O ano de 2020 até tinha começado bem – a empresa vinha de um reforço de capital de 60 milhões de dólares, que no final de 2019 era o maior de sempre da sua série (investimento Série C) alcançado por uma startup portuguesa – e em março tinha sido nomeada como uma das empresas mais inovadoras do mundo pela prestigiada publicação Fast Company. Menos de um mês depois, a Unbabel confirmava o despedimento de 35% da sua força de trabalho, cerca de 90 pessoas, notícia avançada pela publicação Eco. Por causa da pandemia e das restrições impostas um pouco por todo o mundo, alguns clientes da Unbabel pararam. Na altura, o semanário Expresso noticiou que a empresa também não tinha atingido as metas de vendas projetadas.
“A nossa primeira reação foi ‘isto não vai ser tão mau’”, recorda Vasco Pedro, CEO da Unbabel, em entrevista à Exame Informática. “Depois falámos com os clientes”. Foi aí que o executivo percebeu que se aproximava um terramoto para as empresas-cliente e, consequentemente, para o negócio que lidera.
A Unbabel é uma empresa especializada em software de tradução automática e que ainda conta com revisores humanos para afinar o produto final. Imagine o seguinte exemplo: um cliente chinês de uma empresa tem uma dúvida ou problema com um produto e submete um pedido de ajuda; a mensagem é escrita em mandarim, mas quando chega ao técnico de apoio ao cliente já está em inglês; pelo meio, o software da Unbabel fez uma primeira tradução automática e, depois, uma das 100 mil pessoas que fazem parte da rede de tradução da tecnológica ‘afinam’ a tradução feita pela máquina; o técnico da empresa responde em inglês e a resposta chega ao cliente já em mandarim, repetindo-se o processo de tradução pelo meio, mas no sentido inverso dos idiomas.
Uma das principais áreas de negócio da Unbabel era o vertical do turismo – como transportadoras aéreas, hotéis, plataformas de reserva, entre outros –, um segmento de mercado que ficou parado durante semanas como consequência da pandemia. Mas mudaram-se os tempos, mudou-se o peso dos clientes. “A Logitech cresceu 300%. Faz sentido porque está toda a gente a comprar câmaras e para eles foi um grande desafio. Eles precisam de contratar engenheiros para o que são questões mais complexas, têm engenheiros de apoio ao cliente. Contratar engenheiros era muito difícil, levam 12 a 13 semanas para contratar alguém novo. O que fizeram com a Unbabel, não precisaram de contratar engenheiros que falavam línguas diferentes, só inglês”, destaca Vasco Pedro. Neste caso em particular, o tempo médio de resposta da Logitech a pedidos de clientes caiu de 48 para 12 horas.
Houve mais segmentos que cresceram durante o período de pandemia, como empresas de videojogos e de plataformas de entrega de comida e compras em casa – este último, com a Unbabel a assegurar uma quota de mercado de 95%, de acordo com o CEO. Entre clientes que já tinham e cresceram, e outros novos que surgiram – como a Panasonic, a Abercombrie e um “nome grande da indústria desportiva” –, o desempenho da Unbabel voltou aos eixos.
“A realidade acabou por ser menos má [do que o previsto]. A Unbabel teve um crescimento muito positivo em 2020, comparado com o que antecipávamos foi um ano muito forte. [Agora] Estamos numa posição fortíssima. Como os indicadores acabaram por ser melhores do que pensávamos – em crescimento, gastos e cash flow – passámos o ano altamente focados na melhoria de produtos e de tecnologia. Estamos preparados para o que vem a seguir”, destacou o cofundador da Unbabel, empresa que conta ainda com João Graça, Sofia Pessanha, Bruno Silva e Hugo Silva na lista de fundadores.
À luz dos números e dos acontecimentos entretanto consumados, Vasco Pedro admite que teria gerido o despedimento de grande escala de outra forma. “Teria reagido mais cedo, teria dado mais tempo às pessoas. (…) Não teria feito um compromisso de ‘isto não vai correr bem, não vai funcionar’. Teria sido mais cauteloso nesse processo complicado”. Mas naquela fase, e à luz da informação que tinham e antecipavam, “as decisões que tomamos foram aquelas que tinham de ser feitas. Agora estamos a ver o benefício de tomar as decisões difíceis”.
O CEO admite que “foi um momento difícil, doloroso” e que a startup teve de passar por uma espécie de período de luto para recuperar, incluindo a confiança dos que não foram afetados pelos cortes.
A empresa invisível
Para o utilizador final, como o cliente no exemplo descrito acima, a Unbabel é uma empresa invisível. Trata da gestão de todo o processo de tradução, mas isso é algo com o qual o utilizador não tem que se preocupar, nem a empresa-cliente.
Segundo Vasco Pedro, o software da Unbabel tem, atualmente, uma eficácia média de 89% nas traduções automáticas. Com a ajuda humana, esses valores sobem até aos 95%, 96%, que é um nível semelhante ao de um tradutor nativo. Os números variam de cliente para cliente, mas a Unbabel revela ainda que o seu sistema de tradução, que suporta 29 idiomas, permite reduzir até cinco vezes o tempo de resposta, permite poupanças até 50% em serviços de tradução de apoio ao cliente e os resultados mostram um aumento até 25% da satisfação dos utilizadores com as respostas das empresas.
A eficácia do sistema de tradução foi uma das prioridades da tecnológica durante o ano de 2020. A tecnológica fez uma otimização dos seus modelos de Inteligência Artificial (IA), que ganharam muito com o aparecimento de clientes de novas áreas de negócio e com a cada vez maior rede de revisores humanos. Os curadores humanos, apelidados de ‘editores’, ganham entre 8 e 18 dólares por hora de trabalho, o equivalente a 6,8 e 15,3 euros por hora, ao câmbio atual. “A parte humana é uma geradora de dados enorme. Conseguimos passar os dados pela plataforma e treinar os motores [de tradução]. Isto permitiu-nos atacar novos mercados, a nível de áreas de negócio, com muita facilidade”.
A empresa atualizou todos os seus motores de tradução automática para usarem um modelo de aprendizagem aprofundada (deep learning) conhecido como Transformer. Na prática, este modelo consegue processar os dados relativos ao processamento da linguagem natural, mas sem a necessidade de seguir uma ordem específica (não precisa de processar o início da frase para processar o final da frase, p.ex.). A grande consequência desta tecnologia é a redução do tempo de treino necessário para melhorar a eficácia dos motores de tradução.
A empresa fez ainda dois lançamentos recentes: o COMET (acrónimo inglês para Métrica Otimizada para Avaliação de Tradução Multilíngue), uma ferramenta em código aberto que faz avaliações de ferramentas de tradução automática (machine translation); e o Unbabel Portal, uma plataforma que dá às empresas uma visão agregada de tudo o que são processos de tradução que existem dentro do negócio, do apoio ao cliente à criação de guias de perguntas e resposta (FAQ).
Este último é uma peça para um dos grandes objetivos da tecnológica: fazer com que quem trabalha em tradução e localização de conteúdos seja mais do que um tradutor e passe a ser um operador linguístico (lang ops). Não traduz apenas, faz a gestão das traduções de humanos e software. “É o trabalho que está a acontecer este ano, estamos a cimentar a nossa posição no serviço ao cliente e por outro lado estamos a lançar e a ser parte desta categoria de lang ops”, sublinha Vasco Pedro.
E ser unicórnio [designação de uma jovem empresa avaliada em mais de mil milhões de dólares], é um objetivo? “Não tenho dúvidas de que vamos chegar lá”, responde o CEO.
Outras ambições
Recentemente, a startup portuguesa Feedzai oficializou aquilo que há muito lhe vaticinavam: atingiu uma valorização superior a mil milhões de dólares, o que faz a tecnológica liderada por Nuno Sebastião entrar no restrito clube dos ‘unicórnios’. “Fomos juntos para os EUA, somos amigos há imenso tempo e estão a fazer um trabalho incrível. O Nuno Sebastião está a fazer um trabalho fantástico. Estou muito contente por todos os unicórnios portugueses”, adianta Vasco Pedro sobre a conquista da Feedzai. E não esconde que este é outro grande objetivo que tem traçado para a Unbabel.
“Não vejo isso como uma ambição, é um passo natural na nossa caminhada. A nossa ambição é ter impacto no mundo, o problema da barreira de linguagem é enorme e resolver este problema tem muito significado, é uma ambição. Chegar a unicórnio é uma delas e fazer uma IPO [Oferta Pública Inicial, marca a entrada da empresa em bolsa de valores] é outra”, revela ainda o executivo.
A pandemia e as consequências que daí resultaram, como os despedimentos, “atrasam ligeiramente” os timings que a empresa já tinha definido para estes objetivos: numa entrevista à publicação Observador, em 2019, Vasco Pedro falava na chegada a ‘unicórnio’ dentro de dois a três anos (ou seja, até 2021) e a entrada em bolsa entre 2021 e 2023.
“Mas não tenho dúvidas de que vamos lá chegar. Em 2017 sentia mais a ânsia, tinha que ser rápido – agora tenho mais a certeza. (…) Todos os indicadores estão lá. Não tenho dúvida de que vamos lá chegar”.