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À hora em que entrávamos na suite do Martinhal Chiado, o novo Governo de António Costa estava a tomar posse. Os desafios do Executivo são significativamente diferentes daqueles que se esperavam quando, no final do ano passado, o chumbo do Orçamento do Estado para 2022 atirou Portugal para eleições antecipadas: a inflação disparou e a guerra na Ucrânia, que rebentou a 24 de fevereiro, parecia ainda mais longe de terminar.
Cátia Batista, economista, professora da Nova SBE e diretora científica da Novafrica, e Isabel Capeloa Gil, reitora da Universidade Católica Portuguesa, olham para o futuro com otimismo, apesar da incerteza, e refletem sobre alguns caminhos e aprendizagens que a História já devia ter solidificado.
Inevitavelmente, a conversa arrancou com as profundas alterações sociais e económicas que a guerra nos trará, numa altura em que apenas a paz era dada por garantida.
“Acho que temos consciência de que vivemos um momento absolutamente excecional”, começa por dizer Isabel Capeloa Gil. “E isto desde 2015. A começar com a migração em massa para a Europa vinda da guerra da Síria, e depois, a pandemia, passados quatro anos. Quando se acreditava que o sistema económico e social iria conseguir acomodar aquilo que foi o fluxo de migrantes, vem um novo evento cisne-negro e, no momento em que achamos que estamos a combater a pandemia, vem a guerra”, resume a professora catedrática.
“Sem esquecer que, precisamente em 2015, estávamos a sair da crise económica. Temos, portanto, tido uma série de eventos que estão fora dos ciclos, que não são antecipados. Alguns diriam que é uma tempestade perfeita. Num continente que estava a habituar-se a uma certa estabilidade social, política – relativamente, porque começámos também a assistir a alguma polarização política e com dificuldade de os partidos do centro conseguirem maiorias estáveis para governar…”, enumera.
“Tudo isto vem contra aquilo que a Europa tinha como objetivo ser. O objetivo da construção europeia era ser um espaço económico que fosse um grande potentado, com estabilidade social, com os valores europeus de inclusão, solidariedade, e a conseguir integrar as pessoas vindas de todos os sítios. Com dificuldades, é certo. Temos bolsas de exclusão, mas, na generalidade, [temos uma Europa] com uma prática de inclusão que não criava cisões”, continua a especialista em Estudos da Cultura. “Uma integração cultural, reconhecimento e respeito pela diversidade e uma certeza de que tínhamos conquistado a guerra, de que estávamos no bom caminho para conquistar a Ciência e dominar os quadros mais problemáticos – como o cancro. Ninguém imaginava que um vírus que toda a gente conhecia viesse criar esta enorme disrupção…”
Integrar para crescer
Disrupção que se sentiu também na Ciência Económica, que muitos têm sinalizado poder não estar a acompanhar a velocidade dos tempos. Cátia Batista rejeita essa ideia e garante que ela tem mudado bastante, e que cada vez mais estão a ser feitos estudos que “talvez sejam úteis para usar nesta ocasião”. A economista volta a recordar o ano de 2015 para salientar que, então, “chegaram à Europa 500 mil refugiados da guerra da Síria, e parecia que tinha sido uma grande revolução. Agora, tivemos um milhão de pessoas a chegar numa semana, quatro milhões em cinco semanas – por isso é que os eventos extremos são relativos”, atira, com um sorriso. “No entanto, tudo parece ser diferente, e ainda bem. Em 2015, na Europa, assistimos ao crescimento de partidos populistas com este pretexto – e era mesmo só um pretexto, porque não era um número tão grande de refugiados, em relação à população europeia. Mas houve um sem-número de tensões e movimentos populistas que se aproveitaram deste influxo de pessoas para ir nesta má direção”, acusa. “Agora, temos muito mais pessoas a chegar da Ucrânia, mas felizmente temos tido uma reação muito mais positiva. Em Portugal, já acolhemos quase tantas pessoas como em França. Portugal é tradicionalmente um país que acolhe bem migrantes, e essa é a razão por que os ucranianos vêm de tão longe para ficar” cá, agregado ao facto de haver uma comunidade ucraniana muito bem integrada no País desde a primeira vaga de imigração, na década de 1990. “Tudo coisas boas!”, salienta.
“Agora, há desafios. Quais as políticas públicas, económicas e sociais que nos podem ajudar a manter este acolhimento, a assegurar esta integração e a maximizar os benefícios que trazem estas pessoas para o nosso país? É sabido que, neste momento, estão a chegar mulheres e crianças. Mulheres com níveis superiores de qualificações aos da média portuguesa e até da média ucraniana”, sublinha. “É um grupo de pessoas provavelmente com qualidades excecionais que podem integrar-se no nosso país e ajudar-nos a crescer e a melhorar.”
A economista lembra que um dos graves problemas na integração de refugiados sírios em alguns países europeus foi o facto de lhes ter sido dificultado o acesso ao mercado de trabalho, o que terá causado perdas económicas na ordem dos €40 mil milhões, segundo vários estudos.
Isabel Capeloa Gil aproveita a oportunidade para salientar as dicotomias que, por vezes, as políticas migratórias despertam nas sociedades, numa altura em que, acredita, esta chegada de migrantes altamente qualificados pode ser uma oportunidade para o País crescer, se as políticas públicas derem lastro para que a sociedade civil os acolha, as empresas derem as possibilidades, “os vencimentos e a capacidade de atração de pessoas que vão criar valor para o País”, de modo a “poder atrair talento internacional, que não tem mal nenhum”.
“Cria-se, às vezes, uma certa demonização de os estudantes portugueses irem para fora. Como se fosse terrível. É uma visão anacrónica e arcaica, de antes do Estado Novo. Como se fosse uma traição ao País. Não! Temos é de ter um equilíbrio de saídas e entradas, que permita que o País cresça. Nós não somos os gauleses da aldeia do Asterix. Não queremos ser!”, defende. “Essa é uma ideia inadequada, antiquada e que serve propósitos populistas!”
Aliás, nota a reitora da UCP, uma das maiores dificuldades da reconstrução da Ucrânia, após a guerra, poderá mesmo ter mais a ver com este “brain drain” que está a acontecer – e tomando, por exemplo, a guerra da Jugoslávia como medida, é possível que cerca de 10% da população nunca volte ao país – do que com falta de meios financeiros, considera. “As pessoas saem, são integradas num novo país, vêm de uma situação absolutamente traumática, têm o país destruído, arrasado… Se calhar, não querem voltar imediatamente.” Ainda, assim, há um reverso da medalha que deverá ser tido em conta, lembra Cátia. São evidentes os “benefícios das migrações, tanto para os países de origem como para os de destino. Como é que os países de origem beneficiam com este “brain drain”? Porque as pessoas que saem e que constroem as suas carreiras noutros países servem de modelo, de alguma forma, para investir em Educação, para que se continue a criar aspirações. E aspirações são extraordinariamente importantes para levar as pessoas a dar o seu melhor, e para haver investimento em Educação, em Saúde…”
Olá, nova ordem!
Os novos desafios obrigaram inevitavelmente a mudanças no bloco europeu – à semelhança do que aconteceu com a NATO. Se Putin queria fazer cair as estruturas europeias, que tantas vezes considerámos periclitantes, nos últimos anos, parece ter conseguido precisamente o oposto. Por um lado, há países tradicionalmente neutros, como a Finlândia, a querer aderir rapidamente à Organização do Tratado do Atlântico Norte, e, por outro, temos a Europa a falar a uma só voz, algo que não acontecia há demasiado tempo. “Na Europa, já tudo mudou, nomeadamente o investimento em Defesa”, sublinha Isabel. Para uma aliança que nasce como um bloco de paz, que sai da II Guerra Mundial a rejeitar o belicismo, que quer afirmar-se através de trocas comerciais e industriais, ancorando-se no comércio livre, este é mais um momento fundamental da História, nota.
“Todos sabemos quão importante é o entendimento dos quadros culturais numa negociação […]. Jean Monet dizia que, se tivesse de começar a pensar o projeto europeu de novo, o faria a partir da Cultura. Mas não há um sem o outro. Quando tentamos fazer essa separação, é danoso”, aproveita para realçar a reitora da UCP. “Sentia-se, até agora, que a NATO era o pilar europeu da Defesa. Mas não chega. Para garantirmos os nossos valores de liberdade, democracia, direitos fundamentais, e podermos continuar a ser uma sociedade afluente, com respeito pelo indivíduo, precisamos de nos poder defender. Portanto, tudo aquilo que muitas vezes era entendido como sendo um investimento” sem sentido “era quase tabu”, como acontecia com a Alemanha. Durante anos, o país agora liderado por Olaf Scholz praticamente não falava de Defesa. ”De repente, até em Portugal sabemos quem é a ministra da Defesa”, diz, com uma gargalhada, Cátia Batista. “Não sei se chegaremos a ser o bloco mais poderoso do mundo, mas talvez nos consigamos aproximar mais”, considera ainda a economista. “Bruxelas tem a fama de ser muito burocrática e tecnocrática. Finalmente, vimos a União Europeia unida – e até a Hungria e a Polónia, que se estavam a afastar destes pilares fundamentais, estão mais perto. Tenho alguma esperança nesta coesão. Estamos mais coesos e próximos dos valores fundamentais, ao contrário do que estamos a ver na Rússia, que está cada vez mais perto de um sistema autocrático. E Putin estava, há várias décadas, a preparar tudo isto…” Um movimento que “escolhemos não ver”, defendem ambas, porque se investiu numa “aposta otimista, a da integração económica”, seguida por Merkel, que durante anos tentou apaziguar os ímpetos imperialistas de Putin com uma tentativa de ocidentalização russa, que só resultava nas metrópoles, ainda assim.
E, hoje, avisam ambas as professoras universitárias, é preciso ter cuidado para não ostracizar os russos que não se identificam com esta agressão e que têm visto a sua vida dificultada, mesmo em países acolhedores como Portugal. Muitos dos “nossos estudantes estão em dificuldades, porque não têm estatuto formal de refugiados, mas estão com uma situação muito complicada em termos económicos, devido às sanções”. Estudantes que são “o melhor do talento russo e que rejeitam o que estão a ver”. Aliás, adiantam, “o cancelamento da cultura russa é outra questão altamente problemática. Acabar com um programa de Tchaikovsky? É ridículo, idiota, perigoso e contraproducente!”, defende Isabel. “Outra coisa é termos pessoas como o maestro da Sinfónica de Munique ou cantores, artistas, que, estando no Ocidente, não condenam a agressão.” Mas “cancelar a cultura russa é uma coisa absolutamente peregrina! É inaceitável. Armar a Cultura ao serviço dos interesses políticos e belicistas é tremendo”.
Entre o dia em que esta conversa aconteceu e aquele em que o texto foi escrito, passaram 19 dias. A guerra na Ucrânia não abrandou, a Europa não cedeu e Portugal reforçou a task force na fronteira da Polónia – de que a ministra Ana Mendes Godinho falou na edição passada –, para acolher quem escolhe o nosso país como refúgio. Nem tudo são más notícias, enquanto não chega a notícia mais ansiada: a de que há finalmente paz na Ucrânia.