“Welcome to the future of education.” A mensagem de boas-vindas, inscrita logo à entrada do 3º piso do antigo Palácio dos Correios, no Porto, indica a chegada à 42, a escola de programação que ousou romper com os modelos tradicionais de ensino. Esqueçam-se as salas de aulas com alunos sentados no seu lugar, a ouvir um professor a debitar matéria. Aqui, há uma única sala em open space (a exceção é um pequeno gabinete onde está a direção) e tudo é rebuliço e entusiasmo. Há, aqui e ali, entre secretárias e computadores, pequenos grupos que discutem linguagens aparentemente indecifráveis, numa também aparente anarquia divertida. “Don’t panic” é o lema recorrente. Há quem faça uma pausa e se sente no chão, a montar um puzzle, no canto onde se espalham caixas de jogos à moda antiga, enquanto espera pela chegada de um piano de cauda. Há quem vá fazer um café e comer uma bucha no espaço lateral que constitui uma kitchenette.
Onde estão os professores? Não existem. Que matéria aprendem os alunos? Cada um está no seu ritmo, a descobrir, a desafiar-se e a desafiar o outro. Quem tira as dúvidas e ajuda a ultrapassar obstáculos? O colega do lado ou outro, mais além, que já tenha resolvido o enigma. Bem-vindos, portanto, ao futuro da educação, em que se usa a tecnologia para melhorar a experiência pedagógica, numa escola aberta 24 horas por dia, 365 dias por ano. E, não menos importante, totalmente gratuita para os alunos.
“A plataforma digital gere o processo de aprendizagem, comum a todas as escolas 42 espalhadas pelo mundo. Todos os alunos têm de passar pelos mesmos desafios, pelos mesmos projetos, quer estejam em Paris, no Porto, no Quebeque, em Adelaide ou em Hong Kong”, indica à EXAME Pedro Santa Clara, que trouxe esta marca de ensino para Portugal (ver entrevista) e é o seu diretor não executivo. Há dois anos, a 42 instalou-se em Lisboa e, em julho do ano passado, no Porto.
Na 42, há nerds, mas também músicos, economistas, advogados, engenheiros, arquitetos, médicos, pilotos de aviação, oficiais do exército, personal trainers, bartenders ou mestres pasteleiros. “Temos esta variedade de pessoas, vindas de muitos sítios de Portugal e mesmo do mundo, a trabalhar em conjunto e a colaborar umas com as outras, o que é muito engraçado”, diz Pedro Santa Clara. Uns desistiram do ensino tradicional, outros querem mudar de profissão, para melhorar o salário. E outros acabam por descobrir aqui o seu talento e a sua vocação.
A média etária dos alunos anda nos 26 anos, mas tanto podemos encontrar um de 18 como outro acima de 60. No Porto, cruzamo-nos com o Marco, na kitchenette, o mais novo que por ali anda. Tem 18 anos e vem de Fornelo, uma pequena freguesia de Vila do Conde. Terminou o secundário e andava a fazer um ano sabático. “Não sabia bem o que queria. Não queria a universidade, mas algo mais parecido com um curso profissional, mais prático. Cruzei-me com isto”, conta. No part-time numa empresa de eventos, já tinha experimentado um curso de informática com vídeos da internet, mas nunca conseguia passar à prática. E na 42, consegue. “Aqui, vamos atrás do conhecimento; não apanhamos com ele logo de frente. E estamos a praticar para o futuro. No futuro, não vou ter um professor a ensinar-me, vou eu procurar o conhecimento. Esta é uma área em que não podemos acabar de procurar, porque está sempre a evoluir. E o nosso certificado são os projetos que fazemos”, observa, satisfeito com a opção tomada. No futuro, Marco quer trabalhar numa empresa a fazer back-end, no interface gráfico.
Mas, lá ao fundo, sozinho, está uma cabeça grisalha, com o olhar concentrado no computador. É Miguel Monteiro, 61 anos, engenheiro civil. Saído da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto no século passado, já tinha feito alguns programas básicos, incluindo um em spectrum (alguém se lembra?) para o Eng. Edgar Cardoso, com quem trabalhou na construção da Ponte de São João, sobre o Douro. Ainda se dedica ao setor de obras, mas veio para a 42 “num impulso”, quando soube da sua existência. “Achei que era uma oportunidade de contextualizar alguns conhecimentos que já tinha e outros que queria aprender. Passei nos primeiros testes, depois nos segundos e estou aqui. Dei-me lindamente.” Assim, quando efetivamente se reformar, pode ter outro trabalho, mais tranquilo e de que gosta.
“Hoje, apanhei um raspanete, porque tenho de cá vir 15 horas por semana. Estou atrasado nas fases. Mas não há stresse”, adianta, convicto de que vai entregar os projetos nos prazos estabelecidos. “Giríssimo” é o adjetivo que usa para qualificar tudo o que vive por ali. Está “impressionado” com o modelo, que faz com que todos falem uns com os outros, num espírito de entreajuda. “Para os miúdos que passam aqui, é uma oportunidade espetacular. Dentro de pouco tempo, ficam com uma visão giríssima disto tudo. Isto não tem um fim. Vamos aprendendo e fazendo, encontrando caminhos. Vão acontecendo coisas.”
A experiência submersiva das piscines
Esclareça-se que há um processo de seleção para entrar no curso. As candidaturas são permanentes: desde julho de 2020 até dezembro do ano passado, candidataram-se 30 mil, em Lisboa; no Porto, que abriu no verão do ano passado, houve sete mil em meio ano. Mas estes passam, depois, por um “filtro apertado” de seleção. O processo começa com dois jogos online: um de quatro minutos e outro de duas horas. “Dos que se candidatam, só cerca de metade faz os jogos. E, destes, só um terço é que passa. Quem passa inscreve-se na piscine”, explica Mafalda Sousa Guedes, 33 anos, diretora executiva da 42, responsável pela estratégia e uma das sócias da Shaken not Stirred, a empresa que instalou a escola em Portugal. “Temos quatro piscines por ano, em Lisboa e Porto; duas no inverno e duas no verão. É um boot camp de 26 dias extremamente intenso, em que, mais do que tudo, a ideia é haver uma autosseleção dos alunos, eles próprios perceberem se a 42 é ou não para eles. Como a experiência é tão intensa, e chegam a passar dez a 14 horas por dia aqui, só ficam os que efetivamente gostam e conseguem progredir. Se não conseguem progredir, é porque ainda não estão preparados para fazer o programa. Há uma seleção natural.”
Rita conseguiu, apesar de ter caído “literalmente de paraquedas” na área. É natural de Braga, tem 25 anos e mestrado em Música, pela Universidade de Aveiro. Garante que só tinha pegado num computador para escrever a tese, embora tenha dois irmãos a trabalhar num banco de criptomoedas. Viu, no Instagram, o anúncio de uma escola de programação no Porto, ainda por cima gratuita, fator importante para quem já gastou tanto dinheiro na universidade. Pensou na “vida de cão” que levava, a tocar em bandas, em orquestras, a receber em recibos verdes e, muitas vezes, por baixo da mesa. Comparou com a vida dos irmãos. Atreveu-se.
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“Convenceram-me no check-in de que podia vir sem saber nada. Vim, na confiança. O primeiro dia foi muito confuso. Chegamos cá e ninguém nos diz como entrar no computador, como descobrir o que realmente temos de fazer. Ficamos todos a olhar uns para os outros. Pensei: ‘Recebi um email com o login; portanto, devo ter de fazer o login na página.’ E, entretanto, tinha quatro ou cinco cabeças a olhar para mim e a perguntar: ‘Como chegaste aí?’”, conta, entre risadas de satisfação. “Depois, a informação vai-se espalhando, é assim que funciona. A seguir, descobrimos os vídeos e percebemos o que temos realmente de começar a fazer. Há muita comunicação entre todos, para conseguirmos chegar a algum lado.”
Rita mostra o holograph no seu ecrã de computador, uma imagem de círculos sucessivos, em que cada um é uma etapa e indica todos os projetos que têm de fazer ao longo do curso. “Começamos aqui no centro, pelo libft, que é criar a nossa própria biblioteca, as funções básicas de que vamos precisar. Temos de as criar do zero, para, depois, perceber melhor como funciona.” A seguir, Rita já discorre sobre o Get Next Line e o Born 2 be Root, os projetos que já ultrapassou, estando agora no terceiro, a criar uma virtual machine. “Comecei agora e ainda não sei muito bem o que preciso de fazer…”
Beatriz Fernandes, 26 anos, formada em Gestão e diretora da 42 no Porto, explica o processo. “Há uma data-limite para submeterem os projetos. Se não a cumprirem, acaba a experiência na 42. Mas a data é, normalmente, duas vezes mais do que o tempo de que efetivamente precisam para terminar o projeto: 77 dias. E, cada vez que entregam o projeto, recebem mais dias. Por cada dia que passa em que não entregam, é retirado um dia. Se estes dias terminarem e não houver projeto, são excluídos do curso. A pedagogia da 42 tenta recriar o mercado de trabalho: trabalhar em equipas, justificar porque funciona ou não. Vão, assim, desenvolvendo não só competências técnicas mas também competências essenciais, como a análise crítica e o trabalho entre pares. O deadline ajuda-os a ter um ritmo de trabalho.”
No outro lado da sala, Pedro está com um problema: criou um código que tem um bug e não consegue perceber qual é o erro. Primeiro, chamou o Michel; depois, juntou-se a Diana. Os três tentam descobrir a solução, e quem ajuda não sente que é uma perda de tempo. “Ela está a reviver o que já fez e refresca a memória. O Michel, ao ajudar-me, prepara-se para a avaliação que vai ter, daqui a pouco, com os colegas. Então, todos estamos a aprender”, diz Pedro. Diana acrescenta: “Nós questionamos o processo dele, e ele fica a conhecer a nossa perspetiva.”
Pedro era gerente de secretaria de saúde, no Brasil. Imigrou para Portugal, vive em Ovar e procura fazer uma transição de carreira. Michel, também brasileiro, está a terminar o mestrado em Gestão, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, ficou “com um tempo ocioso” e, como tem “a pulguinha da informática”, vem quase todos os dias de Vila Real ao Porto aprender, pois quer ser “gestor de tecnologia”. Diana, de Santa Maria da Feira, fazia investigação em Química na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, com uma bolsa de investigação para mestrado, mas, atendendo “às más condições da Ciência em Portugal e às ofertas reduzidas”, decidiu experimentar a 42, porque, “na vida, há portas que têm de se fechar e outras que têm de se abrir”.
Vamos, agora, saber o que tanto entusiasma a amena discussão entre Diogo e Tiago, ambos de 25 anos. Diogo apresenta a Tiago a virtual machine que criou. Discutem procedimentos. “Tenho de saber explicar, e o outro, ao ouvir, aprende.” Diogo vem do curso de Eletrónica e Telecomunicações da Universidade de Aveiro. Tiago tirou Gestão na Universidade do Minho. “Detestava estar nas aulas. Aqui, o tempo passa rápido e tenho vontade de vir. Dizem: ‘Faz isto.’ Como? ‘Desenrasca-te.’ Em quatro semanas, aprendi o que se dá num semestre, na faculdade”, diz Diogo. “Aqui, pomos a mão na massa desde o primeiro dia. E, por isso, o que aprendemos não vamos esquecer”, alinha Tiago, que pretende criar, no futuro, a sua empresa de cibersegurança.
Quando está o curso terminado? O programa divide-se em duas partes. O core leva, em média, dois anos a fazer, dependendo do tempo que se dedica à escola, do ritmo e das capacidades pessoais de cada aluno. No core – a base que, em França, corresponde a uma licenciatura –, aprendem um pouco de tudo: algoritmos, redes, segurança, dados, jogos, gráficos. Terminado isto, há um estágio de quatro a seis meses numa empresa, e os que queiram voltam, para fazer a especialização, que demora cerca de ano e meio. Pode ser em sistemas operativos, Inteligência Artificial, robótica, desenvolvimento de jogos, mobilidade… “Há uma série de áreas possíveis sempre a desenvolver-se, até pela proximidade da indústria, que nos desafia sempre a chegar mais longe. Só um terço dos alunos vem fazer a especialização. Os outros dois terços encontram um bom emprego e farão a sua carreira profissional”, alerta Pedro Santa Clara.
E, porque cada vez mais uma parte do nosso mundo é digital e a procura de especialistas é “gigantesca” em todos os setores, só resta dizer: “Don´t panic, welcome to the future.”