O conceito de cidadania encerra um conjunto de direitos e deveres que todo o cidadão deve observar na vida em sociedade. Num grande número de comunidades humanas, este conceito de sociedade implicou a criação de mecanismos para assegurar o cumprimento das leis, da manutenção da paz social e da segurança, e da promoção do progresso, só para nomear alguns. Embora existam estes mecanismos, cada cidadão é chamado a contribuir para o seu funcionamento. É por isso que, embora existam serviços de emergência e socorro, todo o cidadão é obrigado a prestar auxílio em caso de acidente (podendo ser punido com pena de prisão caso não o faça); é também por isso que é da responsabilidade de cada cidadão zelar pelo meio ambiente e pela limpeza dos espaços públicos, embora existam agências ambientais e cantoneiros.
Se extrapolarmos o conceito de cidadania para o mundo empresarial, constatamos que os cidadãos das empresas – os colaboradores – têm também um conjunto de direitos e deveres na “sociedade” que é a organização a que pertencem. Cumprir e fazer cumprir as políticas internas, observar as regras de comunicação externa e interna, da segurança de dados, de ciber higiene, são exemplos de alguns deveres que o “cidadão corporativo” deve observar.
A digitalização progressiva dos negócios nos últimos anos tem possibilitado melhorar a eficiência e a produtividade das empresas, mas tem também vindo a causar maior pressão sobre as equipas de IT: sistemas, aplicações, utilizadores, credenciais, acessos, segurança de informação, entre tantas outras peças fundamentais para as operações das empresas, multiplicadas pelo número de colaboradores, clientes, fornecedores e parceiros. E num domínio em que todos os meses existem novos desenvolvimentos nesta área, não há recursos suficientes para fazer face às necessidades do mercado: segundo um estudo de 2020 da Comissão Europeia, entre 2018 e 2030 os trabalhos relacionados com tecnologias de informação e comunicação irão crescer 11%, sendo que será necessário preencher 1.6 milhões de vagas neste setor só na União Europeia.
O momento é crítico: a falta de recursos técnicos pode constituir uma obstrução ao movimento da transformação digital, que por sua vez irá impactar a competitividade das empresas. Se é verdade que as empresas terão que continuar a investir em talento especializado, há um outro tipo de recursos de que podem desde já dispor: os cidadãos desenvolvedores (do inglês citizen developers).
Estes citizen developers são todos os outros colaboradores que não têm responsabilidades específicas nos mecanismos de gestão e manutenção dos sistemas de informação da sua organização. São pessoas do negócio, nos seus mais variados departamentos. São aqueles que, segundo a Gartner (que cunhou o termo), desenvolvem aplicações para consumo próprio ou de outros, utilizando ferramentas tecnológicas com a autorização das suas unidades de negócio e do IT. No próximo dia 23 de Fevereiro, o Nova SBE Digital Experience Lab irá promover uma talk para discutir as implicações e oportunidades deste tema.
Estes colaboradores podem ser a chave para desbloquear a falta de recursos técnicos e a grande pressão que as equipas de IT sentem atualmente. Mas afinal como pode um analista, um gestor de operações ou um contabilista ser um cidadão desenvolvedor?
Nos últimos anos têm-se multiplicado novas ferramentas digitais para as mais variadas tarefas que apresentam um alto nível de abstração em relação ao código de programação. Falamos das ferramentas low-code / no-code, que permitem a qualquer pessoa desenvolver aplicações e websites com um nível muito rudimentar de conhecimentos de programação. Nestas ferramentas, a linguagem de programação é convertida em elementos gráficos, que podem ser combinados através de drag & drop. Esta é uma tendência que tem vindo a aumentar: num inquérito de 2022 que contemplou cerca de 500 executivos de empresas nos EUA e na Europa, 69% afirmaram que as tecnologias low-code nas suas organizações evoluíram de soluções de crise para tecnologias core e que planeiam investir em ferramentas desta natureza nos próximos anos. Um outro estudo indica que este é um tipo de tecnologia utilizado tanto por grandes empresas como pequenas empresas.
O colaborador não técnico, se devidamente treinado para a utilização deste tipo de ferramentas, pode atuar como developer de soluções tecnológicas para melhorar o que ele próprio e a sua equipa fazem no dia a dia.
Mas não irá isso trazer problemas ao IT, que poderá assim perder o controlo sobre a tecnologia da organização? Se este processo for bem feito, é na realidade de mútuo benefício, sendo para isso necessária a supervisão da equipa de IT: as plataformas disponibilizadas aos colaboradores, o apoio ao cumprimento dos requisitos de segurança e até o alargamento das soluções desenvolvidas a outras áreas da organização, caso se justifique, partem duma adequada articulação entre os citizen developers das unidades de negócio e o IT.
Este é um movimento de democratização da transformação digital, que beneficia a empresa e o citizen developer: a capacitação dos colaboradores para trabalhar com este tipo de aplicações é, em si mesmo, um processo de desenvolvimento de talento, com o potencial de aumentar os seus níveis de satisfação e compromisso com a empresa.
É claro que a formação de recursos técnicos das áreas de IT é imprescindível, sendo até um dos objetivos para 2030 da Década Digital da Comissão Europeia. Para isso será necessária uma articulação entre Estados, Instituições de Ensino e outros parceiros, de maneira a criar os programas e incentivos para atingir esses objetivos.
Às empresas, cabe-lhes desde já promover este tipo participação entre os seus colaboradores, dando-lhe as ferramentas e as competências que precisam para exercerem a sua cidadania desenvolvedora.