Os últimos dois anos da DNS.pt ficaram marcados por uma forte tendência de investimento: Além da aplicação de 302 mil euros em Obrigações do Tesouro de Rendimento Variável do Estado Português, a associação que explora, sem fins lucrativos, o domínio de topo de Portugal (.pt) aplicou dois milhões de euros na compra de uma nova sede, numa das zonas mais caras de Lisboa, com mais de 800 m2 para albergar 16 funcionários. A Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), que representa o Estado dentro da Associação, votou a favor, mas, mesmo que estivesse contra, apenas poderia travar os investimentos, caso garantisse a maioria absoluta com os votos da associação de consumidores DECO, da Associação do Comércio Eletrónico e da Publicidade Interativa (ACEPI), ou de um representante «designado» pela entidade que gere os domínios a nível internacional que há quem garanta não existir, mas que consta nos estatutos a fechar o lote de associados que formaram a DNS.pt. A associação foi criada em 2013 com o propósito de gerir e explorar os endereços terminados em .pt, sem concurso público e beneficiando de um investimento de mais de 1,4 milhões de euros provenientes do erário público.
O investimento na nova sede desencadeou algumas vozes críticas no meio tecnológico pelo facto de a esmagadora maioria dos serviços da DNS.pt ser prestada remotamente pela Internet, e alegadamente não se justificar a compra de um espaço situado em zona nobre com uma média superior a 50 m2 por pessoa (a título ilustrativo: a Exame Informática, a Exame, o Jornal de Letras e a Visão têm cerca de 70 pessoas em cerca de 500 m2). Apesar destes argumentos, a FCT considera que a decisão de compra é acertada: «Relativamente à localização, a operação justifica-se na perspetiva de ser um investimento com grande potencial de valorização, garantindo assim uma reserva patrimonial para a associação e permitindo ao mesmo tempo a redução dos custos operacionais do atual aluguer».
A direção da DNS.pt, atualmente liderada por Luísa Gueifão, reitera que o investimento está dentro da legalidade: «A aquisição cumpriu integralmente os estatutos, tendo obtido parecer favorável do Conselho Fiscal e sido deliberada de forma unânime pela Assembleia Geral. A escolha da localização teve como critério óbvio a valorização do imóvel».
Em contrapartida, o Capítulo Português da Internet Society (ISOC Portugal) apresenta uma versão completamente dissonante de FCT e DNS.pt num relatório que foi enviado em jeito de denúncia para o Governo, grupos parlamentares e FCT. «O Estado Português não tem acesso às contas da DNS.pt, mas os representantes dos registrars, que revendem endereços, têm acesso às contas e podem discutir os preços praticados pela DNS.pt, porque fazem parte da associação», denuncia José Legatheaux Martins, um dos pioneiros da Internet em Portugal e presidente da ISOC Portugal, num comentário que pretende resumir várias das críticas lançadas contra a atual direção da Associação.
Nos relatórios e contas da DNS.pt há também um número que confirma que a Associação trata os respetivos funcionários com algumas regalias que nem sempre abundam no mercado laboral português: entre 2014 e 2016, a associação investiu mais de 246 mil euros num fundo de pensões para os funcionários (o relatório e contas de 2017 não é conhecido ainda). Sem indicar os valores totais despendidos, a DNS.pt limita-se a referir que, «no quadro da gestão rigorosa e sustentável da Associação, inclui-se naturalmente a valorização dos recursos humanos, que a DNS.PT considera um capital essencial».
A FCT não se pronuncia sobre a razoabilidade ou a legitimidade dos fundos de pensões, eventualmente, aplicados junto de um banco para funcionarem como um complemento de reforma – mas também só poderia travar este investimento, se conseguisse garantir a maioria absoluta dos votos dos associados.
Contactado pela Exame Informática, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES) remeteu as respostas a este assunto para a FCT.
Atualmente, a DNS.pt gere o domínio de topo de Portugal, determinando os preços que servem de referência para as empresas especializadas na revenda de endereços da Internet terminados em .pt. Em 2017, a DNS.pt anunciou haver mais de 976 mil endereços registados em .pt – e enalteceu o ano passado «como um dos melhores de sempre», com mais de 100 mil endereços registados e a ascensão aos primeiros lugares dos países que mais cresceram no registo de endereços na Europa. Em 2016, a Associação faturou mais de 2,5 milhões de euros. Nesse mesmo ano, as remunerações ilíquidas (antes da contribuição para a segurança social e impostos) dos três membros executivos do Conselho Diretivo ascenderam a 151.738 euros. No total, remunerações, prémios e compensações com pessoal superaram os 720 mil euros em 2016.
Quando a FCT perdeu o veto
Foi em janeiro de 2014 que a FCT perdeu o poder de vetar a aplicação de receitas ou a dissolução da DNS.pt, devido a uma retificação de estatutos ordenada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) que, segundo a Exame Informática apurou, terá decorrido do facto de a DNS.pt ser uma entidade de direito privado – e por isso não poder ter associados com um direito de voto que suplante as decisões de outros associados. E nem o facto de gerir um bem que pertence ao Estado Português (o .pt) terá sido suficiente para evitar a perda do direito de veto da FCT pela via legal.
O .pt nem sempre foi explorado por uma entidade privada: entre a década de 1990 e 2013, o domínio de topo de Portugal foi gerido pela Fundação para a Computação Científica Nacional (FCCN). A mudança ocorreu quando o governo liderado por Passos Coelho decidiu integrar na FCT todas as competências da FCCN – com exceção da gestão do domínio de topo de Portugal, que foi entregue a uma associação de direito privado, dando sequência a uma estratégia de emagrecimento da administração pública.
Aquando da constituição da DNS.pt, a FCT, que aplicou na associação 1,4 milhões de euros para suprir «todas as responsabilidades contratuais existentes, que implicavam despesas da mesma ordem de grandeza», detinha o poder de veto sobre a dissolução da associação, a aplicação de resultados ou sobre o orçamento e o plano de atividades. Os restantes associados não tinham poder de veto, mas também não lhes terá sido solicitada qualquer verba para participar na associação. Com a alteração de estatutos ordenada pela PGR, a intervenção do Estado passou a estar limitada ao número de votos do representante da FCT.
Rita Trabulo, advogada que coordena o Departamento de Corporate da CCA Ontier, admite que a designação «sem fins lucrativos» poderá induzir em erro os leigos ao dar a entender que uma associação não pode ter lucros – mas logo explica que essa classificação apenas significa que o «lucro não é distribuído aos seus associados». Rita Trabulo recorda ainda que nas sociedades sem fins lucrativos «o lucro anual deve ser aplicado para a prossecução dos fins definidos nos estatutos», mas também chama a atenção para o 11º artigo desses mesmos estatutos da DNS.pt, que dá à associação a possibilidade de gerar receitas com «os rendimentos dos bens próprios, incluindo depósitos e aplicações financeiras e fundos de reserva». É devido à presença deste artigo nos estatutos que a advogada admite como potencialmente legal o investimento em mais de 300 mil euros nas obrigações emitidas pelo Estado Português.
Sobre o fundo de pensões, a advogada da CCA Ontier considera: «É igualmente lícito que uma associação sem fins lucrativos subscreva fundos de pensões para os respetivos funcionários».
Apesar da possível legalidade dos investimentos, Rita Trabulo recorda que é necessário não perder de vista o acordo entre FCT/Estado Português e a DNS.pt. «O facto de a associação ter como objeto a exploração (gestão, operação e manutenção) de um bem do Estado, poderá ter implicações na aplicação desses lucros, caso tal esteja definido no acordo que titula essa exploração, que poderá implicar determinadas obrigações para a associação. Não tendo sido definidos limites ou obrigações, a associação reger-se-á pelas regras gerais quanto à aplicação do resultado positivo do exercício», acrescenta a advogada.
Ainda que permitida pelos estatutos, a rentabilidade alcançada através de investimentos em produtos financeiros não figura como objetivo a alcançar pela associação. E essa é uma das provas que levam a ISOC Portugal a concluir que o Governo Português fracassou ao não definir uma estratégia nem objetivos financeiros para a DNS.pt. José Legatheaux Martins dá como exemplos da falta de limites estratégicos o alegado patrocínio aos congressos da ACEPI, associado que representa os revendedores de endereços da Internet dentro da DNS.pt, e também aponta o dedo à participação no selo de garantia Confio.pt, que se destina a sites de comércio eletrónico e que não lhe merece grande confiança do ponto de vista técnico ou de segurança.
«Sim, o Estado Português pode retirar o domínio .pt da DNS.pt , mas não retira o dinheiro que lá colocou (aquando da criação da associação, em 2013)», refere o presidente da ISOC Portugal.
No relatório que publicou no final de Dezembro, a ISOC Portugal denuncia ainda o potencial conflito de interesses causado pela admissão da ACEPI como associada da DNS.pt. Em causa está a possibilidade de os registrars debaterem e votarem o processo de formulação de preços dos endereços de Internet terminados em .pt. «Haveria que definir qual a política de preços dos endereços (terminados em .pt) praticados pela DNS.pt, tendo em conta a concorrência. Só com uma estratégia definida e uma análise de custos, a Associação deveria ter o poder de determinar os preços», refere Legatheaux Martins.
Sobre o potencial conflito de interesses, a direção da FCT limita-se a recordar que o modelo de gestão em vigor foi definido durante a legislatura do anterior governo (de Passos Coelho).
A direção da DNS.pt desvaloriza o potencial conflito de interesses e lembra que, desde 2013, nunca houve qualquer alteração de preços, «o que significa que o preço e a estrutura de preçário atualmente praticada foi definida pelo registry anterior (a FCCN), pelo que a questão não se coloca».
Apesar de nunca o ter feito, a DNS.pt não enjeita alterar os preços dos domínios – e dá como prova de «independência e autonomia» face à ACEPI e às empresas de revenda de endereços de maior envergadura o lançamento de «um processo de alteração do modelo de preços praticados, de forma a acabar com um sistema de descontos que tem por base o número de registos realizados».
A ISOC Portugal questiona ainda o facto de a DNS.pt ter como únicos associados a FCT, a ACEPI e a DECO, recomenda a integração de mais associados, e dá como exemplo a seguir o Comitê de Gestão de Internet, do Brasil. A direção da DNS.pt opta por não responder sobre a disponibilidade para aceitar a entrada de novos sócios, que atualmente está limitada à propostas dos atuais associados: «Os órgãos sociais da DNS.pt defendem um modelo de multistakeholders, estando nos seus estatutos previstos todos os mecanismos que definem a eventual entrada de novos associados», refere a Associação.
A IANA não está em Portugal
A alegada falta de representatividade dos atuais associados da DNS.pt ganha contornos de controvérsia quando a análise incide sobre os artigos dos estatutos da Associação que elencam como um dos associados «o representante designado pela IANA – Internet Assigned Numbers Authority como responsável pela delegação do ccTLD.pt».
A IANA é uma unidade recentemente integrada na ICANN, entidade sedeada em Los Angeles, EUA, que supervisiona a Internet no mundo. A delegação do ccTLD.pt é uma denominação usada na gíria quando alguém do meio tecnológico se refere ao representante do Estado Português na IANA e na ICANN.
A ISOC Portugal não hesita pôr em causa a lisura dos estatutos da DNS.pt, recordando que a IANA e a ICANN não têm qualquer representante em Portugal. «Quanto muito é o governo português que tem um representante na ICANN ou na IANA», esclarece Legatheaux Martins.
Contactado pela Exame Informática, Andrea Becalli, responsável da ICANN para o Sul da Europa, confirma que não há um representante da IANA em Portugal, até porque «esse cargo não existe».
Atualmente, o alegado representante «designado pela IANA» é assegurado pela FCT. Ana Neves, profissional da FCT com currículo na promoção da sociedade da informação em Portugal, é a pessoa que detém essa função de representar o governo português na IANA e na ICANN e que, à luz dos estatutos da DNS.pt, assume a cadeira de associado com poder de voto DNS.pt.
As explicações FCT também não permitem tirar todas as dúvidas. Por e-mail, a Fundação responsável pela atribuição de bolsas e apoios a projetos científicos limita-se a negar que os estatutos refiram que a IANA designou um representante para Portugal e reitera: «quem é associado fundador é o “representante designado pela IANA – Internet Assigned Numbers Authority” como responsável pela delegação do ccTLD.pt”, e não a IANA», garante a FCT.
A DNS.pt não dá explicações quanto ao facto de os estatutos referirem um suposto representante designado pela IANA» quando a IANA não designa ninguém como representante para Portugal, e apenas afirma que é «incorreto referir que a IANA é associada da DNS.pt».
Que a IANA não tem um representante em Portugal não existem sequer dúvidas – mas isso não impediu Luísa Gueifão, jurista que hoje lidera a DNS.pt e que, durante vários anos, assumiu a pasta da gestão do domínio .pt dentro da extinta FCCN, de se apresentar, em maio de 2013, num cartório notarial de Lisboa como «designada pela IANA – Internet Assigned Number Authority», a fim de assinar a constituição da DNS.pt. O que confirma que, antes de ser eleita como diretora da DNS.pt, a jurista assumiu funções como associada.
No documento de constituição da associação constam ainda as assinaturas de Alexandre Nilo da Fonseca como presidente da ACEPI, e Vasco Colaço e Alberto Regueira na qualidade de presidente e vice-presidente da Deco, respetivamente. Nessa altura, o Estado Português ainda tinha a pretensão de poder exercer a supervisão sobre a DNS.pt. E é por isso que o documento da constituição da DNS.pt conta igualmente com a assinatura de Miguel Seabra, que à data era presidente da FCT.
NOTA da REDAÇÃO: O valor recebido pela DNS.pt foi atualizado com informação referida pela associação. Na versão anterior deste texto é referido apenas o montante máximo (1,9 milhões de euros) que a DNS.pt podia receber do erário público, ao abrigo de um decreto-lei publicado para o efeito. Por seu turno, a FCT esclareceu ainda que o investimento de 1,4 milhões de euros que foi efetuado aquando da constituição da DNS.pt tinha como objetivo cobrir todas as responsabilidades da associação.