Será uma espécie de ‘ombro amigo’, diz Tamara Milagre sobre a plataforma que a Evita – Associação de Apoio a Portadores dos Genes Relacionados com Cancro Hereditário – está a projetar. Neste registo online, todos aqueles que se preocupam com o seu risco de cancro hereditário poderão aceder a uma avaliação sobre o risco individual, terão acesso a informação personalizada, esclarecimento de dúvidas de saúde, indicação sobre ensaios clínicos, teleconsultas e aconselhamento genético. Um projeto ambicioso, sobretudo porque todos os serviços serão prestados de forma inteiramente gratuita. “A ideia é que a pessoa tenha acesso a toda esta informação através de uma app, para que possa andar com este ‘ombro amigo’ no bolso”, descreve a fundadora da Evita. “Será como uma assistente pessoal, que nunca nos deixa sozinhos.”
Há um número repetido vezes sem conta, sempre que se fala em cancro hereditário – que este representa dez por cento de todos os cancros. No entanto, esta é uma estimativa que pode pecar por defeito. “Suspeitamos que só vinte a trinta por cento dos casos estejam identificados”, nota Tamara Milagre, enfermeira de formação e ela própria uma sobrevivente de uma história familiar pesadíssima – com casos de mutação causadora do cancro da mama quer no lado paterno, quer no materno, e muitas mortes prematuras na família – Tamara tornou-se numa ativista, alertando para a necessidade de se avaliar precocemente o risco genético de vir a desenvolver uma neoplasia.
Os médicos de família ainda sabem pouco sobre cancro hereditário
Tamara milagre
Este desconhecimento acerca da prevalência real das mutações herdadas e que predispõem para o cancro não acontece só em Portugal e não se traduz apenas num número errado. “Os médicos de família ainda sabem pouco sobre cancro hereditário”, sublinha Tamara Milagre. E sem dados reais é difícil criar políticas e despertar sensibilidades para um problema que afeta sobretudo pessoas jovens e até crianças.
Em bom rigor, o cancro é sempre genético, no sentido em que resulta de uma alteração nos genes expressos pelas células, sendo que por causa disso estas passam a funcionar de uma maneira totalmente errada: tornam-se imortais e passam a multiplicar-se descontroladamente. Nos casos de cancro hereditário, a pessoa já nasce com uma alteração, herdada, que aumenta o seu risco de vir a desenvolver cancro. Duas das mutações mais conhecidas são as que predispõem para o cancro da mama, a BRCA1 e a BRCA2. Mulheres portadoras desta mutação podem ser aconselhadas a fazer uma mastectomia preventiva – antes mesmo de virem a desenvolver o cancro – uma vez que o seu risco de vir a desenvolver a doença é muito elevado, por vezes da ordem dos 80 por cento. É o caso da atriz Angelina Jolie e de Tamara Milagre. Em Portugal, e em muitos outros países, não se presta a devida atenção a este tipo de cancros, que normalmente aparecem em idades precoces, com desfechos dramáticos.

Foto: Luis Barra
O grande objetivo da plataforma Evita será precisamente ‘pescar’ os portadores das mutações hereditárias – que podem estar presentes em todos os tipos de cancro, não só no da mama – e impedir mortes que poderiam ser evitadas. A ocorrência de muitos casos na família, sobretudo em idades jovens, é o principal sinal de alarme. Mas a estimativa do risco resulta de vários fatores que só um especialista poderá avaliar. E este será um dos principais objetivos da mesma: fornecer um questionário que depois de preenchido pelo próprio, em estrito cumprimento da privacidade, dará uma pista sobre o risco individual de cancro hereditário. “Será um registo de cidadãos para cidadãos, para qualquer pessoa preocupada com o seu risco de cancro”, sublinha Tamara Milagre. A partir daí, pode vir uma recomendação de efetuar um teste genético, aconselhamento e também acompanhamento especializado para quem já tenham passado pela doença ou para os seus familiares. “Há muitas pessoas que vivem angustiadas com a possibilidade de terem passado a mutação aos filhos”, conta.
Os profissionais de saúde, independentemente do hospital ou clínica em que trabalham, poderão também ter acesso aos dados, facilitando o acompanhamento do doente, em qualquer parte do país. “A pessoa passará a andar com todos os seus dados clínicos relevantes no telemóvel”, sublinha a ativista. Porque informação é poder.