Jurista de formação, Isabel Meirelles tem-se dividido entre a advocacia e o ensino. Analista regular nos média, é conhecida como especialista em Assuntos Europeus. Foi senior lecturer no Centro Europeu de Juízes e Advogados, no Luxemburgo, e assessora do Gabinete de Direito Europeu do Ministério da Justiça. Adjunta dos ministros da Justiça nos governos de Sá Carneiro e de Balsemão, foi também vereadora do PSD na Câmara de Oeiras. É hoje vice-presidente da Comissão Política de Rui Rio.
O que lhe pareceu a declaração do ministro dos Negócios Estrangeiros, Santos Silva, de que, em caso de nova “geringonça”, deveria haver maior compromisso dos parceiros, designadamente em matéria europeia?
Acho extraordinariamente difícil. Os partidos à esquerda do PS são praticamente antieuropeus. E a União Europeia (UE) precisa de grandes reformas, quer na Zona Euro quer no que se refere a reformas institucionais em geral ou a acordos sobre imigração. Não vejo que eles se possam comprometer em algo tão integrador como o projeto europeu.
Mas acredita que, com mais ou menos compromisso europeu, saia algo semelhante a este Governo, nas próximas legislativas?
Vai depender dos resultados eleitorais. Só a partir daí é que serão possíveis as projeções.
A estratégia de Rui Rio para salvar António Costa de ser refém da esquerda ainda não se refletiu nas sondagens. Mesmo assim, tem dado frutos?
É uma estratégia que precisa de tempo, mas os portugueses compreendem-na, porque é uma estratégia de seriedade, de ética, e não de política rasteira. Há que dar ideias; integrar em vez de desintegrar. É esta a visão, mais do que de um político, de um homem de Estado. Qualquer pessoa bem-intencionada vê que isto é pôr em primeiro lugar os interesses do País.
Rio terá colocado como seu horizonte as autárquicas de 2020. Se, das próximas legislativas, sair a nova “geringonça”, será de manter a estratégia?
Esta é uma estratégia para manter, sim. Não é uma corrida de 100 metros, mas uma maratona. Vão ser precisos grandes pactos de regime para o desenvolvimento do País, seja na Saúde, na Justiça, na Educação. Isso só pode ser feito com elevação e sem facciosismo. Nenhum partido consegue por si só fazer essas reformas.
Em que circunstâncias poderia o PSD aprovar o Orçamento do Estado? Fazendo incluir que matérias?
Para isso precisava de uma bola de cristal. Era necessário, primeiro, que houvesse Orçamento e, existindo, que este fosse conhecido. Como não sucede uma coisa nem outra, não podemos pronunciar-nos.
A nível europeu, um dos maiores impasses tem sido o Brexit. A primeira-ministra Theresa May diz que o Reino Unido poderá sair com um “no deal”, isto é, sem um acordo. Acredita?
Depois das demissões do seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Boris Johnson, e do negociador para o Brexit, David Davis, ficou claro que as perspetivas são cada vez mais estreitas. Theresa May quer um acordo de comércio livre, eventualmente uma união aduaneira. Porém, o mercado único pressupõe quatro liberdades – a circulação de pessoas e de trabalhadores, de serviços, de capitais, de mercadorias. Em termos técnicos, considero que isso não é possível e que ela está metida numa camisa de onze varas. Assim, provavelmente teremos um hard Brexit, até porque os parlamentos nacionais terão de sancionar o acordo. E, a nível de Bruxelas, basta um Estado não aceitar para que o acordo não exista.
O ministro Liam Fox previa que seria “um dos acordos mais fáceis de negociar da História da Humanidade”. Como se complicou?
Implicou dinheiro. E o dinheiro faz andar o mundo, já dizia a Liza Minnelli. Há aqui uns milhões de euros que Londres tem de pagar à UE, e é óbvio que, nesta questão, as partes não se entendem. Depois, estes acordos envolvem 27 Estados-membros de um lado, e, embora Michel Barnier tenha sido um excelente negociador até agora, estão em causa imensas variáveis que nós nem sonhamos, como os serviços financeiros, a questão aduaneira, as migrações. É como o cubo de Rubik: quando se desacerta uma peça, desacertam-se todas. Mas espero, para bem de todos, que o Reino Unido possa ficar com alguma ligação, não direi umbilical, mas de boa vizinhança com a UE.
Londres estaria a contar com que todos os Estados cerrassem assim as fileiras?
Talvez não, até porque têm andado um pouco desavindos. Mesmo assim, puseram-se de acordo em que, se um quiser sair, a porta da rua será a serventia a casa, mas só depois de pactuar um acordo com os restantes. E o Reino Unido sempre foi malvisto; é um pais eurocético; nunca quis aderir ao euro e, no tempo de Thatcher, nem quis ser contribuinte líquido. Basta lembrar que ela dizia “quero o meu dinheiro de volta”. O Reino Unido sempre tem exigido o opting out, exceções atrás de exceções na legislação europeia e ficava de fora quer fosse em segurança e defesa, quer em política de migração. No fundo, este país sempre quis um espaço de livre troca, uma espécie de centro comercial para escoar os seus produtos para o continente. Já De Gaulle lhe chamava “o Cavalo de Troia” na fortaleza europeia.
Como viu a viagem de Trump pela Europa, a exigir aumentos nos orçamentos de Defesa?
É preocupante que o Presidente dos EUA declarasse isso, não tanto pelo assunto em si mas pela forma como o fez, ameaçando quase retirar o seu país da NATO. Não me lembro de um membro seu fazer este tipo de ameaças. Enfim, é do seu estilo!
Ele quer concretamente uma subida para 2% do PIB.
Falava, aliás, em 4%, para depois negociar até aos 2%. A Europa tem, de facto, de prover à sua segurança e de aumentar o orçamento, pelo menos até aos 2% do PIB, se desejar um mínimo de autonomia. Já é tempo, como dizem Macron e outros líderes, de os europeus pagarem a sua defesa, para que não nos tirem, um dia, o tapete. Claro que é difícil uma integração de Forças Armadas, de Forças de Segurança, criando, não digo um Exército comum, mas uma cooperação policial. Aliás, já se têm feito missões de paz, e a União da Europa Ocidental (UEO) já foi um embrião de defesa europeia. Portanto, está na altura de os governos europeus apostarem nisso, para não ficarem desprotegidos face a ameaças difusas, pois uma grande questão é saber quem é o inimigo.
Porque não é o mesmo para todos.
Exatamente. Para haver um Exército comum tem de haver uma política de Defesa e uma política de Negócios Estrangeiros comuns. Se perguntarmos ao diversos Estados-membros qual é o inimigo, uns dirão a Rússia, outros os EUA, outros o terrorismo, outros os migrantes. Não há aqui um fio condutor que possa dar uma orientação coerente. Por isso, é uma política muito difícil de implementar. Só perante uma verdadeira ameaça os europeus vão unir-se definitivamente.
Quando Trump falava no aumento do orçamento, pensava na NATO.
E este ainda é bastante importante para os europeus, mas muitos já alertaram para a necessidade de um aumento do orçamento, não só no âmbito da NATO como da Política Externa e de Segurança Comum (PESC).
Acredita mesmo que os EUA abandonariam a NATO?
Acho muito difícil. A UE não é irrelevante, pelo contrário: trata-se de uma das maiores potências comerciais, que fala de igual para igual com a China ou o Japão. A prova disso foi Claude Juncker ir aos EUA e conseguir de Trump uma marcha-atrás na guerra comercial que este declarara à Europa. É muito improvável os EUA viverem sem a UE, e vice-versa. Apesar do sr. Trump, que, de vez em quando, baralha e torna a dar, há checks and balances, pesos e contrapesos, quer na política norte-americana quer na da UE, que fazem com que esta aliança continue.
Como tem visto a presidência de Juncker?
Sou suspeita, porque gosto imenso dele. Foi um ótimo ministro das Finanças, ótimo presidente do Eurogrupo, um bom primeiro-ministro do Luxemburgo. Acho difícil fazer melhor do que ele está a conseguir. Claro que se lhe podem apontar defeitos, como a todas as pessoas, mas é talvez dos últimos europeístas convictos com que a UE tem contado. E ele tem feito tudo para juntar as peças dispersas em vários domínios. Só esta ida aos EUA, regressando com um pré-acordo no bolso, faz dele um bom presidente.
Que reflexos pode ter a era Trump na Europa?
Steve Bannon, o estratego da campanha de Trump, anda pela Europa a juntar os partidos de extrema-direita, o que é muito preocupante. Estes movimentos dizem que, se ganharem as eleições, saem da UE, da moeda única. Também é verdade que alguns têm feito marcha à ré, como é o caso de Itália, que dizia que ia sair do euro e nada. O mesmo aconteceu na Grécia com o Syriza, no outro extremo político. Mas até, em França, os eleitores de Marine Le Pen são extraordinariamente apegados ao euro, que é a construção mais democrática, o cimento agregador para muitos cidadãos europeus, os quais encaram a hipótese de saída do euro como uma perda para as suas economias, o seu poder de compra. Apesar de tudo, isso tem sido um travão.
As extremas-direitas não podiam juntar-se por si próprias? Steve Bannon fará assim tanta diferença?
Ele é um perigo. Viktor Orbán ganhou as eleições na Hungria só com o discurso anti-imigração. Estamos a falar de partidos que defendem regimes autocráticos, de pensamento único. Basta ver como Marine Le Pen tece loas a Putin. Steve Bannon é um alter-ego de Trump. Está a doutrinar estes partidos e, mais do que isso, a congregá-los numa federação, o tal movimento. Nenhum dos líderes europeus, nem sequer Marine Le Pen, tinha proposto isto. Foi preciso vir alguém do outro lado do Atlântico para lhes dar esse cimento, criar uma vaga de fundo. Vamos ter eleições europeias em maio, e, se estes partidos ficarem em maioria, será a implosão do projeto europeu.
Mas podem mesmo ficar em maioria?
Então não podem! Aliás, bastar-lhes-á ficar com uma minoria de bloqueio. O Parlamento Europeu codecide com o Conselho Europeu. Portanto, todas as propostas de regulamentos e de diretivas podem ser bloqueadas a nível do Parlamento.
Em relação à imigração, como evoluirá a situação a curto prazo?
Os Estados-membros não se entendem nesta matéria. Trata-se de uma política de grande sensibilidade e é muito difícil um consenso. Mas já vimos que a UE só dança a várias velocidades. A minha posição pessoal é que, se houver uma meia dúzia de países que aceitem, dentro das suas possibilidades, integrar estes migrantes é para aí que estes devem ir. Em contrapartida, não podemos forçar outros Estados a recebê-los, porque isso seria dar gás àqueles movimentos. É uma Europa de solidariedade, mas tem limites. Esta imposição a todos resulta nos Viktor Orbán desta vida.
Viktor Orbán diz que as próximas eleições europeias serão “decisivas.” Concorda?
São as mais importantes desde que o Parlamento Europeu é eleito por sufrágio direto e universal. Há que combater o fenómeno, cada vez mais preocupante, que é a abstenção. No PSD, vamos promover, a partir de outubro, uma série de debates sobre o que a UE pode fazer pelos portugueses. Levaremos, a várias capitais de distrito, personalidades nacionais e estrangeiras. O que estará em causa não é a eleição deste ou daquele deputado, mas a continuação de um projeto que deu imenso desenvolvimento a Portugal, o qual é obra dos governos nacionais mas também dos fundos de coesão. E nisso temos de agradecer a Jacques Delors, que fez tudo para duplicar os fundos que se destinavam a nós. Estes podiam, talvez, ter sido mais bem aplicados, é verdade, mas o nosso nível de vida não seria hoje o mesmo fora da UE.
Vamos tê-la na lista de candidatos do PSD às europeias?
Ainda é muito cedo para falar nisso. O importante é trabalhar as ideias, densificar projetos, e não ambições pessoais por vezes mesquinhas. A minha ambição é servir o País e a Europa, propor ideias. É muito triste ver que só 30% dos eleitores vão às urnas em eleições que decidem o futuro político da União Europeia.