Se esta entrevista tem alguns anglicismos nas respostas é porque o designer Ricardo Preto regressou há pouco a Portugal, depois de sete anos a viver e a trabalhar em inglês, pois era assim que comunicava nas Filipinas. “Desculpe, isto daqui a uns meses já me passou”, assume ele que, aos 49 anos, quando o inglês teima em atrapalhar-lhe o discurso, se posiciona muito mais no futuro do que no passado.
O que significa para si ter-se tornado o diretor criativo do grupo Amorim Luxury?
Trata-se de um desafio enorme e de uma mudança de vida, porque saio da Ásia, onde estive nos últimos sete anos.
Mudou-se de vez para cá?
Agora vivo em Lisboa a 100 por cento.
Já pensava em mudar-se?
Não. Estava lá muito bem, com o enorme grupo Rustan’s, o que me permitiu trabalhar desde o luxury [luxo] ao mass market [mercado de massas]. Mas tinha imensa vontade de voltar, porque casa é sempre casa.
Afinal, sempre havia aí uma vontade…
A única empresa em que me veria a trabalhar aqui teria de ser algo como o grupo Amorim Luxury. A Paula [Amorim] e o Miguel [Guedes de Sousa, administradores do grupo] são pessoas de extremo bom gosto, têm negócios em que acredito, as boutiques representam uma visão muito adequada do amanhã. O produto por si só is not enough [não é suficiente] – os conceitos de food meets fashion e de fashion meets hospitality [comida com moda e moda com hospitalidade] são o futuro.
Mas foge um bocadinho da sua área.
Food e hospitality fogem, pois tenho trabalhado a vida inteira em moda. Aos 49 anos, chegar-me um convite destes, em que tenho a possibilidade de crescer profissionalmente e ao mesmo tempo aprender, é maravilhoso. Como sigo uma metodologia que é transversal e independente do negócio em que estou, aplicá-la-ei também à hotelaria e à restauração.
Estão a pedir-lhe que internacionalize o grupo e que o faça crescer nas três áreas de atuação. Já pensou no que vai fazer para o conseguir? Vejo que tem aí uns papéis escritos, é porque já pensou…
Prefiro sempre entrevistas escritas e até tinha a resposta à sua primeira pergunta: “Sou um curioso nato, com muita vontade de descobrir novos mundos que permitam alargar a minha criatividade. Senti, a determinada altura, que Portugal já não seria o melhor sítio para estar e parti à descoberta do mercado asiático, para completar todo o know-how que tinha adquirido. Não teria regressado a Portugal se não fosse o repto da Paula e do Miguel. É um convite irrecusável que me deixa muito orgulhoso. Esta proposta começa por ser um privilégio e um desafio que eu encaro com muito entusiasmo.” Isto foi na realidade o que lhe tinha dito antes, mas por outras palavras…
Pois, a sua primeira resposta tem mais oralidade.
Tenho sempre medo do que fazem na transcrição. Noutro dia, dei uma entrevista, em que me perguntaram imensas coisas interessantes. No final, questionaram-me sobre a minha ideia de felicidade e, como estávamos em confinamento, respondi: “Talvez dançar com os meus amigos no Lux.” E foi isso que puxaram para título.
Não me parece nada má, essa ideia de felicidade… Já lá foi entretanto?
Não, ainda continuo a dançar só na sala… Mas irei.
Bem, voltando ao que lhe pedem com este novo cargo.
No caso das coleções privadas, é só pensar nelas como o lançamento de uma marca internacional de moda. Com os espaços de restauração e de hotelaria, também estamos a pensar em angariar clientes internacionais, promovendo-os lá fora. Em Portugal, somos únicos e, na realidade, poderíamos estar em qualquer capital do mundo.
Quem reserva uma mesa num JNCQOI não vem só a um restaurante, vem para ter uma experiência. De qualquer forma, também tinha aqui escrito essa resposta [procura nos seus papéis, mas acaba por não a ler].
Os seus negócios continuam nas Filipinas?
Não. Desliguei-me completamente.
Gostava de lá viver?
Quando fui para as Filipinas, não sabia bem ao que ia. Ao princípio, era apenas consultor – desenhava as coleções privadas e dava opinião sobre os seis armazéns que eles têm. Já na altura defendia que o que torna um negócio interessante é o conceito, um produto, uma experiência, o have fun: ao ir a esse espaço, as pessoas têm de se sentir bem, felizes. Só mais tarde fiquei residente e, então, comecei a pôr a máquina a trabalhar.
Não sinto necessidade de ter algo com o meu nome, porque, ao desenhar para o grupo Amorim Luxury, serei o diretor criativo dessa marca, e acredito que isso me tornará mais forte
Vai conseguir conciliar este novo cargo com o de designer de moda?
Neste momento, a Ricardo Preto está numa interrogação. Cabe-me a mim decidir o seu futuro, mas, se formos ver a história da moda, encontramos, por exemplo, um Yves Saint Laurent a desenhar para várias marcas antes de criar a sua. O meu colega Filipe Oliveira Baptista, que eu tanto admiro, deixou a sua assinatura quando foi para a Lacoste. Não sinto necessidade, como artista, de ter algo com o meu nome, porque, ao desenhar para o grupo Amorim Luxury, serei o diretor criativo dessa marca, e acredito que isso me tornará mais forte. Bem sei que a Ricardo Preto só atingiu a projeção que tem porque estive associado a um grupo financeiro [Rustan’s]. Ser designer independente em Portugal é praticamente impossível.
A coleção que apresentou na Moda Lisboa pode ter sido a sua última em nome individual?
É capaz.
E foi especial ou não a desenhou com essa premissa?
Não quis pensar nesta coleção assim, porque nunca se sabe o dia de amanhã. Neste momento, estou muito concentrado no grupo Amorim.
Daí ela se chamar And Now What?
A essa pergunta eu respondo: Live! Vive!
Viver para si, agora, é o grupo Amorim. Ponto?
Serão muitos sítios onde vou ter de trabalhar, e isso implica uma completa disponibilidade e dedicação.
Desde que idade passou a interessar-se por moda?
Em criança, se havia um jantar lá em casa, era eu que queria pôr a mesa, mas também desenhava, recortava, fazia cenários. Aos 14 anos, já estava a fazer montras, no centro comercial Roma, em Lisboa, enquanto os meus amigos andavam a curtir. Ao mesmo tempo, se fosse preciso, passava um dia inteiro a andar de bicicleta e a subir às árvores. Sempre me dividi entre uma extrema sensibilidade e…
Um lado mais físico?
Exatamente. Embora me lembre de, desde criança, dizer que queria ser estilista – palavra que hoje já nem se usa.
Como conseguiu esse emprego, sendo tão novo?
Fui oferecer-me e disse que tinha 16 anos.
Porquê?
A minha mãe educou-me, a mim e ao meu irmão António, sozinha, tendo como prioridade a nossa educação e não os bens materiais. Mas, com 14 anos, só queremos usar as marcas que os outros usam… Daí a vontade de ganhar dinheiro para as minhas coisas. Na altura, tinha uma mesada de 400 escudos, e, por cada montra que decorava, recebia 500.
Apesar do desejo demonstrado desde cedo em ser estilista, foi estudar arquitetura. Qual a razão para esse desvio?
Pensei que seria muito mais fácil encontrar um posto de trabalho enquanto arquiteto.
No entanto, nunca exerceu?
Nem acabei o curso… As revistas de moda e o teatro sempre me interessaram muito mais. E se já fazia as vitrinas, porque não transformar isso numa produção de moda? Comecei, então, numa revista gratuita chamada Dif, e a primeira produção de moda que fiz foi logo capa. Senti mesmo que tinha esse dom. Tudo em que me envolvia, e que realmente eu amava, dava frutos. Não posso dizer que o meu percurso tem que ver com sorte.
É jeito?
E dedicação e ter encontrado as pessoas certas, quase sempre mulheres, que acreditam em mim e me ajudam. Tenho passado por empresas familiares, lideradas por uma mulher – apaixono-me por ela e quero dar-lhe mais. É sempre uma mulher especial, uma líder com uma visão especial.
Imagino, então, que esteja apaixonado pela Paula Amorim?
[Risos.]
É um privilégio ter como profissão o seu sonho de criança?
Faço o que quero, com grande dedicação. Mas sempre tive a noção, talvez por ter sido escuteiro durante 11 anos, de que não o consigo fazer sozinho. Preciso de equipas.
Saltou depois para a Máxima, certo?
Sim, nove meses depois de estar na Dif, encontro a Helena Assédio, diretora de moda da Máxima na altura, que me diz que tem interesse em trabalhar comigo. Fico nove anos na Cofina, onde, na altura, se publicavam também a GQ e a Vogue.
Já desenhava?
Sim, já fazia as Manobras de Maio, no Bairro Alto, mas comecei a achar que estavam a ficar muito freak. Fui falar com a Dalila Rodrigues, então diretora do Museu de Arte Antiga, para lhe pedir um sítio com credibilidade para o desfile e acabei a fazê-lo no largo em frente ao museu, com o mecenato para os jovens designers de moda. Procurei que algumas pessoas vissem o meu trabalho, como a Isabel Branco ou o Mário Matos Ribeiro. Eles acharam-me piada e convidaram-me para o Portugal Fashion e a Moda Lisboa.
Participa na Moda Lisboa desde 2006. Como tem sido a evolução nestes últimos 15 anos?
Antigamente era muito mais fechada. Agora, tudo o que fazemos tem eco e muito mais visibilidade.
A moda também precisa de público?
Sim, mas acredito muito numa palavra inventada recentemente – fidigital – que é a integração do físico com o digital.
Um modelo híbrido?
Houve uma altura em que fui acusado, até por pessoas que eu respeito, de não ter uma identidade nacional. Só que nunca me vi assim, mas antes com uma dimensão internacional. Daí ser muito importante o digital, para me levar além-fronteiras, sem nunca descurar do físico, para se desfrutar do momento.
De que forma a pandemia afetou a indústria da moda? Houve muita gente que não se “vestiu” durante um ano e meio…
O que se andou a fazer durante a pandemia, do luxo ao mass market? Pijamas. A moda nunca esteve tão confortável, tão effortless [sem esforço]. Também fiz reuniões de boxers e descalço [risos]. Agora, voltou a sofisticação, os saltos, a cor, os materiais brilhantes e a maquilhagem.
Alta-costura e sustentabilidade são uma contradição de termos?
Não. Na moda, o conceito do we want now [queremos agora], we want fast [queremos rápido] e, na próxima estação, “já não queremos nada disso” está desatualizado.
A moda tornou-se mais consciente?
Sim, mas ser eco thinker [pensar ecologicamente] não é só usar fibras naturais e recicladas. Acredito cada vez mais em que se deve produzir menos lixo, estudando muito bem o cliente para quem estamos a trabalhar.
E usa peles?
Uso, de todos os animais que como, para aproveitá-los bem, como é o caso do coelho, da vaca ou do porco… Até já há materiais muito interessantes feitos de escamas de peixe. Por outro lado, se conseguimos sinteticamente reproduzir a pele de uma raposa, e até podemos mudar-lhe a cor, para azul-turquesa, por exemplo, não vejo necessidade nenhuma de andar a criar raposas para fazer casacos.
Essa é uma preocupação que tem vindo a crescer ou esteve sempre consigo?
Sempre tive a noção de que, se matasse um inseto, a Humanidade podia fazer o mesmo comigo. Até nisso tenho cuidado.
A moda é cíclica?
Não acredito em nada disso. O que me interessa é o futuro, embora não esqueça o passado e até possa inspirar-me em certas épocas. Mas, note-se, nem vou a festas dos anos 80!