“Vamos ter um clima no Sul de Portugal parecido com o de Marrocos? Sim, e temos de nos adaptar e de mitigar os efeitos. Vão morrer uns milhares de quando em vez? Ah, pois vão”

Foto: Marcos Borga

“Vamos ter um clima no Sul de Portugal parecido com o de Marrocos? Sim, e temos de nos adaptar e de mitigar os efeitos. Vão morrer uns milhares de quando em vez? Ah, pois vão”

No final de junho, uma onda de calor nunca antes vista matou centenas (milhares?) de pessoas no Canadá e nos EUA. Duas semanas depois, um temporal de dimensões bíblicas abateu-se sobre a Europa Central, matando 200 pessoas e provocando prejuízos que podem chegar aos €3 mil milhões (há estimativas que apontam para €5 mil milhões).

Serão estes desastres causados pelas alterações climáticas? Quase certamente que sim, diz Carlos da Camara, professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e um dos mais experientes climatologistas portugueses. Munido de um gráfico que se assemelha à bossa de um camelo, o também investigador do Instituto D. Luiz explica que uma pequena subida da temperatura média provoca um enorme aumento probabilístico de fenómenos extremos como estes. “Coisas que pareciam inacreditavelmente impossíveis começam a tornar-se possíveis. E às vezes nem é assim tão dramático: basta um deslocamento pequenino para que aquilo que dantes acontecia uma vez em cada 100 anos passe a acontecer quatro vezes em cada cem. Mas, como é isso que mata, é isso que tem impacto.”
E isto é só o princípio.

A tragédia no Centro da Europa é uma consequência das alterações climáticas ou do mau planeamento urbano?
As pessoas começam a dizer: “Ah, isto não é das alterações climáticas, é porque construíram coisas em leito de cheia.” Não! Um fenómeno extremo com consequências catastróficas nunca é de uma só causa. É como quando cai um avião: é um conjunto de fatores raros que se intercetam. Por exemplo, o 15 de outubro de 2017, aquele dia trágico em que ardeu o País como nunca, teve vários fatores que conduziram ao desastre. Ponto um, os ventos do Ofélia: não era nada habitual um furacão chegar aqui. Era uma coisa rara que, não sendo frequente, se tornou muito menos rara. Ponto 2: uma seca terrível, outro fenómeno que é cada vez menos raro. Ponto 3: os agricultores precisavam de fazer queimadas porque depois vinha a chuva e já não conseguiam (nunca houve tantas ignições como naquele dia). Claro que construir em leito de cheia é perigoso. Só que na Alemanha não era habitual haver coisas destas. E isto só aconteceu por causa das alterações climáticas.

De que forma é que uma temperatura média mais alta pode levar a um aumento de fenómenos de precipitação intensa?
Os estados do tempo são determinados por coisas que se passam a muitos quilómetros de altitude. A corrente de jato é fundamental nisto. É uma espécie de tubos na atmosfera, com ventos de 400 ou 500 quilómetros por hora, que controlam o tráfego de sistemas meteorológicos que estão associados, por exemplo, à precipitação. A posição da corrente de jato está dependente do contraste térmico entre os trópicos e os polos. Ora, o Ártico e o Antártico estão a aquecer muito mais rapidamente do que os trópicos; esse contraste está a diminuir e a corrente de jato está a posicionar-se noutros sítios. Isso faz com que determinados sistemas meteorológicos que não eram habituais passem a ser menos raros.

Então a tragédia que aconteceu no Centro da Europa é o tipo de evento que podemos esperar que aconteça cada vez mais?
Inequivocamente, sim. E ainda há uma outra razão, além da questão da corrente de jato: a atmosfera, quanto mais quente está, maior capacidade tem de reter vapor de água e maior quantidade de água estará disponível para que, caso haja condições para precipitação, ela ocorra com maior intensidade. Portanto, o facto de estes fenómenos se tornarem mais prováveis tem que ver com as alterações climáticas de origem antropogénica.

Qual a probabilidade de cheias como estas ou ondas de calor como a do final de junho no Canadá e nos EUA acontecerem sem o efeito das alterações climáticas?
Seriam acontecimentos extremamente raros. Um recorde que sobe de 45ºC para quase 50ºC é, do ponto de vista probabilístico, pouquíssimo frequente, num cenário sem influência antropogénica. No caso da “cúpula de calor”, a corrente de jato levou à formação de uma região em que o ar não se renova durante muitos dias, como se estivesse em circuito fechado. E sobre essa região há altas pressões, que têm a particularidade de empurrar o ar para baixo, comprimindo-o, o que faz com que aqueça. Além disso, havia já no Canadá uma seca excecional. Se o ar e o solo estiverem secos, aquece ainda mais do que em condições normais. Foram então duas situações absolutamente anómalas que se juntaram.

Uma equipa de investigadores que analisou essa onda de calor disse que esta seria “virtualmente impossível” sem as alterações climáticas.
Não é nada inédito. Um artigo de um colega meu, o Ricardo Trigo, publicado na Science em 2011, na sequência da onda de calor na Rússia, acaba a dizer que a probabilidade de algo semelhante voltar a acontecer é extremamente baixa. Curiosamente, no mês passado, Moscovo teve a onda de calor mais séria dos últimos 120 anos. Isto é que me preocupa imenso. E as regiões do Mediterrâneo e do Nordeste europeu emergem como os hotspots primários. É onde vamos ter estes extremos.

A realidade está a ser mais drástica do que os modelos climáticos previam?
Está em linha com o que se previa, mas a uma taxa mais acelerada. Aquilo que eu achava que ia acontecer depois de eu morrer… Bom, estou a ficar preocupado, porque começa a haver fenómenos extremos que os modelos apontavam mais para a frente.

Como climatologista, estes fenómenos surpreendem-no? Ou olha para isto e pensa: “Há anos que andamos a avisar”?
Há anos que andamos a avisar. O problema é que um climatologista não é um catastrofista. A questão é que quando se transforma um resultado científico numa ideologia, caímos na controvérsia. Eu só digo: “Meus amigos, isto são os resultados. Agora façam o que quiserem.” O que temos de fazer é confiar na Ciência, olhar para os cenários e arranjar medidas para nos adaptarmos. Mitigar os impactos, porque eles estão aí e duvido de que possamos escapar.

Este mês, o Comité das Alterações Climáticas britânico avisou o governo de Boris Johnson de que o país está mais mal preparado para fenómenos extremos do que há cinco anos. Os governantes não estão a levar os alertas a sério?
É um facto que governos mais conservadores tendem a minimizar os impactos das alterações climáticas. Ao mesmo tempo, os de esquerda tendem a dar uma ideologia a uma coisa que não devia ser ideológica, mas sim técnico-científica.

Tivemos então a onda de calor na América do Norte, que matou centenas de pessoas…
Centenas, não. Vão chegar aos milhares. Vai ser essa a conclusão, quando se fizer a análise estatística da diferença de mortes para o mesmo período em condições normais.

… E agora as cheias na Europa, que provocaram pelo menos 200 mortes. Se isto acontece nos países mais ricos e com as melhores infraestruturas, o que podem esperar os países mais pobres do mundo? Nas metrópoles da Nigéria, do Bangladesh ou da América Latina…
Mas já acontece! De cada vez que um furacão assola o México ou a Nicarágua, os mortos são aos milhares. De facto, em países como os EUA reduz-se o número de vítimas, porque há uma capacidade de previsão e de mobilização. Essa é a vantagem das sociedades mais industrializadas. Mas também têm prejuízos económicos muito maiores. O furacão na Figueira da Foz causou uma enorme destruição na rede elétrica, por exemplo.

O objetivo do Acordo de Paris é limitar o aumento da temperatura a um máximo de 2ºC, mas preferencialmente não mais de 1,5ºC. Esses 0,5ºC podem efetivamente significar milhares de vidas salvas todos os anos? Meio grau faz a diferença?
Meio grau faz toda a diferença nos desvios-padrão. Uma coisa que tinha uma probabilidade de 0,13% de acontecer passa para 0,26% – duas vezes mais provável. O problema não é a média. Com essa eu vivo bem. É como com a subida do mar: a questão não são os 80 centímetros a mais até ao final do século, são as flutuações, com ondas e subidas de água capazes de destruir a baixa de uma cidade como Lisboa, que dantes eram raríssimas e passam a ser muito mais frequentes. A discussão do meio grau é fulcral, porque se traduz, em termos de extremos, em variações brutais de probabilidades.

Em Portugal, que consequências das alterações climáticas já se notam mais claramente?
Se analisarmos o perigo meteorológico de incêndio em Portugal dos últimos 40 anos, e o dividirmos num gráfico, vemos que todos os maiores extremos aconteceram nas últimas duas décadas, de 2000 para cá. Se cruzarmos com a área ardida oficial, vemos que acontece o mesmo. Depois podem dizer: “Ah, a paisagem está mais desordenada, ou há mais ignições”… Não estou a dizer que as alterações climáticas são o bode expiatório de tudo, mas, não havendo uma política de ordenamento do território nem de mitigação de ignições, o resultado estatístico está à vista. Outra coisa: entre 1980 e 1999, 89% dos fogos ocorriam de julho a setembro, e apenas 3% de outubro a dezembro; de 2000 a 2019, a proporção de fogos no verão baixou para 76% e de outubro a dezembro subiu para 13 por cento. Isto é um exemplo muito simples dos impactos. As alterações climáticas estão a fazer com que as consequências sejam muitíssimo piores. Tornam mais prováveis acontecimentos que eram raríssimos. Se juntarmos a isto outras condições, o impacto vai ser ainda maior.

Governos mais conservadores tendem a minimizar os impactos das alterações climáticas. Ao mesmo tempo, os de esquerda tendem a dar uma ideologia a uma coisa que não devia ser ideológica

Estamos preparados para o aumento desses riscos? Incêndios, ondas de calor, secas, inundações?
A seguir ao trauma de 2017, houve uma mudança de paradigma. As pessoas passaram a ter medo, o que às vezes é útil. Há uma muito maior colaboração entre as universidades e as instituições, por exemplo. A Proteção Civil está agora a usar conhecimento científico para o posicionamento das aeronaves. Isso nota-se, sim. Mas o problema é extremamente vasto. Além disso, transcende o ciclo governativo, aquela ideia de que o que interessa é ter resultados até às eleições, quando a questão dos fogos é muito mais complexa.

É um problema só nosso?
Não. Uma vez, em 2017, estava à conversa com um diplomata sueco que me dizia, com condescendência: “Vocês, portugueses, são muito indisciplinados. Nós, na Suécia, não temos o impacto dos fogos, porque há muitos anos que temos especialistas competentes.” E eu disse-lhe: “Prepare-se, porque vão ter problemas. As alterações climáticas estão a chegar lá.” No ano seguinte, ardeu a Suécia. Esta ideia de que os países nórdicos ou a Alemanha estão bem preparados… Não estão, porque isto ultrapassa os cenários menos usuais. Mas também lhe digo que os belgas e os alemães não brincam em serviço. Morrerem ou desaparecerem tantas pessoas é completamente inaceitável e vai haver uma mudança qualitativa na previsão e na resposta a este tipo de coisas.

Portugal devia também aprender com esta tragédia na Alemanha?
Há uma mentalidade que começa a mudar. Nos fogos, isso é óbvio: começou a perceber-se que um fogo vencido não é uma vitória, é uma derrota. Uma vitória é evitar o fogo. É como dizer: “O tipo espetou-se, mas a ambulância chegou em três minutos.” Não, vitória era não haver acidente. E isto é transposto para tudo, incluindo cheias.

Está otimista, então?
Como estes extremos vão continuar a ocorrer, as pessoas vão perceber que os climatologistas tinham razão. Agora, as alterações climáticas vão ser o Armagedão, o fim do mundo? Não. Vamos ter um clima no Sul de Portugal mais parecido com o de Marrocos? Sim, e temos de nos adaptar e mitigar os efeitos. Vão morrer uns milhares de quando em vez? Ah, pois vão, com certeza. Como se está a ver.

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