‘Olá, o meu nome é Rui e sou um bom padeiro’. Este esteve para ser o título deste artigo, naquela que seria uma abordagem mais narcisista e até um pouco despropositada, mas em boa prática a mensagem está lá: será que o nosso potencial enquanto seres humanos está a ser explorado na totalidade na nossa profissão? Tendo em conta aquilo que tenho visto durante a pandemia da Covid-19, estou cada vez mais convencido que a resposta é não.
Estamos habituados a ouvir falar em Quociente de Inteligência (QI), um valor atribuído depois de realizados testes específicos e que classificam o nível de inteligência de uma pessoa. Também existe o chamado Quociente de Inteligência Emocional (QE), que classifica a capacidade das pessoas de avaliarem os próprios sentimentos e os dos outros. Depois há o Quociente de Inteligência Desperdiçada (QID), um conceito que inventei de propósito para este artigo, e que mede o desperdício de inteligência de uma pessoa numa tarefa principal, quando podia estar a contribuir para muitas outras de forma igualmente valiosa.
Veja-se os exemplos dos ventiladores open source criados em Portugal: tanto o Project Open Air como o Air4All conseguiram, em poucas semanas, passar da vontade de fazer algo para ajudar na crise de saúde que ainda atravessamos para protótipos funcionais que em última instância podem mesmo salvar vidas. Sabe o que têm em comum estes projetos? Ambas as pessoas que os criaram sabiam zero de ventiladores. Mas isso não os impediu de convencerem outras pessoas, que também nada sabiam de ventiladores, a juntarem-se ao projeto. O que um sabia de física, o que outro sabia de engenharia, o que outro sabia de medicina e o que outro sabia de Fórmula 1 permitiu que todos, no seu conjunto, tivessem a ‘inteligência’ suficiente para criar ventiladores funcionais, ainda que pouco sofisticados. A pergunta é: se não fosse esta situação pandémica, será que algum dia esta confluência de talento iria acontecer?
Voltando ao exemplo de eu ser um bom padeiro. O que é que me leva a dizer isto? Faço o meu próprio pão, há mais de um ano, e gosto, logo, para mim sou um bom padeiro. O exemplo do pão não é inocente, pois é algo que muitos consideram indispensável ao dia-a-dia e só agora se aperceberam, por força das circunstâncias, que fazer pão para consumo próprio é afinal uma tarefa simples e para a qual temos todas as ferramentas. De profissão, sou jornalista. Dedico muitas horas ao que faço e faço aquilo que mais gosto, mas… também faço bom pão. Em que outras tarefas é que eu até teria jeito para a coisa, mas não faço ideia porque simplesmente nunca experimentei? E o leitor, que mais sabe fazer para além daquilo que lhe pagam para fazer e que, quem sabe, até lhe poderia trazer mais dinheiro e, não menos importante, mais felicidade? Sente que o seu verdadeiro potencial está rentabilizado ao máximo na profissão que desempenha todos os dias? Pois, foi o que me quis parecer.
Por esta altura deve estar a perguntar ‘Mas o que é que isto tem a ver com tecnologia?’. Eu acho que tem, muito, sobretudo em dois aspetos: inteligência mal rentabilizada significa menos progresso em todos os aspetos da nossa vida; e o sector tecnológico é aquele que domina atualmente o circuito mundial do talento. Vivemos numa sociedade tecnologicamente avançada, mas que ainda prende muito a circulação e partilha de talento. E que tal formar-se numa nova área profissional? É possível, mas entre ir deixar os miúdos à escola de manhã, cumprir o trabalho para o qual lhe pagam, fazer as horas extras que provavelmente não lhe pagam, voltar para apanhar os miúdos, tratar da vida doméstica, divertir-se, pois faz bem à alma, preparar o dia seguinte para que a rotina não descarrile… é possível, mas para milhões de pessoas este ritmo quase inevitável da sociedade torna-o pouco convidativo.
Apesar de esta ideia do Quociente de Inteligência Desperdiçada estar agora mais ativa na minha cabeça, não é a primeira vez que penso nela. Sempre que penso no recrutamento agressivo das grandes tecnológicas, que lutam entre si pelos melhores cérebros mundiais, dou comigo a imaginar que algumas das mentes mais brilhantes do mundo estão focadas em criar os melhores smartphones, os melhores browsers, o melhor motor de busca, o melhor sistema operativo… o que podiam eles atingir noutras empresas, noutras áreas como a medicina, a alimentação, o meio ambiente, áreas estas que precisam tanto de respostas urgentes para resolver os grandes problemas que existem e que só tendem a piorar? A tecnologia criada por estas pessoas é importantíssima e permite-nos ter hoje uma qualidade de vida que há 30 anos parecia inimaginável, mas e se esses cérebros pudessem fazer… mais? Bill Gates é disso exemplo: mudou o mundo com software e agora está a mudar o mundo com filantropia. Ainda que em escala e áreas diferentes, acredito que todos temos um Bill Gates dentro de nós.
Não antevejo grandes mudanças, nos próximos anos, numa melhor rentabilização da inteligência de cada um, mas tenho cá para mim que o futuro do trabalho passa por uma maior consciencialização pessoal daquele que é o nosso verdadeiro potencial enquanto ser humano e no qual as empresas serão obrigadas a dar mais liberdade aos seus empregados, para fazerem mais, por outros. Das horas de trabalho semanal que estão estipuladas, 75% serão para a empresa com a qual temos um vínculo e os outros 25% serão para aquilo no qual podemos aplicar as nossas competências, mas que não precisa de estar relacionada com a nossa atividade profissional – seja a fazer voluntariado, a reinventar ventiladores ou mesmo a fazer pão para os nossos vizinhos.
A Google é talvez o melhor exemplo desta máxima, pois já percebeu que ao dar liberdade criativa aos seus melhores cérebros, tem mais a lucrar do que a perder – não é à toa que a empresa que inventou um motor de busca online atualmente tem centenas de serviços para diferentes áreas, muito graças à paixão pessoal dos seus trabalhadores por outros temas e outros projetos que a própria Google decidiu abraçar.
Na prática, aquilo que estou a dizer é que espero que aos poucos se comece a assistir a uma mudança de mentalidades que permita rentabilizar todo o potencial da inteligência humana e que não seja apenas quando uma pandemia ou uma guerra batem à porta. Enquanto isto não acontecer, o mundo perde, todos perdemos, pois podíamos evoluir, tecnológica e socialmente, muito mais rápido. Dito isto, vou fazer mais um pão. É servido?