A administração hospitalar tem há largos anos um desafio que não raras vezes faz faísca: entre as exigências dos acionistas e as necessidades das equipas de colaboradores nem sempre é fácil conseguir o ponto de equilíbrio. Um equilíbrio especialmente delicado, atendendo a que à frente da equação está a necessidade de tratar doentes e salvar vidas. “Só um masoquista continua a trabalhar em ambiente público”, confessa Marta Temido. A administradora hospitalar continua, ainda assim, fiel ao Estado. Mas muitos colegas vêm migrando para os hospitais privados, que durante a recessão económica provaram ter uma saúde de ferro
As histórias contadas por Marta Temido, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH), são bem conhecidas de todos quantos trabalham em hospitais públicos: muitas vezes faltam materiais aos enfermeiros e abundam os processos burocráticos que dificultam a prestação de um serviço imaculado aos utentes do Serviço Nacional de Saúde (SNS). “É verdade que em ambiente público a máquina é muito mais pesada. E é mais lenta a responder aos estímulos do ambiente externo”, aponta a presidente da APAH.
Marta Temido sublinha que “um gestor público de saúde é terrivelmente mal pago, sobretudo com a responsabilidade jurídica que tem”. Também administradora do Hospital Arcebispo João Crisóstomo, de Cantanhede, Marta Temido admite que o sector privado continua a ser uma referência. “Culturalmente, toda a Administração Pública tende a olhar para o sector privado como um local de recolha de práticas inovadoras e de conquista de melhores resultados”, avalia.
É também no feminino que fala uma das vozes mais sonantes do sector privado. Isabel Vaz, a executiva que permaneceu na liderança da Luz Saúde após o colapso do Grupo Espírito Santo (GES), considera que “os desafios de gestão são comuns no sector público e no privado”, passando principalmente pela adoção de novas tecnologias e pela melhoria da relação com o doente.
Embora haja questões transversais aos hospitais públicos e privados, que incluem o desafio do financiamento (quem deve, afinal, pagar a saúde dos portugueses?), do ponto de vista salarial o Estado permanece, regra geral, menos atrativo. Segundo Marta Temido, “a migração de médicos e enfermeiros também se reflete ao nível da gestão”. Mas melhores salários no privado vêm acompanhados de um quotidiano exigente. “Os níveis de stress são enormes”, reconhece a presidente da APAH. Ainda assim, segundo os relatos que a administradora hospitalar vai ouvindo, no privado “as pessoas estão satisfeitas”.
Artur Osório, presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada (APHP), entende que a relação das empresas de saúde com os seus colaboradores é saudável. “Os médicos para nós são parceiros. Os bons resultados que eles obtêm os hospitais também têm. E eles são recompensados do ponto de vista financeiro. É raro haver conflitos com os médicos”, descreve Artur Osório.
Sobre os gestores hospitalares públicos, o presidente da APHP partilha uma leitura acutilante. “Os gestores do sector público fazem milagres. A forma como está organizado o sistema não permite que se faça uma gestão adequada e eficiente. Alguns gestores acabam por ser autênticos chefes de repartição do Ministério [da Saúde]. Hoje os administradores dos hospitais públicos não têm autonomia para decidir nada.”, conclui.
José Carlos Magalhães, presidente do Grupo Lusíadas Saúde, corrobora essa visão. “Os operadores privados são mais eficientes do que o Estado, mas isso não é culpa dos gestores públicos. Conheço gestores hospitalares públicos bons e gestores hospitalares privados maus. O problema é que o modelo público é muito burocrático, há que abrir concursos para tudo.”
O ‘eldorado’ do privado
O ambiente de gestão diferenciado é o contexto em que, nos últimos anos, se tem processado uma tendência de crescimento cada vez mais sólida dos hospitais privados. Embora a saúde privada não tenha taxas de crescimento explosivas de ano para ano, a verdade é que o sector tem tido um crescimento contínuo, resistindo relativamente bem à crise económica que se abateu sobre Portugal nos últimos anos.
Para a presidente da Luz Saúde, “o sector da saúde privada provou ser muito resiliente à crise”, o que é, aliás, ilustrado pelo crescimento da procura nos hospitais e clínicas dos maiores grupos. “Estando nós agora em ciclo de retoma, é evidente que as perspetivas são muito boas”, diz à EXAME uma Isabel Vaz claramente otimista. “A saúde é o grande sector do século XXI”, acrescenta.
Segundo a APHP, os hospitais privados alcançaram em 2014 uma faturação de 1750 milhões de euros. De acordo com Artur Osório, “o crescimento das receitas anda à volta de 6% na generalidade das empresas privadas; mas há grupos a crescer mais”. Olhemos apenas para os dois maiores. No ano passado, os proveitos da José de Mello Saúde avançaram 8%, para 532 milhões de euros, enquanto as receitas da Luz Saúde subiram 7%, para 402 milhões. Números interessantes num país cuja economia cresceu menos de 1% no ano passado.
Os dados já publicados pelas duas empresas relativamente ao primeiro semestre de 2015 mostram que o negócio continua de vento em popa. Até junho, os rendimentos operacionais da José de Mello Saúde cresceram 9%, em termos homólogos, para 277 milhões de euros. Na Luz Saúde a faturação engordou quase 6%, para 213 milhõesde euros.
Do ponto de vista operacional, a saúde privada evidencia também indicadores de contínuo crescimento. E não se trata apenas de ver os hospitais privados já existentes a captar consultas, cirurgias e internamentos que antes eram feitos nas unidades públicas. Ao contrário do que sucede no Estado, por iniciativa dos agentes privados todos os anos há expansão de capacidade. “O investimento de raiz está a acontecer”, assinala Artur Osório.
Uma retrospetiva resumida dos últimos anos comprova-o. Em 2010, a José de Mello Saúde abre o Hospital CUF Porto, a maior unidade privada da Região Norte. Em 2011, a Trofa Saúde inaugura o Hospital de Dia da Maia. Em 2012, a Espírito Santo Saúde expande o Hospital do Mar, na área da Grande Lisboa. Em 2014, o Grupo Mello abre novas clínicas em Mafra, São Domingos de Rana e Benfica e o Grupo Lusíadas instala-se em Almada. Já em 2015 a Trofa Saúde abre o Hospital Privado de Gaia e a Lusíadas Saúde inaugura uma clínica também em Gaia.
Os indicadores de produção, que espelham o desempenho operacional das unidades privadas, são significativos, sobretudo se analisados por comparação com o que eram ainda antes da crise. No ano passado os quatro maiores grupos de saúde contabilizaram mais de cinco milhões de consultas. É ainda um volume minoritário face a 44milhões de consultas que a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) registou no SNS. Mas as consultas no privado estão em franco crescimento: na líder José de Mello Saúde os 1,8 milhões de consultas dadas em 2014 mais do que duplicaram a atividade que a empresa tinha cinco anos antes (em 2009, a José de Mello Saúde teve 741 mil consultas).
Não é só pelas consultas que os portugueses estão a optar pelos privados. Também os episódios de urgência têm observado crescimentos relevantes. No ano passado, por exemplo, o Grupo Luz Saúde registou uma subida de 11% face ao ano anterior no número de urgências na sua rede (foram 540 mil). E no espaço de cinco anos o volume de urgências na rede liderada por Isabel Vaz duplicou.
Mais ligeiro é o crescimento da procura dos hospitais privados pelos futuros pais. Os dados publicados pela José de Mello Saúde indicam que nas suas maternidades nasceram no ano passado 7200 bebés, que comparam com 6700 partos do ano anterior. Mas já em 2008 o Grupo Mello se tinha aproximado dos sete mil partos anuais.
A conta satélite que o Instituto Nacional de Estatística (INE) publicou em julho último sobre o sector da saúde deixa pistas interessantes, indicando que em 2013 a despesa corrente em saúde, em Portugal, caiu 1,3% nos hospitais públicos e subiu 5,4% nos hospitais privados. O decréscimo de despesa no Estado é justificado pelo INE com a queda dos gastos com medicamentos e material de consumo clínico, que mais do que compensou o aumento de custos relacionado com a reintrodução do subsídio de férias do pessoal.
Já em 2014, segundo as estimativas do INE, a despesa pública em saúde terá crescido 0,7%, enquanto a despesa privada terá subido 2,5%. Mas o economista Pedro Pita Barros nota que os grandes números, por si só, podem não ser conclusivos, já que uma maior ou menor despesa não implica necessariamente mais ou menos atos médicos ou clínicos. “Uma redução de salários no sector público, mantendo-se a atividade realizada, significa menor despesa pública e maior proporção da despesa privada, mesmo que nada se altere no atendimento à população”, explica. O professor da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa sublinha que “a despesa privada, nomeadamente os pagamentos diretos, cresceu muito por conta da redução dos benefícios fiscais (que beneficiavam proporcionalmente mais os agregados familiares de maiores rendimentos)”.
Ainda assim, os dados de produção dos operadores privados vêm evidenciando, ao longo dos anos, sucessivos aumentos. E o crescimento operacional dos hospitais não seria possível sem médicos e enfermeiros. Atualmente, os quatro maiores grupos privados de saúde empregam cerca de 22 mil pessoas (a Luz Saúde tem mais de nove mil colaboradores, a José de Mello Saúde, mais de sete mil, a Lusíadas Saúde, 4500, e a TrofaSaúde, mais de um milhar de profissionais).
Do ponto de vista da empregabilidade, os grupos privados continuam a ser uma referência. Até porque os seus planos contemplam largas centenas de milhões de euros de investimento em expansão.
O que aí vem
Nos últimos meses as maiores empresas de saúde têm reafirmado a vontade de investir em novos hospitais e clínicas pelo país fora. Há pelo menos 400 milhões de euros de investimentos prometidos. A José de Mello Saúdetenciona aplicar 150 milhões a curto e médio prazo e a Luz Saúde outro tanto. O Grupo Trofa Saúde tem em marcha um plano para investir uma centena de milhões de euros, mas esse valor poderá duplicar se a empresa nortenha concluir ser viável lançar um novo hospital na Região da Grande Lisboa.
Artur Osório, que, além de presidente da APHP, é vice-presidente da Trofa Saúde, adiantou à EXAME que “o break even [equilíbrio operacional] dos hospitais está a obter-se ao fim de dois anos e meio”. A Trofa Saúde tem apostado sobretudo em unidades de média capacidade, que tiram partido da proximidade às populações.
Segundo Artur Osório, a Trofa Saúde vai abrir em Gaia, dentro de um ano, um hospital que irá rivalizar, em dimensão e valências, com os maiores hospitais privados de Lisboa. “O grupo em expansão irá aplicar 100milhões de euros. Haverá uma forte componente de capitais próprios.”
Salvador de Mello tem à frente da José de Mello Saúde o desafio de manter a liderança da sua empresa no competitivo mercado dos hospitais privados. Mas o gestor prefere frisar a ótica de longo prazo dos seus investimentos. “O retorno sobre o investimento é sempre a longo prazo”, explica, notando que o que prevalece na ponderação dos investimentos é a importância de garantir a qualidade dos serviços. “Este é um sector muito especial, porque cuidamos da vida das pessoas. Tratamos casos muito complexos, em que muitas vezes estamos na fronteira entre a vida e a morte. O nosso compromisso com a segurança e a qualidade clínica é absoluto e inegociável”, nota o presidente da José de MelloSaúde.
No caso do Grupo Mello (que ainda na primeira metade do ano avançou para a compra do Hospital Privado de Santarém), a expansão passa pela construção de um novo hospital em Lisboa (em Alcântara, em 2018), pela ampliação da CUF Descobertas (também na capital, em 2017) e pela abertura de um novo hospital em Viseu (no primeiro semestre de 2016).
Em entrevista ao Jornal de Negócios, em julho, a presidente da Luz Saúde, Isabel Vaz, indicou que a empresa deverá investir até 2017 cerca de 150 milhões de euros. O grupo está a ampliar o Hospital da Luz, em Lisboa, entre outras obras planeadas. Quando ainda era controlada pelo GES, a empresa já tinha em estudo a possibilidade de abrir um hospital em Angola. O relatório do primeiro semestre veio informar que não só esse projeto permanece em análise como a LuzSaúde iniciou a análise de “expansão para outras geografias no contexto do novo quadro acionista Fidelidade/ Fosun”. Que geografias? A empresa não quer, para já, avançar detalhes. Como estão os operadores privados de saúde a financiar este crescimento? As contas de alguns grupos mostram que a atividade corrente tem gerado um crescimento dos resultados, mas a receita de sucesso das empresas privadas neste sector não assenta num único ingrediente, antes numa combinação de vários fatores, que conjuntamente vêm dando a quem financia a confiança necessária para emprestar dinheiro para novos investimentos.
O mercado de capitais
O interesse que a Luz Saúde despertou no mercado de capitais no ano passado é sintomático. Em fevereiro de 2014, o GES dispersou 49% do capital da empresa (então ainda designada Espírito Santo Saúde), operação que rendeu cerca de 150 milhões de euros (22,5 milhões reverteram para a empresa e o restante para o GES). A entrada em bolsa traduziu-se na venda de ações a 2800 investidores (um número distante dos 25 mil que acorreram à oferta pública dos CTT, por exemplo) e a estreia em negociação não foi particularmente feliz: os títulos desvalorizaram nos primeiros dias e só ao fim de uma semana recuperaram o valor a que foram vendidos.
Mas se a estreia na bolsa foi menos entusiasmante do que o que se poderia prever, a verdade é que os primeiros meses de vida de uma Espírito Santo Saúde cotada revelaram ser uma das novelas do ano no mercado português de capitais. Negociada pelos mais diversos fundos de investimento, a empresa passou, em agosto de 2014, a ter entre os seus acionistas de referência o grupo mexicano Ángeles, com 3,3% do capital.
O Grupo Ángeles lançaria, a 1 de setembro, uma oferta pública de aquisição (OPA) sobre a companhia presidida por Isabel Vaz, oferta essa que a administração da empresa portuguesa classificou como “aceitável” e até positiva para a sua estabilidade acionista (numa altura em que era já conhecido o colapso do GES). A 11 de setembro de 2014, a José de Mello Saúde juntou-se à corrida: o maior operador privado em Portugal queria comprar o segundo maior. Se a disputa da dona do Hospital da Luz tinha virado uma novela luso-mexicana, o enredo ficaria ainda melhor pouco depois: a 22 de setembro entra em cena a chinesa Fosun, que, por intermédio da Fidelidade, lança também uma OPA sobre a empresa. Resultado: as ações da Espírito Santo Saúde, lançadas em bolsa a 3,20 euros, passaram a ser valorizadas em 5,01 euros (foi essa a oferta revista da Fidelidade). Pelo meio, a norte-americana United Health (dona da brasileira Amil, que controla a Lusíadas Saúde) também apresentou uma oferta fora de Bolsa de 5 euros por ação. A corrida foi ganha pela Fosun, e em outubro de 2014 a empresa iniciaria um novo capítulo da sua história: já sem o GES, passou a operar sob o controlo de capitais chineses e com o novo nome de Luz Saúde.
A acesa disputa em torno do capital do segundo maior grupo privado de saúde em Portugal ilustra bem o interesse que este negócio tem para os investidores. Hoje, passada a turbulência da mudança de donos, Isabel Vaz admite que a saúde “é um sector económico muito complexo”, mas, dada a sua resistência à crise, funciona também, do ponto de vista do mercado financeiro, como um refúgio para quem pretende aplicar o seu dinheiro em ações com um risco relativamente reduzido.
Isabel Vaz já admitiu que a Luz Saúde poderá voltar a dispersar em bolsa uma parte do seu capital (hoje, 98,4% da Luz Saúde estão nas mãos da Fidelidade). O que, a confirmar-se, permitiria à empresa levantar novos fundos para financiar o seu crescimento, a par com a geração de resultados operacionais. Considerando a experiência da LuzSaúde (cujas ações valem hoje mais 22% do que na entrada em bolsa), será de admitir que outros operadores privados lhe possam seguir as pisadas. Mas o Grupo Mello permanece reticente.
A 8 de maio deste ano, a José de Mello Saúde foi ao mercado buscar 50 milhões de euros através de um empréstimo obrigacionista a seis anos (pelo qual a empresa paga aos investidores a Euribor a 6 meses acrescida de 2,95%). A operação foi feita com investidores institucionais e serviu para refinanciar a atividade corrente e “fazer face a novas oportunidades de investimento”, conforme o grupo explicou então num comunicado.
Poderá a bolsa ser também uma solução de financiamento para o maior grupo privado de saúde em Portugal? “A entrada em bolsa não está nos nossos planos.
No entanto, essa é uma opção sempre em aberto, em função das circunstâncias”, responde Salvador de Mello, notando que o endividamento da empresa é “muito baixo”. “Estamos preparados para o ambicioso plano de investimentos que temos em mãos”, acrescenta.
O Estado como bengala?
Na hora de investir em expansão, o recurso ao financiamento bancário ou ao levantamento de capitais na bolsa pode ser uma ajuda importante, mas para as empresas privadas de saúde o modelo de negócio está hoje largamente dependente de um conjunto de pressupostos. Os seguros de saúde são um dos vértices evidentes do sucesso dos hospitais privados, numa geometria traçada com outros pontos fulcrais: a disponibilidade das famílias para o copagamento dos serviços, a qualidade e rapidez do atendimento e também o papel do Estado.
Em que medida esteve o crescimento dos grupos privados de saúde apoiado no Estado? É um facto que boa parte da receita dessas empresas já vem dos clientes financiados pela ADSE, a assistência garantida aos funcionários públicos. Até há bem pouco tempo este subsistema era pago, em parte, pela entidade empregadora (o Estado) e em parte pelo funcionário público, tendo entretanto o seu financiamento passado a ser suportado exclusivamente pelo beneficiário (por via do desconto de 3,5% do vencimento).
Por outro lado, a prestação de serviços contratualizados com os hospitais públicos (que encaminham para os privados os doentes que não conseguem tratar) e as parcerias público-privadas (PPP) também contribuem de forma relevante para os resultados de alguns dos maiores operadores de saúde.
Vamos a contas. No primeiro semestre deste ano, a Luz Saúde faturou 47 milhões de euros em cuidados desaúde públicos (o grupo gere a PPP do Hospital Beatriz Ângelo, em Loures) e 164 milhões em cuidados privados. E dentro desta última rubrica a ADSE contribuiu com 32%. No Grupo Mello os cuidados de saúde públicos (em que se incluem as PPP do Hospital de Braga e do Hospital de Vila Franca de Xira) geraram receitas de 106 milhões de euros, ao passo que os cuidados privados movimentaram 175 milhões. Somando as receitas das empresas de Isabel Vaz e Salvador de Mello, é possível constatar que quase um terço da faturação vem de cuidados de saúde públicos.
Artur Osório, da APHP, considera que “a experiência das PPP tem sido positiva para o Estado, com poupanças da ordem de 25%”. Será? Ainda em agosto o Tribunal de Contas publicou um relatório de auditoria sobre um destes projetos, concluindo que “não resulta evidente, da análise do primeiro ano de atividade completo do Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, uma maior eficiência decorrente do seu modelo de gestão privada”.
O milagre das PPP
Foi há já mais de uma década que o país se lançou num ambicioso programa de PPP na saúde. Em 2001, o governo de António Guterres lançou um pacote de 10 projetos para a construção de hospitais públicos que durante uma década seriam geridos pelos privados.
O impulso estatal foi quase um milagre da multiplicação para os grupos privados, que então viram, de norte a sul do país, novas oportunidades para dar escala ao seu negócio. E “Escala” foi justamente o nome do consórcio que a José de Mello Saúde montou (incluindo a construtora Somague) para concorrer às PPP. O agrupamento do Grupo Mello venceria os concursos para construir e gerir os novos hospitais de Braga e Vila Franca de Xira. A concorrente Espírito Santo Saúde ganhou o concurso para Loures. A HPP (hoje Lusíadas Saúde) ficou com a PPP de Cascais.
Nos concursos então feitos, o Estado adjudicou as parcerias aos consórcios que apresentaram os mais baixos preços para a construção e gestão clínica. Além das unidades de Vila Franca, Braga, Loures e Cascais, havia uma segunda vaga de PPP, que acabou por avançar apenas parcialmente e contemplando só a vertente de construção (deixando a gestão clínica a cargo do próprio Estado).
Os quatro hospitais públicos que hoje estão a ser geridos pelos privados têm tido indicadores de atividade positivos. Segundo Isabel Vaz, tem sido feita uma aprendizagem com este modelo de negócio. “As parcerias foram muito bem estruturadas”, comenta. E não podia ser de outra forma: depois da conturbada PPP do Hospital Fernando da Fonseca (Amadora-Sintra), o Estado e os privados teriam necessariamente de tirar lições. A sociedade gestora do Amadora–Sintra (que era liderada pelo Grupo Mello) dirimiu durante anos um conflito judicial com a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo devido às divergências nos valores de acerto no pagamento dos serviços prestados naquele hospital.
Apesar da difícil experiência do Amadora-Sintra, Salvador de Mello considera que “as PPP na saúde são um caso de sucesso, reconhecido por todas as partes envolvidas, com melhorias de qualidade, melhor acesso aos cuidados de saúde e ganhos de eficiência muito importantes para o Estado português”. Mas está tudo a funcionar na perfeição? Não.
Salvador de Mello nota que, segundo um levantamento da ACSS, “o hospital de Braga é considerado a unidade mais eficiente do país, com custos operacionais por doente-padrão mais reduzidos e melhores cuidados”. Mas o gestor não esconde que “o relacionamento financeiro pode e deve melhorar, na medida em que o Estado tem dificuldades em pagar atempadamente”.
Na Luz Saúde, o histórico de PPP é mais curto. Resume-se ao hospital de Loures, que entrou em funcionamento em janeiro de 2012. E com menos de quatro anos de operações a Luz Saúde já tem questões para resolver com o Estado. A empresa reclama, desde fevereiro de 2014, o financiamento de tratamentos de doentes com SIDA (no valor de 3,6 milhões de euros até junho de 2015). Além disso, existe uma arbitragem entre a entidade gestora do hospital (liderada pela Luz Saúde) e o Estado por divergências sobre o pagamento de médicos em formação na unidade de Loures.
Não obstante as PPP continuarem a levantar alguns conflitos, a verdade é que os operadores privados continuam a ter no Estado uma base relevante para a sustentação do seu negócio. Não só nas PPP mas também nas unidades privadas que recebem e tratam os funcionários públicos (e familiares) que têm ADSE.
O economista Pedro Pita Barros reconhece que a contribuição da ADSE para o negócio dos privados é “quantitativamente relevante”, mas assinala como “provável” que, a prazo, uma parte dos beneficiários do subsistema estatal migre para seguros privados. Este é, aliás, um movimento que já está a acontecer.
A popularidade dos seguros
Os seguros privados são uma parte muito relevante da sustentabilidade do sector. No seu relatório do primeiro semestre, a Luz Saúde observa que “o mercado de seguros de saúde em Portugal tem continuado a sua trajetória histórica de crescimento, com um aumento de 5% face ao período homólogo no valor dos prémios adquiridos no primeiro semestre de 2015, para cerca de 300 milhões de euros”. Mas a empresa assume também que a concorrência nos seguros de saúde está a introduzir alguma pressão sobre os preços praticados.
E poderá o crescimento dos seguros, ao desviar procura para o sector privado, ameaçar a viabilidade do próprio SNS? Pedro Pita Barros não o crê. “A aceleração do crescimento do mercado de seguros de saúde privado é basicamente irrelevante para o financiamento global do sistema de saúde português. Os seguros de saúde são ainda uma componente muito pequena dos fundos que circulam no sistema de saúde. Os problemas futuros de financiamento do sistema de saúde e do SNS não têm a sua solução, ou agravamento, a passar pelo que suceder aos seguros de saúde privados”, analisa o economista.
Em comparação com outros países, o mercado nacional dos seguros privados é relativamente pequeno. Dados da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) indicam que em 2012 os seguros desaúde privados cobriam 20% da população portuguesa, enquanto na União Europeia essa cobertura ultrapassava 40%.
Em março deste ano, a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) publicou um estudo notando que os seguros privados “têm apresentado um crescimento significativo em Portugal, ao passo que o financiamento público das despesas em saúde tem apresentado uma tendência de queda”. Apesar de o potencial deste mercado ser limitado pela crise (que veio diminuir o rendimento das famílias), a ERS prevê que os seguros de saúde privados “deverão continuar a apresentar crescimento em Portugal a médio prazo”.
José Carlos Magalhães, presidente do Grupo Lusíadas Saúde, nota que os seguros privados são cada vez mais bem vistos pelas famílias. “Se eu estiver muito doente, o SNS trata-me muito bem, mas se eu estiver com uma mazela crónica, aí enrola. É esta a principal motivação para as pessoas comprarem seguros de saúde hoje em dia”, refere. Mas isso, adverte, está a mudar. “As pessoas estão a começar a comprar seguros de saúde porque se sentem inseguras em relação ao SNS. Quando cheguei (a Portugal), há dois anos e meio, a motivação era a conveniência, porque podiam marcar a consulta de oftalmologista para o dia seguinte, sem esperar um ano ou dois”, conta. O mercado da saúde privada tem uma procura crescente. Para onde poderá caminhar? “É preciso investir nos cuidados continuados e paliativos”, sugere Artur Osório. As oportunidades de negócio não faltam, portanto.
MELLO ABRE OS CORDÕES À BOLSA
Líder na saúde privada, o Grupo Mello tem investido largos milhões na sua expansão pelo país fora. Ir para a bolsa é “uma opção em aberto”
É um dos mais valiosos ativos do Grupo Mello: com 70 anos de vida (o hospital CUF Infante Santo foi fundado em 1945), a José de Mello Saúde é o maior prestador privado de cuidados de saúde em Portugal, faturando mais de 500 milhões de euros ao ano. A radiografia da empresa presidida por Salvador de Mello evidencia boa saúde financeira. A crise dos últimos anos não impediu a José de Mello Saúde de acumular lucros. A empresa faturou 532 milhões de euros em 2014, crescendo 8% face ao exercício anterior, tendo o seu lucro subido 35%, para 17 milhões de euros. No plano operacional, os indicadores são também positivos: em 2014 a rede contabilizou 1,8 milhões de consultas e 568 mil episódios de urgência, com crescimentos de 14% e 7%, respetivamente. O número de camas para internamento teve um ligeiro aumento de 3%, para 1483 unidades. A história da José de Mello Saúde teve os seus momentos críticos. Em 2006 o grupo tentou internacionalizar-se, comprando uma participação na espanhola Quirón, posição que viria a alienar em 2012. Em 2008 o grupo foi afastado da polémica parceria público-privada (PPP) do Hospital Fernando da Fonseca (Amadora-Sintra), que gerou um longo litígio com o Estado. Em 2014 a José de Mello Saúde tentou comprar a Espírito Santo Saúde, mas perdeu para a Fidelidade. Certo é que o Grupo Mello continua a investir para crescer. A par com a PPP do novo hospital de Braga, a empresa aplicou 70 milhões de euros no Hospital CUF Porto. Já em 2015 abriu a clínica CUF Miraflores e comprou o Hospital Privado de Santarém. A expansão continuará em Lisboa e Viseu, com investimentos de 150 milhões de euros. E cotar a empresa em bolsa? Embora não esteja nos planos, não deixa de ser um cenário. “Essa é uma opção sempre em aberto, em função das circunstâncias”, admite Salvador de Mello.
A LUZ DIVINA QUE VEIO DA CHINA
Nasceu por obra do Grupo Espírito Santo, mas o destino quis que ficasse em mãos chinesas. Passou a ser a LuzSaúde. E manteve a liderança feminina
A Luz Saúde, nova designação da antiga Espírito Santo Saúde, é hoje o segundo maior operador no seu sector. Posicionada logo a seguir à José de Mello Saúde, a companhia presidida por Isabel Vaz teve num curto período de vida um crescimento explosivo e um agitado processo de mudança de controlo acionista. A jovem empresa nasceu há 15 anos, dentro do Grupo Espírito Santo (GES), com a compra de dois hospitais em Aveiro e Vila Nova de Gaia, a que se seguiria uma terceira unidade em Évora. Nos anos seguintes prosseguiu com aquisições e investimentos de raiz, como o Hospital da Luz, em Lisboa, inaugurado em 2007 por Ricardo Salgado. À semelhança do Grupo Mello, a Espírito Santo Saúde esteve na corrida das parcerias público-privadas (PPP), conquistando em 2009 o Hospital de Loures.A companhia presidida por Isabel Vaz aproveitou o fluxo crescente de resultados para se lançar, em 2014, numa aventura bem sucedida: a 12 de fevereiro tornou–se a primeira empresa portuguesa de saúde em bolsa, dispersando 49% do capital. Poucos meses depois, em paralelo com o colapso do GES, iniciou-se uma acesa disputa pela companhia. A Espírito Santo Saúde foi alvo de ofertas públicas de aquisição (OPA) da mexicana Ángeles, da José de MelloSaúde e da Fidelidade, controlada pela chinesa Fosun. Foram estes últimos que conseguiram, em outubro de 2014, o acordo do GES para ficar com a empresa, cujo nome mudou para Luz Saúde. Sem a graça do Espírito Santo, mas com um novo suporte acionista chinês, a empresa viu o futuro iluminar-se. A Luz Saúde faturou 402 milhões de euros em 2014 (mais 7% do que em 2013) e lucrou 18,1 milhões (acima do conseguido pela José de Mello Saúde). Com 1,6 milhões de consultas e 540 mil urgências por ano, a empresa estuda a internacionalização, mas o projeto de abrir um hospital em Angola ainda não se concretizou.
A APOSTA BRASILEIRA
A Amil escolheu Portugal como porta de entrada na Europa. Comprou, em 2013, a Hospitais Privados de Portugal, que rebatizou de Grupo Lusíadas Saúde
Chegaram a Portugal em 2012 para comprar à Caixa Geral de Depósitos uma empresa sem rumo, como recorda José Carlos Magalhães, o “estrangeiro” que liderou a aquisição pela Amil da Hospitais Privados de Portugal (HPP). A empresa brasileira aterrava, assim, em Lisboa vinda do outro lado do Atlântico, com Portugal como porta de entrada na Europa. O negócio fez-se, no início de 2013, por 85,6 milhões de euros, e incluiu uma parceria público-privada (PPP), à qual o presidente do conselho de administração do Grupo Lusíadas Saúde (a nova denominação da HPP) torceu o nariz. O que lhe interessou logo foram as unidades hospitalares privadas que a Caixa tinha em Lisboa e no Porto, onde identificou “potencial para fazer um trabalho fenomenal”. A PPP do Hospital de Cascais viria por arrasto, mas acabou por surpreender “positivamente” o gestor. Mudaram as equipas de gestão dos hospitais do grupo e centralizaram “tudo”, reorganizando o marketing, os recursos humanos, as finanças, a contabilidade e os stocks. A ‘arrumação da casa’ deverá ficar concluída até final de 2015, antes dos cinco anos previstos. Magalhães revela que deixaram de perder dinheiro em Cascais e que conseguiram reverter a situação económico–financeira de todo o grupo, que hoje é “rentável”. Pelo meio, ampliaram o Hospital dos Lusíadas, em Lisboa (tem um novo bloco para consultas e exames), mas é preciso aumentar mais o número de camas. Os investimentos e os resultados do grupo não são quantificados pelo gestor, devido às restrições de ter um acionista cotado em Bolsa (a Amil foi comprada, em 2013, pelo gigante norte-americano UnitedHealth Group). O plano é continuar a crescer (tentaram comprar a Espírito Santo Saúde, atual Luz Saúde, numa oferta pública de aquisição feita fora de Bolsa) e há também ambições de internacionalização, num plano ainda a definir, mas no qual Espanha será um mercado óbvio.
A REVIRAVOLTA DA TROFA SAÚDE
O grupo da família Vila Nova nasceu na Trofa, mas ambiciona ser mais que um operador de saúde da Região Norte. Em 2014 a Trofa Saúde cresceu 11%
Fundada em 1999, a Trofa Saúde é hoje uma das maiores empresas na prestação de cuidados de saúde privados em Portugal, tendo alcançado no ano passado um volume de negócios de 77 milhões de euros, mais 11% do que no ano anterior. Para 2015 a meta é chegar a 100 milhões de euros de receitas. Mas se o crescimento de dois dígitos mostra que a marca Trofa Saúde está hoje em boa forma, nem sempre foi assim. Assumindo-se ainda como um grupo de “características regionais”, a empresa já teve ativos no Sul do país, mas desfez-se deles. Em todo o caso, a sua administração continua a ter vontade de investir numa grande unidade hospitalar na Região de Lisboa. “O grupo fez um plano de expansão, mas, com a crise, entrou numa derrapagem financeira grave”, recorda Artur Osório, vice-presidente da Trofa Saúde e presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada. Há quatro anos, a estrutura acionista da Trofa Saúde alterou-se: o fundador, José Vila Nova, saiu da empresa, que passou a ser liderada pelo seu irmão António Vila Nova. “Aguentámos o grupo e os hospitais que estavam a abrir”, recorda Artur Osório. Hoje a empresa criada a partir da Casa de Saúde da Trofa tem uma rede com seis hospitais e duas policlínicas e uma oferta de 578 camas. No ano passado a rede da Trofa Saúde contabilizou 866 mil consultas, com um crescimento de quase 17% em termos homólogos. Segundo Artur Osório, a empresa acumulou prejuízos de 2010 a 2012, mas a partir de 2013 voltou a gerar resultados positivos. “Para o ano conseguiremos ter o nosso passivo resolvido”, prevê o vice-presidente da TrofaSaúde, que diz que a chave do crescimento da empresa tem sido uma estrutura de custos relativamente leve. “Temos poucos quadros intermédios e processos de controlo da eficiência do pessoal muito apurados”, descreve o gestor.
Este artigo é parte integrante da edição de outubro da Revista EXAME