Esta entrevista foi originalmente publicada na edição de agosto de 2020 da revista EXAME.
A história desta entrevista cruza-se profundamente com a história das nossas vidas em tempos de Covid-19. Houve falhas de comunicação, perdas de mensagens, trocas de horários, ausências de respostas e apenas uma certeza: a de que ela não poderia ser presencial. James Heckman esteve virtualmente em Lisboa para participar no debate internacional organizado pela AESE Business School, subordinado ao tema O Novo Humanismo, e em 90 slides falou das teorias que desenvolveu ao longo da sua carreira e da importância de uma economia para servir o Homem. Partilhou a sala de videoconferência com José Manuel Durão Barroso e o cardeal Peter K.A. Turkson, com quem debateu o impacto de um trabalho com propósito e do desenvolvimento humano, na era da tecnologia e do desenraizamento social.
Duas semanas e um desencontro virtual depois, falou à EXAME, a partir da sua casa, em Chicago, num tom descontraído e otimista sobre economia, política e sociedade em tempos de pandemia.
O professor tem provado que há uma relação entre o lugar onde nascemos e as oportunidades que temos na vida adulta…
Não tenho tanta a certeza de que seja o lugar onde nascemos. Creio que é mais o ambiente familiar onde nascemos. O ambiente geral que nos rodeia. Podemos, no limite, admitir que a família ajuda a escolher o lugar onde nascemos e, de facto, a família tem um papel muito importante – aliás, estamos atualmente a levar a cabo um estudo, na Dinamarca, onde estamos a ver que as escolhas que os indivíduos fazem, num mercado livre, tem um impacto significativo no acesso a serviços e oportunidades que as crianças têm. E isto num país como a Dinamarca, onde a educação e a saúde são gratuitas e onde o sistema de apoio social é muito bom. E então estamos a isolar esse tópico, que é a escolha. Mas não estávamos a falar sobre isso! [Risos.]
Toda a educação tem muita importância na ética, na forma como as pessoas tratam as outras
Ia perguntar-lhe por que razão, havendo evidências de que o contexto condiciona o sucesso, os governos parecem tão lentos a atuar em termos de políticas públicas na educação na primeira infância?
Acho que os governos são tão lentos porque temem interferir numa idade tão precoce das crianças – consideremos as idades entre os 0 e os 5 anos, que é tradicionalmente uma altura em que apenas a família se preocupa. E se intervier nessas idades, há uma grande sensibilidade política, religiosa e afins com a qual é preciso lidar. Creio que os governantes têm medo de poder estar a instrumentalizar de alguma forma as crianças… No fundo, há uma espécie de bolha de privacidade que todos têm medo de atravessar. A verdade é que toda a gente sabe que os primeiros anos de vida importam muito. Há sociedades, aliás, que já tentaram fazer experiências desse género: retirar as crianças dos ambientes familiares e avaliar como é a sua evolução. Fez-se com os aborígenes, na Austrália, com algumas tribos no EUA e, aliás, creio que os espartanos tentaram isso na Grécia Antiga.
E se olharmos, por exemplo, para os casos da juventude hitleriana na era nazi, para a China ou para a Rússia, conseguimos perceber que, de facto, os valores que nos inculcam durante os primeiros anos de vida ficam muito marcados. Que esses anos são essenciais.
É medo, então?
Uma criança não nasce com o seu sentido de ser formado. Ele é formado pelo ambiente em que cresce, e isso é perigoso, no sentido em que os adultos, muitas vezes, discordam sobre que valores devem ser ensinados, que crenças as crianças devem ter…E como resultado, há medo. Sobretudo quando se fala num programa de governo. Eu acho que toda a gente tem medo do governo (risos), exceto o governo em si. Como se as pessoas temessem um Hitler ou Estaline de novo, não obrigatoriamente num sentido ditatorial, mas no sentido de um governo que pode mudar os valores ensinados. Suponha que é parte de uma minoria religiosa, que acredita no zoroastrismo e vive na Índia. Sabemos que eles têm imensos problemas por serem uma minoria. Eles têm diferentes valores que ensinam às suas crianças. Resumindo, ninguém duvida da importância da educação. Duvidam é de que alguém, em particular, deva estar em controlo nessa formação inicial. Toda a educação tem muita importância na ética, na forma como as pessoas tratam as outras. Acho que é muito difícil separar a formação de carácter do ensino puro. Por exemplo, na Dinamarca está uma proposta em cima da mesa para tornar a pré-escola obrigatória para todas as crianças, incluindo as imigrantes. E há uma razão para isso: eles querem que as crianças aprendam dinamarquês antes de entrarem na escola. Mas também querem que as crianças aprendam a cultura dinamarquesa, e os imigrantes árabes, por exemplo, não estão muito confortáveis com isso: eles educam homens e mulheres de forma diferente.
Acho que toda a gente tem medo do governo, exceto o governo em si.
Especialistas em todo o mundo apontam para um aumento das desigualdades devido ao ensino à distância a que esta pandemia obrigou praticamente todos os países. Concorda?
O gap é grande, e já o era antes do coronavírus. Agora, sim, está a aumentar. E era importante perceber a estrutura da desigualdade. As crianças de famílias com mais posses têm outras oportunidades de aprender, têm outras ligações, até, do que as crianças mais pobres. Nos EUA, os números mostram claramente que o dinheiro gasto em educação por cada criança, por parte das famílias abastadas, está constantemente a aumentar, ainda que pouco. Mas eles já têm boa educação, brinquedos, aulas particulares. E junte a isto o facto de, geralmente, estas crianças serem filhas de pais com um maior nível de educação formal. E, nos EUA, há ainda outro fator, que é o facto de geralmente serem crianças que beneficiam de duas premissas importantes: terem um pai e uma mãe, e terem um pai e uma mãe com formação. Que lhes ensinam vocabulário, sabem responder às perguntas.
Estamos a agir como se estivéssemos a passar pela recessão de 2008! São, literalmente, os políticos a lutar a guerra de ontem
E nas franjas da sociedade, as crianças sem acesso a isso.
Podemos falar das questões mais básicas, como os mais pobres terem falta de material que só está acessível online e, às vezes, não haver quem o consiga comprar. Mas também devíamos olhar para as crianças mais novas. Elas gostam de jogar e há toda uma indústria em redor de jogos didáticos e aplicações que pode ser muito útil porque ensina efetivamente coisas aos miúdos. Mas acho que o ensino à distância com um professor a tentar falar com crianças de 4 ou 5 anos falhou… É muito intenso e difícil, sobretudo para as famílias menos estruturadas.
Em termos económicos, a incerteza parece ser a única certeza. Acredita que as respostas que estão a ser dadas, globalmente, são as corretas?
Creio que estamos num momento de pura ambiguidade, que ainda está a ser escrito. A teoria da ambiguidade nas Finanças e outras áreas da economia… nós não sabemos! E se não sabemos, não podemos ter uma boa teoria. Sabemos algumas coisas que podemos fazer: podemos observar o que se passa, agregar os dados e projetar o melhor e o pior cenário. Mas o pior cenário pode ser muito extremo. Mas não sabemos. É mais fácil dizer do que fazer, no fundo. E ninguém quer projetar o pior cenário. Não o fizemos para a guerra nuclear e, possivelmente, não o vamos fazer para a Covid. O que vai acontecer, acredito eu, é que as pessoas vão tornar-se mais espertas, vão apontar as baterias a uma estratégia que acredito ser a de proteger os grupos de risco: os mais velhos e os doentes crónicos ou com o sistema imunitário comprometido. Parece-me bastante óbvio, porque a taxa de mortalidade junto dos idosos, por exemplo, é muito elevada. Nos EUA é de cerca de 43 por cento. E temos evidências de que os mais novos passam praticamente incólumes. Portanto, essa estratégia parece-me sábia. Só que vai criar imensos problemas.

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Tais como?
Como vamos obrigar os mais velhos a ficarem em casa? Através de uma quarentena obrigatória? Em instituições é mais fácil de controlar, não é? Acho que vai haver pensamentos deste género e acredito que as políticas vão evoluir. Não estou pessimista, confesso. Exceto sobre a qualidade dos políticos em redor do mundo. Acho que são uns incompetentes. E acho que não vão enfrentar o problema se o puderem evitar. Há formas concretas de resguardar os mais velhos, embora seja preciso alterar a forma como as pessoas são tratadas, sobretudo nas instituições coletivas onde muitas vezes estão. Acho que essa é a solução mais visível, neste momento. Diria que tem mesmo de passar por aqui: por perceber quais são os grupos de risco e proteger esses grupos. Era uma forma de o resto da sociedade não ter de pagar o custo de um confinamento. Em resumo, o que acho que quero dizer é: utilizemos as evidências médicas para tomar decisões. E estou a falar de termos em conta evidências científicas e não aquilo que alguns políticos afirmam ser evidências. Por outro lado, os médicos não são economistas. E algumas decisões que tomaram foram trágicas [para a economia].
Mas ninguém sabia exatamente o que fazer, não é?
Eu acho bem que os médicos queiram salvar o máximo de vidas possível. Acho que o Anthony Fauci [diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infeciosas dos EUA] tem razão em querer salvar as pessoas. Mas se formos todos encarcerados em casa, a longo prazo morremos de qualquer forma. Pode não ser da Covid-19, mas de outra coisa. Sei lá, comidos por insetos? Parece-me ter sido um erro no início desta pandemia termos deixado tudo nas mãos dos epidemiologistas. Porque aquilo que vimos também foi que muitos dos modelos de evolução da doença estavam errados. Houve modelos do Imperial College errados. E muitos economistas estão a seguir o mesmo caminho. Tenho visto artigos científicos tão maus, sinceramente. Eu sou editor e revejo muitos: vi imensos que denunciavam pressa, que não tinham bases factuais… Honestamente, não creio que precisemos de profundas decisões económicas. Acredito é que precisamos de boa economia.
Que se oiça mais as várias áreas do saber?
Talvez fosse boa ideia adequar o sistema político a uma forma que ele responda à informação válida de cada campo. Era importante agir de uma forma mais flexível. Aqui, nos EUA, estamos a agir como se estivéssemos a passar pela recessão de 2008, novamente. É errado! São, literalmente, os políticos a lutar a guerra de ontem. Não estão a pensar na natureza do problema, nem estão a considerar o que faz sentido fazer neste caso em particular. A maior parte dos políticos, pelo menos nos EUA, são muito maus. A sério, podem ter cursos superiores e tudo o mais, mas, no final do dia, a única coisa que eles querem é ser reeleitos no final do quarto ano de mandato. São ignorantes. Eles basicamente vão para onde o vento estiver a soprar.
Mas sobreviveremos, economicamente?
Enfim, sim, acho que a economia pode tolerar este vírus. Se formos espertos. Se os políticos não se meterem no caminho, acho que nos podemos organizar de forma efetiva. Na altura da peste negra, as pessoas abandonaram as cidades. Não sabiam o mecanismo exato, mas perceberam que estar juntas não era uma boa ideia. Por exemplo, não entendo qual o problema de Donald Trump em usar uma máscara. Até para dar o exemplo. E não quero estar sempre a falar dele, mas vou repetir: acho que os políticos são um problema neste caso. Na China, por ser uma ditadura, é efetivamente mais fácil controlar tudo: proibiu-se o comércio, ficou tudo em casa, e de facto controlou-se o coronavírus. E quando houve outra vaga em Beijing, voltaram a fechar a cidade. Portanto, há vantagens num estado ditatorial, nestes casos.
É impossível não falarmos do movimento Black Lives Matter (BLM), porque o professor tem muita investigação feita na área…
Eu fiz muita investigação neste campo, mas o assunto tornou-se tão sensível que eu não tenho publicado nada. E, para ser honesto, quem não é afro-americano e publica sobre o tema já não é ouvido, aqui nos EUA. É um assunto muito sensível, e por alguma razão agora acha-se que só afro-americanos podem falar sobre ele, o que eu acho um erro. Até a Universidade de Chicago incorporou essa ideia.
É muito aborrecido o que nos mostram as estatísticas, e as pessoas não querem ir por aí. As estatísticas até mostram que é muito mais provável que as crianças negras vão à escola, e cheguem à universidade
Ainda assim, pode comentar?
Bom, acho que o BLM se focou na ideia da desigualdade racial. Vamos ver, é óbvio que ninguém acha que aquilo que aconteceu com George Floyd é uma coisa boa. Ninguém discute isso. Mas vamos olhar para o assunto mais genericamente, além da questão negros e brancos. Tomemos o exemplo da Covid, de que temos estado a falar: entre 70% e 80% dos casos da Covid-19 que temos atualmente em Chicago são entre pessoas negras. Os negros representam entre 25% e 30% da população da cidade. Se olharmos para as questões sociais, o que temos são muito mais negros a viver na pobreza, a cumprir penas de prisão… factos. Outro facto que importa realçar: se olharmos para as estatísticas que estão disponíveis publicamente, a percentagem de homicídios entre negros e brancos é baixa. Existem, não estou a negar que existem, mas em termos percentuais é muito baixa. Na verdade, a taxa de homicídios de homens negros é muito elevada quando olhamos para crimes cometidos por outros negros. Há muitos crimes de violência doméstica, também…É muito aborrecido o que nos mostram as estatísticas e as pessoas não querem ir por aí, mas é isso que elas nos mostram.
Então, os negros são mais pobres?
Bom, nos EUA há uma desigualdade enorme entre negros e brancos, mas isso leva-nos ao tema inicial da nossa conversa. E volto a dizer que, atualmente, tudo se tornou tão politizado que se torna difícil discutir o assunto. Mas, por exemplo, sabia que 70% das crianças negras nascem em famílias monoparentais?
E aqui, genericamente, uma mãe ou um pai solteiro não tem muito dinheiro, tem menos educação formal, baixos salários e responsabilidades imensas. São pessoas que trabalham mas, genericamente, têm empregos de baixos salários e isso significa que aquelas crianças crescem num ambiente muito pobre: em bairros com menos condições, onde os gangues são um problema, as escolas são más….enfim… Dito isto, quando olhamos para a taxa de pobreza nos EUA, ela é alta, é de cerca de 25 por cento. Mas nem todos os negros são pobres. E quando olhamos seriamente para os números, e para a definição de pobreza, esse número cai. O [professor] Bruce Meyer, e outros investigadores aqui da Universidade de Chicago, têm feito um trabalho muito meticuloso a calcular qual a real medida da pobreza, e ela não inclui uma série de apoios governamentais que as famílias recebem, nem o impacto das importações de produtos chineses, que permitem aos pobres ter acesso a bens a preços muito mais baixos em lojas como o Walmart. Se essas variáveis forem tidas em consideração, a percentagem de pobres no país cai para 15 por cento. Mais de 80% das famílias negras, nos EUA, têm pelo menos um carro, frigorífico, televisão, habitação própria…Não estou a dizer que não há um problema, mas acho que as coisas têm de ser postas em perspetiva.
Mas não há um problema no acesso à educação?
As estatísticas até mostram que é muito mais provável que as crianças negras vão à escola, e cheguem à universidade, graças ao Affirmative Action, implementado há cerca de 50 anos. Portanto, em termos de probabilidade, ela é maior entre os negros – e isto serve para homens e mulheres. Aliás, uma investigação recente mostra também que os negros com um curso superior ganham mais do que um branco com o mesmo curso e as mesmas competências. Agora, não podemos ignorar que há um gap de competências entre negros e brancos, mas que acredito que tem muito mais que ver com o ambiente familiar, com fatores sociais. Agora isso não pode ser discutido, porque o movimento BLM vê uma afirmação destas como racista. Mesmo em termos académicos, a discussão deteriorou-se bastante e continua a piorar. Mesmo num lugar como a Universidade de Chicago, que é vista como um muito liberal, tem sido difícil… Ainda recentemente tivemos um caso de uma pessoa que foi suspensa porque escreveu um texto a questionar porque temos um dia dedicado a Martin Luther King. A sensibilidade está em níveis tremendamente elevados.
Mesmo entre académicos?
A título de exemplo, há uns tempos estava a comentar com um investigador negro, de uma instituição à qual tenho ligação, os meus estudos sobre o impacto do ambiente familiar no sucesso das crianças. O que ele me disse foi: “Está a dizer que as nossas famílias são más?” E eu respondi-lhe que “são famílias com poucos recursos, é isso que lhe estou a dizer. Que é preciso dar-lhes mais recursos para que as crianças se desenvolvam melhor”.
Portanto, voltamos à questão da importância da família onde se nasce.
O que me incomoda é o porquê de tantos negros saírem da escola a meio, não agarrarem as oportunidades de irem para uma faculdade… e, novamente, acho que isso tem que ver com a família. Mas agora isto é assunto tabu. O que acho muito perigoso é criarmos uma imagem de os negros serem indivíduos desamparados, discriminados pelo sistema. Juro-lhe, a maioria dos negros não são pobres. Eles beneficiam de uma série de programas governamentais, do Affirmative Action, e o BLM ignora uma série de dados. Se não entendermos o problema, não o vamos resolver. E o BLM não entende. Há discriminação, sim. Não vou negar. Mas há muito progresso. Há vários afro-americanos entre os mais ricos (e não são apenas dois ou três). A questão é: o que cria essas diferenças raciais? Tem muito que ver com o comportamento e a cultura da sociedade. Bom, neste caso, e em resumo, acho que a razão não está a prevalecer.