‘O ano é 2021. E nunca a rivalidade entre o Snapchat e o TikTok esteve tão ao rubro: cada rede social já tem mais de 1,5 mil milhões de utilizadores, números que outrora só pareciam ao alcance do todo-poderoso Facebook. O WhatsApp, talvez pelo rigor ético dos seus líderes, tem crescido, mas continua longe da principal liga das tecnológicas. O Instagram, o mais promissor de todos os serviços, não soube modernizar-se e o Facebook, pelo peso da idade e pela falta de inovação, transformou-se num paraíso de conteúdo sem relevância.’
Podia continuar a escrever uma narrativa fictícia que tem por base uma ideia simples: o que seria do Facebook – e por consequência, de muitas outras plataformas – se o mercado efetivamente protegesse a concorrência e não permitisse um cenário de vale tudo? É uma hipótese que parecendo remota à realidade de hoje, seria certamente diferente se as pessoas com responsabilidade não tivessem assobiado para o lado.
Em julho, foram revelados documentos que mostram de forma clara que no ‘longínquo’ ano de 2012, Mark Zuckerberg, líder do Facebook, a maior rede social alguma vez criada, estava preocupado com o crescimento do Instagram. “O Instagram pode prejudicar-nos de forma significativa”, escreveu Zuckerberg, num e-mail. Noutras mensagens trocadas semanas antes com o diretor financeiro do Facebook, o multimilionário lembrava que se algumas novas plataformas – entre elas o Instagram, Path e Foursquare – ganhassem escala, podiam ser “disruptivas” para a atividade do Facebook. E queria saber se devia ou não comprar o Instagram.
Na época, o Facebook acabou mesmo por avançar com o negócio, que ficou saldado por mil milhões de dólares – naquele que foi um movimento que, só agora, está a ser visto como anticoncorrencial pelas autoridades norte-americanas. Sim, o Facebook comprou a única rede social que na altura parecia capaz de quebrar o domínio que a plataforma já tinha, mas só em 2020 é que o mundo parece estar preocupado com isso. Ninguém, naquele ano, pensou na hipótese remota de que sim, o Facebook estava a comprar o seu concorrente mais direto para eliminá-lo, de forma indireta, em vez de travar essa batalha no mercado, sujeitando-se à preferência dos utilizadores? A investigação dos reguladores americanos que agora desenterrou estes e-mails não poderia ter acontecido logo naquela fase e, talvez, ter evitado um negócio que mudou para sempre o mercado das redes sociais – e o nosso mundo?
A partir daí, deu-se um chorrilho de acontecimentos que, na minha opinião, são claros exemplos de práticas anticoncorrenciais. Se com a compra do Instagram alguns não previam o que iria acontecer, já não aceito que me digam o mesmo quando, em 2014, o Facebook também comprou o WhatsApp (outra plataforma social que estava em posição de quebrar o domínio da gigante norte-americana). O negócio até podia ter acontecido, mas não sem remédios (o Facebook já tinha o Messenger, a maior plataforma de mensagens instantâneas à época), não sem compromissos inabaláveis de que determinadas linhas de agregação de informação não seriam ultrapassadas.
Para mim, o mais gritante exemplo de inação de proteção do mercado aconteceu quando, em 2016, o Instagram, já sob a batuta do Facebook, e já depois de o Facebook ter falhado a aquisição do Snapchat, decide ‘roubar’ aquele que viria a tornar-se num dos mais relevantes formatos de consumo de conteúdos da era moderna. As Stories estão em todo o lado! E onde está o Snapchat? Exato! Sempre considerei uma grande injustiça aquilo que aconteceu ao Snapchat – ficaram-lhe com o produto e nunca houve consequências sérias sobre esse ato. Porquê? Porque os consumidores estão contentes e para muitos isso chega. E porque na prática isto é uma luta entre ‘galos’ tecnológicos, portanto se um deles desaparecer, ninguém vai sentir assim tanto a sua falta. Vamos fazer agora um pequeno exercício: o que sentiria se inventasse um novo conceito e uma empresa muito maior do que a sua lhe ficasse com a inovação e daí nada resultasse, a não ser a sua perda de relevância? Não, caros leitores, não é só o Facebook que faz isto, ainda que claramente o Facebook seja dos que tem uma inclinação quase mordaz para esta técnica – basta pensar em todas as aplicações ‘clone’ e inspirações, como lhes chama Mark Zuckeberg, que a empresa já teve noutros serviços, com a mais recente vítima a serem os vídeos do Tiktok (ou devemos chamar-lhe Instagram Reels?).
Sabe o que significa ser sherlocado? É uma palavra criada em referência a um contra-ataque que a Apple protagonizou no início dos anos 2000: a empresa tinha uma ferramenta de pesquisa chamada Sherlock e surgiu, pouco depois, uma alternativa de nome Watson. Depois a Apple integrou as mesmas funcionalidades do Watson no Sherlock e o Watson desapareceu, foi sherlocado. Desde então o termo manteve-se, porque volta e meia a Apple ‘sherloca’ algumas empresas. No ano passado, ficou conhecido o relato das empresas Duet Display e Luna Display que desenvolveram, há já vários anos, um conceito que usava o iPad como segundo ecrã para computadores Mac. Segundo relatos dos programadores, até chegaram a receber apoio de desenvolvimento da Apple… que no ano passado anunciou um serviço próprio que faz exatamente o mesmo que estas empresas. A diferença? A Apple não é apenas mais um simples concorrente, é um gigante com um dos maiores ecossistemas de gadgets do mundo e uma conta bancária quase sem fim. E o que dizer daquele caso em que a Apple baniu aplicações que rastreavam o tempo de utilização do smartphone e pouco tempo depois lançou a sua própria ferramenta nesta área? Suspeito, no mínimo.
É por isso que pergunto: e ninguém mete mão nesta gente? Como é que se impede que mais episódios destes voltem a acontecer? Não tenho uma resposta para isso. Mas tenho uma resposta para aquele que é um dos grandes problemas associados a estas práticas concorrenciais agressivas de grandes empresas – a proteção de mercado tem de ser mais rápida a agir. Simplesmente não podemos ficar anos à espera para saber se a compra X ou a decisão Y vão ou não ter um impacto negativo no mercado. Vejamos o caso da Google, talvez a empresa com maior volume de multas de sempre por parte da Comissão Europeia. Pode pensar que por ter sido multado pelo regulador que está tudo bem, mas isso não é verdade – as decisões demoraram anos a chegar e as mudanças que aconteceram ao longo desses anos, por fruto de práticas concorrenciais desleais, entretanto comprovadas, essas já ninguém pode desfazer. E que compensação existe para os ‘feridos’ e ‘mortos’ que ficaram pelo caminho? Como é que se desfaz o mal que já está feito?
Não vou usar aquela típica conversa de que o poder está nas mãos dos consumidores – pois não está, sobretudo quando o combate é tão desequilibrado, gigante versus utilizadores. É preciso alguém com um peso semelhante – governos, reguladores, tribunais – para equilibrar o peso desta luta. E é preciso perceber de uma vez por todas que aquilo que acontece no mundo tecnológico tem capacidade para contaminar a sociedade e até as próprias democracias, como tem sido recorrentemente provado. Talvez um mundo com uma concorrência mais saudável entre redes sociais não tivesse resultado em plataformas carregadas de fake news, de opiniões polarizadas, de bullying, de assédio e de monopolização do poder. Talvez valesse a pena ter lutado por esse mundo.