ou mais tarde, e eu faria a mudança na mesma.

Foi para mudar que escolheu ir trabalhar para um banco?
Sim, queria fugir do estilo de vida que levava e achei que era o tipo de coisa que as pessoas fazem: andam na escola, no secundário, passam nuns exames, encontram um trabalho que se transforma numa carreia. Era o caminho que eu acreditava ser o certo. Só que rapidamente percebi que não era feliz no banco…

E então foi salvo pelo Polo Norte…
Vi um programa de televisão em que procuravam pessoas para lá chegar, e fui saber como era. Quando olhei para as condições da região, pensei: será que quero mesmo fazer isto? Depois de me convencer, veio a questão de ter de arranjar cerca de 25 mil euros, que não tinha.

Como resolveu esse problema?
Poupava quase tudo do meu ordenado, tinha planeado ir para a universidade com um empréstimo e desviei-o para este projeto. E ainda, porque acreditava mesmo na expedição, pedi mais dinheiro ao banco para me financiar.

Como se preparou, física e mentalmente?
Não sabia como poderia treinar-me para o Ártico. O sítio mais frio em que tinha estado era Londres, onde as temperaturas nunca descem abaixo dos cinco graus negativos. Portanto, tive de passar alguns dias nas montanhas da Noruega, ir ao norte do País de Gales, para aprender técnicas de sobrevivência ao ar livre e esquiar. Também percorri Londres de uma ponta a outra, sozinho, com uma mochila carregada com dez a 12 quilos. Fazia boxe e jogava futebol.

Trabalhou igualmente a falta de confiança de que sofria?
Isso foi o mais importante durante o ano em que me preparei. Estava tão ansioso com a ideia de ir que nem disse aos meus amigos, pois sabia que iam achar uma ideia disparatada e tentar fazer-me desistir. Preferi dar uma entrevista a um jornal local, para me comprometer e comunicar aos outros a minha decisão.

Quando sentiu mais medo: no dia em que viu a arma apontada em sua direção ou quando avistou um urso polar a apenas 50 metros de si?
Com a arma, porque a situação foi provocada pela raiva e pela maldade. No caso do urso polar, não houve maldade: ele estava só a fazer o que era suposto, eu é que estava no seu ambiente.

Imagino que Matthew Henson, o americano negro que chegou ao Polo Norte em 1909, tenha sido uma inspiração para si?
Por acaso, decidi ir antes de saber isso. Mas é incrível que, durante um século, nenhum outro negro tenha lá ido. Ele serviu-me de inspiração, claro, pois se conseguiu fazê-lo naquela época, de certeza que eu também conseguiria. No estado em que o planeta está, precisamos que toda a gente, de todos os backgrounds, faça esta expedição. Não acredito que, uma vez lá, alguém não se apaixone pela Natureza. E quando se está apaixonado por ela, só se quer protegê-la.

Está a organizar uma expedição para levar, em novembro, dez jovens ingleses, desprotegidos, à Antártica. Já estão escolhidos
Passámos os últimos meses a escolher de entre as 17 mil candidaturas. Queremos fazer mais expedições destas, para que os jovens se comprometam, a eles, às suas famílias e à comunidade em que estão inseridos. Esta será a primeira expedição carbono zero e tem muito que ver com a plantação de árvores que compensem os gastos de carbono. Os jovens não têm de pagar um euro, mas têm de trabalhar com a sua comunidade local no sentido de reduzir a pegada da viagem – a iniciativa pode partir deles ou acontecer com a nossa ajuda.

Pelas suas contas, já falou com mais de 200 mil jovens. Tem ideia de quantos salvou com as suas palavras inspiradoras?
Não consigo quantificar o meu impacto, mas regularmente recebo mensagens de estudantes, de professores e até de pais a agradecerem-me. Por exemplo, no sábado, estive num encontro de escuteiros britânicos (sou embaixador), e uma voluntária disse-me que só se juntou a nós porque ouviu a minha história. Fico tão orgulhoso quando me dizem isto, especialmente se forem jovens. É nesses momentos que penso que tudo vale a pena, os dias mais duros, as dúvidas, o frio…

Só se sente bem na Natureza, mas não vive no campo…
Saio de casa, ando dois minutos e estou na floresta. Depois, caminho um bocadinho e já nem oiço o trânsito. Na realidade, quando não há mais nada acima da minha cabeça além do céu, sinto-me realmente bem, mais confortável e relaxado, penso e planeio melhor. Além disso, a Ciência comprova que estar ao ar livre favorece a saúde, especialmente a visão e os sistemas respiratório e imunitário.

Também se sentiu bem no Palácio de Buckingham, a convite da rainha, a propósito da sua primeira expedição. Apoia a monarquia, como a maioria dos britânicos?
Lembro-me de ser uma criança, na Jamaica, e ouvir os adultos dizerem: “Quem pensas que és, a rainha de Inglaterra?” Desde então, desenvolvi uma imagem dela na minha cabeça. Depois, tive a sorte de conhecê-la, de conversar com ela e de ouvir as suas piadas. A partir desse momento, passei a apoiá-la mais. Isabel II é daquelas pessoas que nos põem à vontade – poderia ser a nossa avó ou a nossa vizinha.

Se não tivesse mudado de vida, o que pensa fazer com o resto do tempo, daqui para a frente?
Quero que a minha fundação seja um sucesso, que consigamos levar centenas de jovens em expedição, com este princípio do carbono neutro. Ao mesmo tempo, gostaria de continuar a viajar pelo mundo, de fazer parte da História, devolvendo a Natureza à Natureza. Adorava que se parasse de poluir o planeta e se passasse a viver de uma forma mais sustentável. Desejava continuar a ser apresentador de programas sobre as maravilhas da Terra, como estou a fazer com a Disney (Welcome to Earth). E, claro, inspirar mais pessoas a sair e a viver a sua história.

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