O que nos faz, afinal, felizes? Comprar mais um par de sapatos, o novo modelo de telemóvel, o carro ultima gama, a ‘penthouse’ de sonho? Ou estar com os amigos e família, viver sem stress, participar num grupo coral, ir aquela aula de dança, sentir que somos ouvidos pelo nosso chefe, que o nosso trabalho é reconhecido e que, finalmente, concretizamos aquele projeto que nos trouxe grande alegria e realização pessoal, porque pusemos nele muito de nós?
Uma coisa é certa: não é um qualquer livro de auto-ajuda que nos promete o equilíbrio interior e que nos garante que está nas nossas mãos aprendermos a ser felizes que nos vai pôr a viver no melhor dos mundos. A história do ‘vivemos felizes para sempre’ não existe, é “ingénua” e uma “falsa promessa”. Melhor será metermos definitivamente na cabeça que a nossa felicidade é “fugitiva, instável e frágil” porque dependerá sempre, não só de nós, mas sobretudo da nossa relação com os outros.
O filósofo francês Gilles Lipovetsky ajudou ontem a distinguir sentimentos quando discutimos o paradoxo da felicidade num tempo dominado pelo estimulo ao consumo. Foi mais uma sessão do Fórum do Futuro, que hoje termina, e que trouxe, nos últimos cinco dias, vários nomes de referência do pensamento contemporâneo ao Porto.
Qual o sentido da vida?
A pergunta é antiga e atravessa-se a cada momento. Mas ganha cada vez mais força numa sociedade hedonista e híper-individualista. Se o crescimento económico – dizem as estatísticas – não nos torna mais felizes, apenas menos infelizes, e se aderir ao consumo nos traz satisfação, mas logo a seguir a insatisfação de não poder ter mais, o que é que realmente importa, no fim de tudo? Encontrar o sentido da vida.
Para o autor de A Era do Vazio, o grande “desígnio do novo tempo” é “oferecer meios para mobilizar afetos e paixões noutro ambiente que não nos supermercados e na apologia das marcas”. O homem “não é apenas consumidor”. Também “pensa, aprende, procura ultrapassar-se, fazer melhor, ter em conta o ideal humano”. Por isso, é importante que a sociedade dê condições e meios para que cada um encontre o sentido da vida e ganhe alegria de viver.
A importância do trabalho
À cabeça desta equação surge a nossa relação com o trabalho. O desemprego pode ser um fator devastador na nossa vida e trazer “uma enorme culpabilidade interior”, aquela sensação de ter falhado na vida. Mas ter um emprego pode significar também estar debaixo de uma grande “pressão para atingir objetivos”, um stress que nos dá cabo da vida. Por vezes, leva-nos ao suicídio.
E isto é algo que não dominamos, sobre o qual não temos controle. Mas as organizações têm. Lipovetsky defende que “é necessário encontrar outras formas de organização da dinâmica do mercado global, novas formas de gestão e de organização do trabalho”. Concretiza: “Não se pode ir trabalhar com medo. Com medo de falar ou de se ser despedido. As pessoas querem ser ouvidas, participar.” É preciso que perguntem: “Estás feliz? Porque não estás?”.
Se é certo que “não temos uma via para dominar a felicidade”, teremos certamente “meios para fazer com que a vida tenha menos stress no mercado de trabalho” e de promover o reconhecimento profissional.
Arte e criatividade
Vivemos numa sociedade hiperindividualista, onde o homem tem um grande desejo de exposição de si próprio. Basta ver as redes sociais, a explosão da fotografia, por exemplo. Ou o crescente aparecimento de grupos corais de amadores. Para Lipovetsky, esta é a prova de que queremos ser amados, fazer coisas que nos dão prazer e alegria. E este ambiente tem de ter condições para ser transposto para o espaço público das cidades.
“É preciso desenvolver o gosto pela arte, favorecer intercâmbios com criativos de todo o tipo, estimular gosto por realizar coisas”, preconiza. Em suma, dar espaço à criatividade, “favorecer a capacidade de fazer coisas bonitas”, pois “quanto mais criatividade mais alegria” e “onde há alegria há criatividade.
Alegria é a palavra preferida deste filósofo, que há muito estuda a inquietude dos tempos modernos, para definir a felicidade. “Não podemos estar em alegria permanente”, diz, “mas podemos tê-la quando estamos orgulhosos de qualquer coisa”. Em suma: “Há meios que nos podem dar instrumentos globais para podermos viver momentos de felicidade.” Desde que se “revalorize a vida das pessoas”, através de uma nova organização do trabalho e de estímulos à criatividade. “Isto pode não trazer a felicidade, mas dá alegria à vida”, porque quando gostamos mesmo de uma coisa, voltamos sempre a ela com alegria.
“A felicidade é fugitiva e frágil”
No que Lipovetsky não acredita é na “literatura new age”, aquela que nos promete “a sabedoria e o auto-aperfeiçoamento espiritual”, que nos diz que “está nas nossas mãos aprendermos a ser felizes”. Na sua opinião, “são processos de beatitude que veiculam muita ingenuidade e falsas promessas”.
Depois de revisitar Decartes e Rousseau para nos mostar como “o homem é um ser insuficiente por ele mesmo”, é “incompleto” e “precisa dos outros para conhecer a plenitude”, Lipovetsky mostrou como dependemos sempre dos outros. Prova disso é o impacto que uma decepção amorosa tem nas nossas vidas, e que se tornam feridas profundas. “A felicidade é fugitiva, instável e frágil. É aquilo que não conseguimos controlar. Pode ser desfeita a qualquer momento. Escapa-nos. É algo de incontrolável. Vem quando quer e não quando quero. Encontra-se, não está ao nosso dispor. Não somos mestres da felicidade.”
Quanto mais temos, mais queremos
O dinheiro não traz felicidade? Pode não trazer, mas ajuda-nos a ser menos infelizes. E pode trazer, se nos fizer sair da miséria. Mas a partir de um determinado patamar, já não vem acrescentar muito mais à vida.
A verdade é que quanto mais temos, mais queremos. Há uma “dimensão trágica” na sociedade de consumo, porque a felicidade aparece como algo a que temos direito. Numa “ideologia que exalta a felicidade, não aceder a ela torna-se frustrante”, repara Lipovetsky. “Renunciar a bens materiais é doloroso para a maioria das pessoas. Ninguém se consegue habituar a uma redução acentuada do nível de vida”, diz. Nestes momentos, a curva da felicidade desce.
“Não é o consumo que temos de criticar, mas a sua excrescência”, defende o autor da Sociedade da Deceção, outro dos seus livros. Numa época em que vivemos cada
vez mais tempo, com mais saúde, com melhores condições, com mais liberdade sexual, de união e desunião, os europeus declaram-se felizes. Mas nunca sofremos tanto de ansiedade e depressão, nunca consumimos tantos comprimidos, nunca houve tantos suicídios. E este é o paradoxo da felicidade.