Todos os dias, Isabel do Carmo lê artigos de investigação sobre saúde e alimentação. É um hábito de anos e só assim conseguiu terminar mais um livro, Alimentação, Mitos e Factos – Uma Perspectiva Científica, com a sensação de dever cumprido. São 350 páginas que nasceram da vontade de alertar contra a onda de falsas “verdades”, explica a médica logo a abrir, preocupada que está com as modas na alimentação. “Se uma coisa é um mistério, substituímos por uma explicação fácil. E isso é interessante na poesia”, dirá, com uma gargalhada. “Os poetas exprimem através de imagens aquilo que sentimos. Eu adiro ao pensamento mágico, mas não na saúde.”
No seu novo livro, confessa-se preocupada com a alimentação dos portugueses. Devemos estar todos?
Devemos porque ela é má. Dez por cento da população faz diariamente um esforço para obter as calorias suficientes. Além disso, quase metade não come fruta e vegetais suficientes, bebe refrescos e come gorduras a mais. E também devemos estar preocupados com o facto de a classe média ter entrado num quadro sociológico de mitos alimentares e de modas sem base científica nenhuma
As pessoas chegam à sua consulta a dizer que querem fazer a dieta X?
Muitas dizem: “Já fiz paleo, já fiz sem glúten, já fiz sem lactose e não obtenho resultados nenhuns, e agora quero fazer doutra maneira.” Outras contam que comem sem glúten porque tinham dores na barriga, e, quando pergunto se fizeram análises, respondem: “Não, não fiz, mas sei que é assim.” Ou que cortaram a lactose na alimentação, mas sem antes verem se têm intolerância.
“Sei porque vi na internet”?
Isso é uma constante e aflige-me porque julgava que a informação generalizada ia ser boa para as pessoasterem o poder de perceber a Ciência. Mas não. São mais acessíveis as coisas “maravilhosas”, mágicas. E é curioso ver que esse pensamento mágico surge muito em pessoas com um nível universitário e que não é uma ruralidade, é um fenómeno das grandes metrópoles.
O pensamento mágico está a pôr em risco a nossa saúde?
Vivemos o dobro do que se vivia há um século, mas a qualidade de vida podia ser melhor, sobretudo entre os 60 e os 80, que são mal vividos. A questão dos lácteos, por exemplo, pode atingir este grupo etário. Atualmente, uma mulher de 60 anos está muito desperta para as modas e muito recetiva às coisas mágicas; e, se resolver que não come lácteos, é perigoso porque está numa idade em que tem de evitar a osteoporose.
Faz sentido quando lemos que o leite foi “amaldiçoado”.
E foi! Quando a moda da soja começou a subir, apareceram líquidos com extratos e açúcar. Ainda por cima, as pessoas bebem esses “leites” e o pensamento acrítico instala-se. É fácil substituir o leite de vaca por uns líquidos saborosos, que lhes dizem ser ótimos porque são vegetais, naturais. Como se o leite da vaca não fosse natural. E estes mitos atingem idades permeáveis ao pensamento mágico, porque as pessoas querem a vida eterna. Se lhes disserem que aquele líquido é natural e é bom para a saúde, aderem. Aí, começa a ser perigoso.
Há mitos piores do que outros?
Há. Estou a pensar, por exemplo, no caso dos jovens, entre os 15 e os 20 anos, que se tornam vegetarianos integrais e ficam com défice de vitamina B12. É perigoso, porque a vitamina B12 faz falta a muitas coisas, entre elas ao cérebro. Todos os artigos, mesmo defendendo as práticas vegetarianas, mostram que tem de haver suplementação. As crianças devem fazer análises para ver se estão com um desenvolvimento normal ou se estão desnutridas. Essa é uma questão perigosa, mas os piores são os chamados suplementos alimentares.
Os suplementos alimentares são todos perigosos?
Se as pessoas se queixam de cansaço, avalio sempre se as reservas de ferro estão bem e se o ácido fólico, a vitamina D e a vitamina B12 estão normais. Faço isto por sistema e muitas vezes encontro défices. Nesses casos, dou aquele nutriente, num medicamento que se vende na farmácia. Por outro lado, também existem os complexos vitamínicos, que se justificam, por exemplo, na gravidez. Mas há outra categoria de suplementos, que eu direi medicamentosos, que têm extratos de várias coisas, e que não passam pelo Infarmed. O Ministério da Agricultura apenas regista que existem. Portanto, algumas dessas coisas que as pessoas andam a tomar, julgando que são naturais e que por isso não podem fazer mal, são perigosas.
Estamos a falar de toxicidade?
Em Portugal, só tivemos uma vez o Infarmed a suspender a venda de um suplemento [a Depuralina, em abril de 2008]. Aquilo que sabemos da toxicidade dos suplementos alimentares vem das queixas nos Estados Unidos da América. É uma questão de escala. Nessas queixas aparecem estimulantes, porque muitos contêm cafeína e substâncias semelhantes em doses que podem dar toxicidade cardíaca e causar taquicardia. E em produtos de emagrecimento também tem sido descoberta a hormona tiroideia, sem ser declarada, e as pessoas ficam em hipertiroidismo. Claro que vão perder peso e ficar com mais energia, que era o que acontecia com os medicamentos do Dr. Tallon.
As dietas da moda são todas perigosas?
Há uma relativamente inocente que é a dos jejuns intermitentes. Existem provas de que podem ter benefícios. Os jejuns intermitentes e as dietas muito hipocalóricas.
Muito hipocalóricas significa exatamente o quê?
Toda a dieta para emagrecimento é hipocalórica, porque ninguém perde peso se não comer menos calorias do que aquelas que gasta. Se gasta 2 200 calorias, tem de comer 1 200 para perder peso. Depois, há as dietas muito hipocalóricas, em que, em vez das tradicionais 1 200 calorias, a pessoa come 700/800 (estou a dar números reais). Se é saudável e fizer isso uma vez por semana, duas vezes por semana ou mesmo durante uma semana inteira, pode ser benéfico.
Benéfico para a saúde?
Sim, também para a saúde. E esta é uma descoberta recente. Nós achávamos que a restrição alimentar era má para a saúde porque eram fabricados corpos cetónicos. Agora, há investigações sérias ao nível molecular que mostram que o corpo também vai consumir substâncias más que estão lá, como detritos celulares. E a verdade é que, quando a minha colega Alda Pereira da Silva fez um estudo sobre centenários [na sua tese de doutoramento, defendida em 2018], em que incluiu pessoas com 80 ou mais anos, não só são todos magros como comem pouco. A hipótese que se põe é que o facto de a dieta ser um bocadinho hipocalórica faz com que o organismo vá comer, digamos, os detritos. Tudo aquilo que não fazia falta, como metabolismo celular, é digerido.
Isso também pode ser aplicado aos jejuns intermitentes?
Pode. Há quem faça 16 horas de jejum e, nessas horas, o corpo pode ir comendo os tais detritos. Por isso, quando agora me aparecem na clínica pessoas que fazem a última refeição ao jantar e só voltam a comer ao almoço, já não lhes digo como dizia: “Não, não, vai ter de comer cinco ou seis vezes ao dia.” Mas quem tem diabetes ou outras doenças (oncológicas, por exemplo) e pessoas mais velhas que podem ficar em hipotensão, não devem fazer.
Agora, também está na moda a suplementação da vitamina D, como se toda a gente tivesse défice.
E tem! A vitamina D é uma hormona, no sentido em que é produzida na pele mas depois vai para todos os órgãos. A partir do momento em que se inventou a luz elétrica, as pessoas deixaram de receber tanta luz solar direta. E, mesmo aquelas que se expõem ao sol, usam protetor, que não deixa passar os raios ultravioleta. Portanto, é natural que haja um grande défice de vitamina D.
Qual é o perigo de ela faltar?
O dos ossos é o mais conhecido, mas veio a verificar-se que é necessária, por exemplo, para o metabolismo dos hidratos de carbono na diabetes e que faz falta nos vasos sanguíneos. A falta de vitamina D não causa nenhuma doença aguda, mas foi calculado aquilo que era desejável e hoje é raro eu não ver pessoas com défice. É aconselhável que, antes de porem o protetor, estejam cinco a dez minutos ao sol (se não tiverem riscos de melanoma). Mas muitas vezes isso não chega.
O ómega 3 também se tornou uma moda das boas. Devemos continuar a insistir nos peixes gordos?
As populações dos países que comem por hábito peixes gordos, como o nosso, têm mais ómega 3 no sangue e mais longevidade. A administração de ómega 3 através de comprimidos também está estudada, mas eles não são comparticipados pelo Estado, ou seja: a prova da sua eficácia não é suficiente. Há estudos contraditórios.
E a dieta mediterrânica?
É mais uma boa moda. Só não gosto do discurso da tradição, porque certos alimentos que fazem parte dela só surgiram depois de irmos buscá–los à América do Sul – o tomate, a batata, o milho… E é preciso dizer que é seguida por pouca gente em Portugal. Arrisco 10% da população, e sobretudo mulheres e mais velhas. As pessoas até podem ir a um restaurante e comer um bocadinho de carne ou de peixe, hidratos de carbono q.b. e muitos vegetais, mas depois vão beber refrigerantes e comer doces.
No seu livro, junta as nozes e a canela. Têm os mesmos benefícios?
Em relação às nozes, é preciso acautelar que são hipercalóricas – uma tacinha, que comemos facilmente ao serão, vale duas carcaças. As nozes, além de aumentarem a saciedade quando as mastigamos, diminuem os lípidos no sangue porque contêm um tipo de óleos bons, como o azeite. A canela também aumenta a saciedade e ajuda no metabolismo. Quando estamos a comer hidratos de carbono ou açúcar de açucareiro, o valor calórico pode ser menor se acompanharmos com canela. Há alguns estudos realizados na Índia, mas a maioria é com doses quantificadas, inclusivamente com cápsulas. Não sei se chega pôr canela no arroz doce [risos].
Lá vem o bicho-papão do açúcar.
Está provado que faz mal! Falo do açúcar de açucareiro e da frutose, que chegou a ser indicada para os diabéticos. E há uma outra moda que apareceu, por arrastamento, que é a restrição dos hidratos de carbono.
Qual é o perigo de não comer batatas, arroz ou massa?
É a falta de um nutriente que só existe ali e das vitaminas que vêm com ele. Há certas vitaminas que não encontramos noutros sítios. A moda de retirar os hidratos de carbono pegou bem e só não me preocupa mais porque as pessoas não aguentam muito tempo. Tanto assim que tem sido difícil fazer estudos horizontais, porque poucas conseguem seguir uma dieta monótona durante um ano. Mas preocupa-me que se tenha deixado de comer pão para comer aveia. A aveia é um bom cereal, mas as pessoas ficam privadas do prazer de comer pão. Ora, o pão de mistura leva tempo para fazer a digestão, dá mais saciedade, tem bons componentes nutricionais e é mais barato do que qualquer outro cereal comprado ao quilo.
Por que razão é tão difícil fazer estudos científicos em alimentação?
A não ser que se metam pessoas no laboratório, para observar o que comem, tem de se lhes perguntar e há logo uma distorção. Também se pode ir ver os consumos, mas aí vamos para médias. Só fazendo inquéritos alimentares. Portanto, na alimentação é preciso ser mais cuidadoso nas conclusões e também por causa dos lóbis alimentares, que são poderosos.
São eles os grandes culpados de as fake news terem chegado à alimentação?
É como na política, é horrível. As agências de comunicação trabalham muito bem quando querem fazer propaganda de uma determinada coisa. E fazem-no subrepticiamente. Portanto, tal como na política, as fake news estão a operar na alimentação com as mesmas intenções – que é vender alguma coisa, de uma maneira organizada.