Alguma vez se deixou enganar por uma notícia falsa? O jornalista Fergus Bell está apostado em evitar que tal aconteça. Quando a expressão fake news se popularizou, há um par de anos, já o britânico somava uma década de combate à desinformação. À VISÃO, revela as suas estratégias para lidar com conteúdos duvidosos. Foi na agência noticiosa The Associated Press que começou por implementar normas éticas relativas ao uso das redes sociais enquanto fontes de informação. É, também, um dos fundadores do First Draft News Coalition, uma iniciativa do Google News Lab focada nas melhores práticas de validação da informação recolhida nas redes. Aos 34 anos, coordena o Global Council to Build Trust in Media and Fight Misinformation (que fundou), um conglomerado que reúne seis das principais organizações representativas das empresas de média e de jornalistas. O objetivo é contribuir para o aumento da confiança nos média e combater a desinformação em todo o mundo, evitando a duplicação de esforços. Fergus Bell esteve em Portugal no âmbito do World News Media Congress, uma conferência dedicada ao futuro dos média que se realizou no Estoril, na semana passada. Contrariando o histórico jornalista Ryszard Kapuściński, autor do livro Os Cínicos Não Servem para Este Ofício, acredita que o regresso do cinismo, em tempos de fake news, pode ser uma boa notícia.
Quando foi a última vez que se deixou enganar por uma notícia falsa?
Não creio que alguma vez tenha sido enganado por uma notícia falsa. Sou demasiado cauteloso.
Que estratégias utiliza?
Fui uma das primeiras pessoas a criar processos de verificação para os conteúdos publicados nas redes sociais. Por isso, sempre que me deparo com uma notícia de fonte desconhecida, verifico-a através de uma checklist pessoal que criei. Avalio se conheço a história de quem publicou o conteúdo, a credibilidade do que publicou anteriormente e se consigo entrar em contacto com ela e certificar-me de que assistiu, de facto, àquele acontecimento. Também procuro várias fontes que confirmem o acontecimento.
É esse processo de verificação da informação que recomenda aos leitores?
O processo de verificação dos consumidores de notícias não tem de ser tão rigoroso como o dos jornalistas. Uma das soluções é voltarem-se para as marcas de média nas quais confiam para compreenderem melhor o que se está a passar, mas o mais importante é compreenderem como lhes chegam as notícias. Se as pessoas acederem à informação através das redes sociais, confiando nos algoritmos, até podem receber conteúdos interessantes, mas não necessariamente noticiosos. É como quando fazíamos os trabalhos de casa: consultávamos enciclopédias e também íamos à biblioteca da escola, nunca nos ficávamos só por uma fonte. Nas notícias, também não podemos confiar numa única fonte.
Como podem os jornalistas ajudar a combater a proliferação de fake news?
Se cometermos um erro, enquanto jornalistas, e publicarmos alguma coisa que não é verdade, temos de o corrigir em vez de o apagar. Qualquer correção ou atualização da história deve ser publicada no artigo original que deu origem ao erro – precisamos de garantir que a correção será vista por aqueles que leram o conteúdo errado. Outra forma de impedir a proliferação de informação errada é garantir que existem processos de verificação na redação – podem ser tão simples como debater com um colega antes de publicar. Se formos enganados, e nos apercebermos disso demasiado tarde, temos de ser transparentes para continuarmos a merecer a confiança do público.
E, quando todos os meios estão a divulgar uma notícia falsa, como podemos garantir que, se fizermos a reposição da verdade, ela chegará ao mesmo número de pessoas?
É uma batalha permanente. As marcas de média estabelecidas há mais tempo, se se mantiverem fiéis aos seus processos, os consumidores de notícias serão atraídos para elas. É incrivelmente difícil ver os nossos concorrentes a publicarem, sem hesitação, alguma coisa que pode não ser verdade, mas temos de confiar que a audiência preferirá aqueles que distinguem a verdade da falsidade. Muita da informação que circula está acessível ao público. O que o jornalismo acrescenta é o que as pessoas ainda não fizeram: a verificação. Pode ainda não ser óbvia esta alteração da perceção do público, mas acredito que vai chegar. A verificação caminha a par da confiança.
As notícias de última hora são justificação para quebrar regras éticas, em nome da rapidez?
Se as empresas de comunicação social não conseguirem aplicar as suas melhores práticas às notícias de última hora, que são muitas vezes a principal razão para o público as procurar, então quando vão fazê-lo? Melhores práticas não são sinónimo de lentidão, são sinónimo de saber quais são os nossos padrões antes de os eventos acontecerem, de publicar com mais confiança do que os concorrentes.
São as fake news um fenómeno novo? Afinal, a mentira sempre fez parte das estratégias de desinformação.
Fake news é uma expressão que deixa as pessoas entusiasmadas, mas não é nova. A propaganda e a desinformação sempre existiram. Um elemento novo são as “fábricas de notícias falsas” [páginas de internet que divulgam histórias fabricadas], que, em alguns casos, são criadas para influenciar eleições, noutros são apenas criadas para gerar dinheiro, sem intenção maliciosa.
Não seria fácil acabar com as “fábricas de notícias falsas” se plataformas digitais como o Facebook tivessem vontade de o fazer?
Seria muito fácil pôr toda a ênfase nas plataformas de distribuição. Independentemente de quem foi responsável pela perda de confiança nos média, cabe aos jornalistas e às empresas de comunicação social encontrar uma solução. Não creio que pedir às plataformas para resolverem o problema seja o melhor caminho. Se as empresas de média não pegarem nas histórias feitas pelas fábricas de notícias falsas, se não lhes derem atenção, então a maneira como estas histórias veem a luz do dia irá mudar, vão destacar-se pela negativa perante o bom jornalismo. A resposta está mais na forma como nós, jornalistas, nos comportamos do que em simplesmente pedir às plataformas para se verem livres delas.
As redes sociais são as principais culpadas pela polarização de opiniões a que assistimos?
É uma combinação de fatores. As pessoas têm, talvez, menos acesso a opiniões contrárias às suas devido à forma como os algoritmos funcionam. Não se trata necessariamente de uma intenção maliciosa, mas recebem conteúdos enviesados que perpetuam os seus preconceitos e estão menos expostas a outras opiniões. Antigamente, escolhiam o seu jornal preferido na banca, mas eram obrigadas a ver as manchetes dos outros jornais. Talvez nem exista mais polarização – simplesmente as pessoas têm mais facilidade em expressar as suas opiniões e em fazer-se ouvir devido à tecnologia disponível.
Como podem os média ajudar a combater versões simplificadas da realidade que, muitas vezes, beneficiam o populismo?
Ajudam ao não se deixarem enredar no imediatismo e ao contarem bem as histórias. Se não se limitarem a reagir aos acontecimentos e se acrescentarem contexto.
As redes sociais tornaram-se uma fonte de conteúdos. Como podemos distinguir o que tem ou não interesse jornalístico?
As notícias originárias das redes sociais podem ser legítimas. Agora, um conteúdo viral não tem necessariamente interesse jornalístico. O assunto pode ser interessante, mas será que isso deve ditar a forma como as organizações de média conduzem o seu trabalho? Provavelmente, não. O que deve guiar o seu trabalho é contar histórias que não estejam em mais lado nenhum e explicar por que razão é importante conhecê-las. É fundamental manter uma agenda editorial fora da pressão das redes sociais e dos concorrentes.
Como podem os média libertar-se da dependência de empresas como o Google ou o Facebook?
A solução não é libertarem-se delas. Há uma razão para essas empresas serem tão populares: muitas pessoas utilizam-nas. A solução passa mais por reequilibrar a relação entre a indústria dos média e as grandes tecnológicas. Passa por sabermos como dialogar com elas. Uma forma de o fazer é trabalhar em conjunto enquanto indústria dos média, em vez de tentar conseguir um melhor acordo individualmente. Serão uma conversa e uma parceria a longo prazo, porque elas têm algo valioso para as empresas de média, mesmo que ninguém queira admiti-lo.
Mas os jornalistas também têm algo valioso para elas…
Cada uma dessas organizações partilhou estatísticas sobre as receitas garantidas pelos conteúdos jornalísticos, e são muito pequenas quando comparadas com as receitas advindas de outros produtos. Temos de ter isso em mente, mas claro que terá impacto falarmos mais alto. Deve haver cuidado de ambos os lados, mas creio que em vez de nos culparmos, e de pedirmos dinheiro ou devolução de receitas, temos de pensar em como nos ajudarmos mutuamente para melhorarmos os nossos produtos.
Acredita que estas plataformas estão interessadas em promover o bom jornalismo?
Não sei, mas não creio que alguém esteja interessado em promover o mau jornalismo, porque isso tem um reflexo negativo na sua reputação. Há muita informação a circular nestas plataformas. Não a controlar não é necessariamente uma desculpa válida, mas creio que todas as empresas de tecnologia estão a fazer um esforço para resolver o problema. Se o fizeram com a rapidez necessária, já é outra questão. Creio que as intenções maliciosas vêm de fora, de atores externos que põem em causa o sistema, tanto da indústria dos média como das plataformas tecnológicas. Também por isso é importante ambos dialogarem.
O bom jornalismo é impotente perante casos de manipulação da informação, como o escândalo da Cambridge Analytica? Se as pessoas se tornam alvo de notícias falsas feitas à sua medida, isso dificulta bastante o nosso trabalho…
Não devemos queixar-nos de o nosso trabalho se ter tornado mais difícil. Sim, o nosso trabalho é mais complicado. Sim, temos de alterar a maneira como trabalhamos. Desta vez foi a Cambridge Analytica, para a próxima serão outros, noutro país, noutras eleições, noutra plataforma… Temos de aprender a lição e, em vez de dizer que tornou o nosso trabalho mais difícil, aprender a lidar com esta realidade. Se os jornalistas criarem melhores relações com a sua audiência, mais facilmente saberão o que ela está a sentir.
Mas temos sido armadilhados…
Não creio que tenhamos sido particularmente armadilhados… Aqueles que querem dominar o sistema têm estado uns passos à frente dos jornalistas e isso magoou-nos muito. A verdade é que temos de ser melhores. As pessoas vão voltar a procurar-nos, mas isso requer inovação, trabalhar com a audiência e com as plataformas, e sermos mais abertos a colaborações. As pessoas não olham para os erros das organizações individualmente, falam de “os média”, e, enquanto assim for, precisamos de trabalhar em conjunto para encontrar soluções. Diria que fomos apanhados, mas não fomos armadilhados. Creio que a lição é não voltarmos a ser apanhados e, para isso, precisamos de ser melhores.
É inevitável tornarmo-nos todos mais cínicos?
É inevitável tornarmo-nos mais cínicos, mas creio que só chegámos a este ponto porque não éramos cínicos o suficiente ou porque nos esquecemos de como ser cínicos. O regresso do cinismo pode não ser uma coisa má