Pode o homem mais rico de sempre não ser, sequer, o mais abastado da sua era? É uma questão de perspetiva. Que se saiba, ninguém acumulou mais dinheiro do que Jeff Bezos, patrão da Amazon, da Blue Origin e do Washington Post: a sua fortuna cresce a cada dia e, há cerca de um mês, impulsionada pelo boom da bolsa de Nova Iorque, atingiu pela primeira vez os 110 mil milhões de dólares (90 mil milhões de euros). Um recorde absoluto, ponto final parágrafo.
Agora os asteriscos. Apesar de se situar já bem acima da fasquia dos 100 mil milhões de dólares, o valor que a fortuna de Bill Gates tocou no seu auge, em 1999, este saldo do fundador da Microsoft, se atualizado com a inflação, equivaleria hoje a 147 mil milhões de dólares. Sendo ambos critérios válidos na hora de medir cifrões, valorizar um em detrimento do outro não desfaz todas as dúvidas sobre quem deve ostentar a coroa de homem mais rico de sempre. Se, por um lado, não se vislumbra o fundo dos cofres aos membros da família real saudita ou ao líder russo Vladimir Putin, por outro, imperadores como o romano César Augusto ou o mongol Gengis Khan teriam também de ser chamados à equação. Na verdade, estes líderes chegaram a dominar boa parte do mundo então conhecido, tendo nas suas mãos uma percentagem muito relevante das economias mundiais dos seus tempos. Bezos não anseia por tanto, apesar de a sua fortuna pessoal chegar para cobrir o défice orçamental anual do Reino Unido… duas vezes. O seu domínio do globo é outro, através do comércio online.
Indiscutível é que chegou o tempo de Jeff Bezos liderar as tabelas dos mais ricos da Forbes e da Bloomberg, com um império dos tempos modernos construído a partir de uma garagem em Seattle. Depois de uma viagem de carro pelos Estados Unidos da América, acompanhado da mulher, assentou naquela cidade do estado de Washington, colado à fronteira com o Canadá, em 1994. Um ano depois, a ideia de vender livros através de uma novidade chamada internet dava origem à Amazon, agora transformada no maior supermercado global de comércio online.
O alvo preferido de Trump
Aos 54 anos, o americano que também sonha em fazer negócio nas viagens ao espaço, através da empresa Blue Origin, viu o valor da Amazon disparar em mais de 50% desde que Donald Trump foi eleito Presidente dos EUA. Graças à política de redução de impostos para as empresas, o vento sopra a seu favor na bolsa de Nova Iorque. Mas, no caso de Bezos, a ironia é suprema: desde 2015, quando se posicionou na corrida à Casa Branca, Trump tem feito do empresário um saco de pancada no Twitter, acusando-o por repetidas vezes de destruir postos de trabalho e de não cobrar impostos sobre o consumo aos seus clientes (IVA).
A Amazon tem fama – e proveito – de ter beneficiado de uma política de isenção fiscal, uma vez que durante muitos anos, até 2011, só cobrava e pagava IVA no estado de Washington, onde tinha a sua sede, apesar de vender produtos em todo o país. Essa terá sido uma das razões para Bezos ter fixado aí a empresa desde a primeira hora. Nos estados mais populosos, como Nova Iorque, Texas ou Califórnia, a Amazon conseguiu praticar preços mais competitivos por estar dispensada de entregar IVA às autoridades.
Na verdade, o próprio Trump se autoelogiou, com todas as letras, em plena campanha eleitoral, pela sua arte de escapar aos impostos, a ponto de sublinhar como isso evidenciava nele uma veia para o negócio. É, pois, a última pessoa com moral para apontar o dedo à política fiscal adotada por Jeff Bezos. Além do mais, o seu antigo porta-voz, Sean Spicer, chegou a destacar o papel do CEO da Amazon na criação de emprego, uma das bandeiras da campanha do candidato republicano.
A única leitura possível para os sucessivos ataques à gigante do comércio online é o facto de Bezos ser também o proprietário do Washington Post, um dos jornais que tem liderado o escrutínio à ação política de Donald Trump. De antro de “notícias falsas” a arma de lóbi político capaz de assegurar benefícios fiscais para a Amazon, os tweets presidenciais sobre o Post são sempre venenosos para a reputação de Bezos.
A aquisição do jornal, em 2013, por 250 milhões de dólares (€200M), simboliza uma mudança de paradigma na gestão da imagem pública do homem mais rico da atualidade (com as reservas já enunciadas). Se, no passado, a Amazon chegou a sonegar informações básicas sobre a empresa, como o número de empregados (hoje são mais de 500 mil), nos últimos anos Jeff Bezos tem saído mais vezes do seu casulo em Seatlle para participar em eventos sociais.
A casa que comprou em Washington DC (a capital do país e não o estado), por 23 milhões de dólares (€18,7M), está em obras para receber num grande salão as festas da nata política – um contraste total com os tempos em que, segundo o New York Times, Bezos recusava até ser fotografado ao lado de políticos.
O ‘pai’ cubano
Em 2015, a sua presença no Twitter tornou-se mais assídua. E, no verão passado, desafiou os seguidores a sugerirem ideias para o seu projeto filantropo, algo em que os donativos pudessem causar impacto imediato. Distinguido em outubro por apoiar uma campanha a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo, na semana passada soube-se que havia doado 33 milhões de dólares (€27M) para bolsas de estudo a jovens imigrantes, os chamados dreamers – os mesmos “sonhadores” que têm estado na mira de Trump, alguns dos quais oriundos de países “merdosos”, em África ou nas Américas, como os apelidou o líder americano em declarações avançadas originalmente pelo Washington Post e confirmadas por um congressista democrata presente na ocasião.
São agora esses dreamers – jovens que chegaram ilegalmente aos Estados Unidos da América, na esmagadora maioria dos casos para se juntarem aos seus pais – os beneficiários do apoio de Bezos, num momento em que Trump tenta acabar com o seu estatuto especial no país.
Jeff Bezos é especialmente sensível ao tema: o seu pai biológico só ficou com a sua mãe durante um ano e quem o ajudou a criar, a partir dos quatro anos, foi o padrasto, Miguel Bezos, a quem pediu o apelido e chama pai – um cubano que havia chegado aos Estados Unidos da América, sozinho, ainda menor de idade. Um exemplo acabado do dreamer.
(Artigo publicado originalmente na revista VISÃO)