Já aqui escrevi – mais do que uma vez – que gostava de ver mais castas autóctones a serem trabalhadas em Portugal, ao invés de cedermos ao apelo do uso de castas internacionais. Entendo que sejam mais apelativas para a conquista de mercados, que não conhecem o quão maravilhosas são as nossas uvas, mas em algum momento o Cabernet Sauvignon saiu de portas e encantou outros consumidores, além dos franceses, certo? As produções nacionais estão, cada vez mais, à mesa de outros países: em 2022, dados da ViniPortugal mostravam que as exportações de vinho tinham atingido um recorde de €941 milhões, com França, EUA e Reino Unido a liderarem o pódio dos destinos.
Os consumidores atuais, mais viajados e mais atentos a referências, regiões e produtores, contribuem para que estes números continuem a crescer, ao mesmo tempo que o turismo tem tido um papel fundamental na divulgação dos vinhos nacionais: não é por acaso que as exportações evoluíram positivamente nos últimos anos, em que o número de visitantes estrangeiros também cresceu em Portugal.
Críticos internacionais respeitados, como Jancis Robinson e Robert Parker, têm dedicado vários textos – e elevadas avaliações – a vinhos portugueses, o que também teve um forte impacto na imagem e popularidade das produções em solo lusitano. Então, será chegada a hora de apostar com mais confiança naquilo que são as nossas raízes?
Portugal tem cerca de 300 castas nativas – crê-se que somente Itália tenha mais –, o que significa que há uma infinidade de combinações que, além dos monocasta, pode surpreender os apreciadores de um bom vinho. Por outro lado, é também aqui que está, segundo o registo mundial lançado por Jancis Robinson, no final do ano passado (The Old Vine Registry), o maior número de vinhas velhas: 836, sem contar com as que ainda podem estar escondidas ou desaproveitadas. É dessas mesmas uvas e dessas mesmas vinhas que têm vindo algumas das mais interessantes e diferenciadas referências do nosso país – neste mês, trago-lhe uma que é um ótimo exemplo de como é possível marcar presença além-fronteiras, e com muito sucesso, sem precisarmos de castas estrangeiras.
Mas porque estou eu a falar, mais uma vez, de castas autóctones? Porque 2024 já começou com uma série de episódios climáticos extremos em vários pontos do mundo. Das colheitas de cacau às de café, passando pelas de trigo e de arroz, as dificuldades deverão ser sentidas um pouco por todo o globo: secas, chuvas, cheias, muito calor ou muito frio… A Organização das Nações Unidas (ONU) estima um contínuo aumento de preços em África, no Sudeste Asiático e na América Central. Sem surpresas, as vinhas e as uvas também serão afetadas, não só pelas imprevisibilidades de fenómenos como o El Niño mas também pelas alterações climáticas que se fazem sentir – não é por acaso que alguns produtores de Champanhe têm estado a investir em terrenos no Reino Unido. Os verões têm sido tão quentes em França que algumas casas estão a estudar opções para continuarem a conseguir produzir vinhos espumantes de qualidade…
Por outro lado, tem-se tornado bem evidente, em várias regiões e países, que são precisamente as castas nativas de cada território aquelas que melhor se têm adaptado às mudanças, possivelmente porque são elas as que acumularam o conhecimento e a memória que lhes permitem adaptar-se e sobreviver – e são, também, as que tornam cada região tão única. Afinal, se podemos destacar-nos com a Touriga-Nacional, Sousão ou Padeiro, porque insistimos em fazer o melhor Merlot, Syrah ou Pinot Noir? Sabendo que à partida não os vamos fazer, porque também há uma razão para essas castas serem nativas dos seus lugares.
É muito interessante, por exemplo, ver o que Augusto Freitas de Sousa tem estado a fazer com a casta Azal (Número Um e Cem Anos de Silêncio), que ele recuperou nas vinhas velhas da família, ou o que Antonina Barbosa fez recentemente com um espumante 100% Padeiro (Barão do Hospital – Padeiro). Vinhos absolutamente diferenciadores, que gritam as especificidades de cada terroir e que não poderiam ser de outro lugar – e também não será por acaso que os vinhos que geralmente mais nos “cheiram a Portugal” (permitam-me a linguagem simples) sejam aqueles que têm Touriga-Nacional na sua composição.
É claro que é divertido – e, não raras vezes, muito bom! – experimentar o comportamento de cada casta em diferentes regiões. Mas não seria útil, de quando em vez, apreciar aquilo que o nosso país tem de melhor e usar a sua autenticidade para nos diferenciarmos?
Pintas 2021
>Região
Douro
>Onde encontrar?
Em garrafeiras nacionais, como a Wine & Stuff (www://winestuff.pt/), por cerca de €116 a garrafa
>O vinho
Feito pela dupla de enólogos Jorge Serôdio e Sandra Tavares da Silva, a partir de vinhas velhas, é um vinho perfeitamente equilibrado, elegante e com taninos ainda presentes, embora com significativa delicadeza. Boa companhia para bifes, pratos de forno ou de caça. Final longo e cheio de especiarias, com uma complexidade que o enche de riqueza e que deixa o Douro a passear na nossa boca.
>Notação
A+
Gamekeepers 2017
>Região
Barossa Valley, Austrália
>Onde encontrar?
Em algumas garrafeiras internacionais, por cerca de €20 a garrafa
>O vinho
Decidi trazer aqui este vinho australiano porque descobri que usava Touriga-Nacional no seu blend, em conjunto com Syrah e Grenache. É uma referência simples, sem grande complexidade nem estrutura e à qual falta alguma acidez, e facilmente apreciado por quem quer um vinho fácil à refeição. No entanto, a junção de três castas tão diferentes num terroir tão distante da sua origem transforma-o numa experiência muito curiosa. Continua encantadoramente jovem, apesar dos seis anos de garrafa.
>Notação
BBB