Artigo publicado originalmente na edição 461, de setembro de 2022, da revista Exame
A 22 de dezembro de 2011, o Estado português assinava uma das vendas mais simbólicas do exigente plano de privatizações imposto pela Troika: acordou vender 21,35% da EDP à China Three Gorges, empresa controlada pelo regime de Pequim, por €2,69 mil milhões. Mas, cerca de uma década depois, como compara o encaixe do Estado com o que deixou de ganhar via dividendos da EDP e de outras empresas privatizadas? O que significou perder influência pública em empresas estratégicas? E o peso do investimento chinês – que representou mais de 40% do bolo total das alienações feitas pelo Estado entre 2011 e 2014 – pode ser uma fragilidade numa fase de maior tensão geopolítica entre a China e o Ocidente?
No deve-haver, há alguns números a ter em conta. O Tesouro encaixou €7,15 mil milhões com as vendas das posições na EDP, ANA, REN, CTT e Empresa Geral de Fomento (EGF), feitas ao abrigo do programa de assistência financeira (valor que não inclui montantes pagos para assegurar dívida dessas empresas). Na última década, alguns desses investimentos deram cheques avultados aos acionistas. As participações que foram vendidas na EDP, REN e CTT renderam €2,67 mil milhões em dividendos, ou seja, cerca de 57% dos €4,7 mil milhões que o Estado encaixou com essas alienações. No caso da ANA, o grupo francês Vinci beneficiou de lucros que equivalem a 37% do investimento inicial feito na gestora aeroportuária.
Contudo, os números não contam toda a história. Para se analisar os prós e os contras do plano de privatizações acordado com a Troika, tem de se começar por uma viagem ao passado, mais precisamente a maio de 2011. Sem acesso aos mercados, Portugal teve de ir bater à porta da Comissão Europeia e do Fundo Monetário Internacional para assegurar um pacote de auxílio financeiro de €78 mil milhões. Entre as várias contrapartidas com que se comprometeu estava a execução de um ambicioso plano de privatizações. A meta era encaixar cinco mil milhões de euros, que serviriam depois para reduzir a gigante dívida pública. Como noutros indicadores, Portugal foi além da Troika, e o plano de privatizações ficou acima da meta.
As participações vendidas pelo Estado desde 2011 na EDP, REN e CTT deram direito a €2,67 mil milhões em dividendos
Apesar do encaixe mais alto do que o previsto, o valor arrecadado foi uma gota no oceano de endividamento do País. As receitas com privatizações equivaleram apenas a 3,3% do valor da dívida pública portuguesa no final de 2012. Ainda assim, numa das avaliações feitas após o fim do programa de assistência financeira, a Comissão Europeia defendia que essas vendas “removeram passivos contingentes do Estado e podem resultar em melhorias na gestão destas empresas”. Bruxelas destacava também o contexto de difícil financiamento que o Estado e as próprias empresas atravessavam: “O processo de privatização atraiu investimento direto estrangeiro de um conjunto alargado de investidores, numa variedade de setores, como o de empresas de utilidade pública, aeroportos, serviços postais e segurador, numa fase em que as empresas se deparavam com dificuldades no financiamento dos seus investimentos.” Além do cheque para comprar partes significativas do capital das entidades na lista de privatizações, alguns compradores acenaram também com linhas de crédito para ajudar as empresas a financiar a sua atividade e alguns planos para novos investimentos.
O reverso da medalha do plano de privatizações, e que também foi reconhecido pela Comissão Europeia, foi que o Estado abdicou dos dividendos futuros dessas empresas. Sem grande surpresa, as participações públicas que mais atraíram investidores eram as de negócios lucrativos. Numa auditoria à venda das participações no setor elétrico, realizada em 2015, o Tribunal de Contas alertava que, “numa perspetiva de racionalidade financeira, o timing imposto para a concretização destas operações representou para o Estado português um custo de oportunidade ou alternativo, que correspondeu à concretização da operação num enquadramento económico muito negativo e à perda de dividendos futuros, anualmente distribuídos por estas empresas”. Apesar desse custo, a instituição destacava que a “concretização destas operações teve repercussões positivas ao nível das avaliações regulares, na medida em que contribuíram para vencer etapas do ajustamento imposto e da libertação das várias tranches de financiamento associadas a esses compromissos”. Por outras palavras, e numa interpretação livre, foi como se, num incêndio, se aceitasse sacrificar algumas peças de mobiliário valiosas para salvaguardar as paredes e a estrutura da casa.
Outro fator negativo, destacado pela própria Comissão Europeia, foi que a saída do Estado de determinados setores não foi acompanhada de um reforço da regulação que protegesse os consumidores e tornasse os mercados mais eficientes. “As privatizações reduziram o perímetro do Estado, mas podiam ter sido acompanhadas por reformas mais fortes nesses setores”, referiram os técnicos de Bruxelas, num relatório de monitorização, já depois de o programa de assistência ter sido concluído.
A questão do preço e o investimento chinês
Bruxelas até pode ter apontado a diversidade de investidores que acorreram às privatizações em Portugal como um aspeto positivo. Mas, desde então, o discurso dos líderes europeus mudou em relação ao investimento feito por empresas estatais chinesas em setores estratégicos. Num relatório de 2019, por exemplo, a Comissão Europeia alertava para a rapidez com que entidades dominadas pelo regime de Pequim estavam a comprar empresas no Velho Continente e pedia aos Estados-membros para salvaguardarem os interesses europeus. Ainda antes disso, em 2017, já líderes como Emmanuel Macron tinham avisado que não se devia ser “ingénuo” em relação aos investimentos de empresas estatais chinesas.
Após uma fase de possível maior “ingenuidade”, em que a própria UE forçou privatizações ganhas por empresas chinesas, tanto em Portugal como na Grécia, por exemplo, Bruxelas começou a apertar mais o crivo. A oferta pública de aquisição lançada pela China Three Gorges em 2018, para ficar com a totalidade do grupo EDP, não foi bem-vista pela Comissão Europeia e levou mesmo Washington a lançar alertas sobre as consequências que isso teria para o negócio da elétrica nos EUA. A operação acabaria por cair por terra, chumbada pelos acionistas, mas Pequim continua a ter uma posição relevante tanto na gestão da rede elétrica como na produção e comercialização de eletricidade em Portugal.
A decisão de alienar participações relevantes de empresas estratégicas a Estados de outros blocos geopolíticos foi polémica. E, com o passar do tempo, foram surgindo mais críticas sobre essas operações. O Tribunal de Contas, por exemplo, assinalou, em 2015, que as transações foram feitas sem se ter estabelecido atempadamente um regime extraordinário para a salvaguarda de ativos estratégicos, que só veria a luz do dia em 2014. Assim, “não foi prevista qualquer cláusula de penalização para o seu incumprimento, pelo que, nestes dois processos [EDP e REN], não foram tomadas medidas legislativas que acautelassem os interesses estratégicos do Estado Português após a conclusão do processo de privatização”.
José Pedro Teixeira Fernandes, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, não tem dúvidas: “O critério de vender a empresas chinesas (ainda por cima estatais) apenas porque a oferta era melhor (ou parecia ser, na altura) foi inadequado.” O especialista diz à EXAME que “a ortodoxia de mercado que prevalecia, na altura, nos burocratas de Bruxelas, associada ao facto de Portugal ser um pequeno Estado pouco influente na UE, mostrou falta de visão estratégica”. E acrescenta que “faltou ao Estado português — em particular ao governo da época — uma visão clara sobre o que são setores estratégicos fundamentais da economia e infraestruturas críticas”.
As movimentações mais agressivas feitas, nos últimos meses, no tabuleiro geopolítico são um indício de que as preocupações geradas pelas vendas feitas ao Estado chinês durante o plano de privatizações não eram infundadas. O adensar das tensões entre a China e o Ocidente, devido à “parceria sem limites” firmada com a Rússia e à retórica mais forte de Pequim sobre Taiwan, reaviva esses receios. “Há sempre o risco de Portugal ficar sob situações em que as tensões geopolíticas com a China originam problemas sérios a algumas empresas e a certos setores da economia”, considera José Pedro Teixeira Fernandes, realçando que, “como se vê no caso da Ucrânia face à Rússia, podem surgir situações internacionais que impliquem uma atuação coordenada europeia ou com os EUA muito delicadas de gerir”. No entanto, ressalva que o facto de Portugal ter pouca visibilidade internacional poderá, neste caso, funcionar como atenuante desse risco.
A China é o quarto maior investidor estrangeiro no País, sendo responsável por €10,7 mil milhões no final de junho deste ano
Do lado do Governo, a mensagem nos últimos anos é que a experiência com o investimento chinês tem sido positiva. A China é o quarto maior investidor estrangeiro no País, sendo responsável por €10,7 mil milhões no final de junho deste ano, segundo dados do Banco de Portugal. Já após a invasão russa da Ucrânia, o primeiro-ministro, António Costa, defendeu um reforço da cooperação com a China, sublinhando que Portugal representava uma porta de entrada para a União Europeia e para outros mercados, como América Latina e África.
Além da nacionalidade e das características dos investidores, também o tipo de empresas que entraram no plano de privatizações não é consensual. No caso da ANA e dos CTT, o ministro responsável pelos setores em que estas empresas operam, Pedro Nuno Santos, defendeu várias vezes, nos últimos anos, que foram negativas para o interesse público.