MONTENEGRO E VENTURA “É a palavra de um contra a palavra do outro” – expressão muito usada e com a qual se pretende significar que quando só duas pessoas tiveram uma conversa ou testemunharam um facto, e dão versões contraditórias, não se pode saber a verdade. Aconteceu. Porém, creio não ser exatamente assim, quando não é idêntica a credibilidade das duas pessoas, quando uma delas é conhecida por faltar à verdade, distorcê-la, dizer uma coisa hoje e outra amanhã. Ora, sendo este o caso de André Ventura, a menos que apresente provas do que diz, julgo que se deve acreditar na palavra de Luís Montenegro ao negar que, num encontro a sós com Ventura, lhe prometeu abrir as portas do Governo ao Chega se este aprovasse o Orçamento do Estado (OE).
Há, porém, uma outra coisa a considerar: Montenegro ter encontros com representantes de todos os partidos com assento parlamentar é natural, até um dever; agora ter mais do que um encontro “discreto”, alegadamente cinco encontros, com o líder do partido em relação ao qual proclamou o famoso “não é não”, é pelo menos embaraçoso e negativo para ele. Acrescendo que toda a conduta do Chega e do seu chefe após aquela garantia dada por Montenegro só foi de molde a mostrar que tal “não” se impunha e impõe, inclusive por respeito a regras básicas da democracia e mesmo da decência.
TIRO NO PÉ Assim, Pedro Nuno Santos (PNS), ao intervir em congressos distritais do PS, acertou ao criticar esses encontros entre o primeiro-ministro e Ventura. E acertou ao acentuar que o OE nunca pode ser considerado do PS ou sequer próximo do PS, não só pelo que lá está, como pelo que não está. Mas se há uma ideia talvez generalizada de que o PS tem obrigação de aprovar o OE porque o PSD “cedeu” muito, mais do que o PS, a culpa é dos socialistas, que quase só falaram do IRS Jovem e da descida do IRC.
Naquelas suas intervenções, pior (em absoluto e para a imagem que tem ou querem dar dele), PNS criticou implicitamente os membros do partido, em particular “comentadores”, que fora dele, nos média, defendem posições diversificadas, não coincidentes com as da direção. Crítica que constitui um erro e sem nenhum efeito positivo face ao que visava – pelo contrário… A questão é complexa, o que se passa nos média portugueses, sobretudo nas televisões, de sobreposição políticos/comentadores, creio ser único e prejudicial para a saúde da democracia, há muitos problemas neste domínio a exigirem um debate sério e profundo. Porém, o que o líder do PS disse, e no contexto em que o fez, foi só um tiro no pé.
JORNALISTAS E POLÍTICOS E só um tiro no pé foi também o que Luís Montenegro disse sobre os jornalistas. Claro que não faz nenhum sentido, é do domínio do disparate, aquilo sobre os auriculares & similares. Mas, com todo o peso de uma longa e rica experiência, para não dizer mais, penso que uma não despicienda parte do nosso jornalismo está em muito mau estado: do ponto de vista da qualidade, da imaginação, da competência técnica, do rigor deontológico. Seja em matérias mais graves, seja nas simplesmente mais caricatas ou ridículas – como a da peça sobre a pen do OE que o Ricardo Araújo Pereira mostrou no seu último programa.
E os jornalistas devem reconhecê-lo, não padecendo de um desculpante ou mesmo cego corporativismo, que afeta outras profissões. Incluindo algumas em que isso ainda é muito mais nocivo e perigoso – das polícias às magistraturas.
DIREITOS IGUAIS Uma nota final acrescento: como jornalistas criticam políticos, políticos têm todo o direito de criticar jornalistas, desde que isso não implique uma ameaça à sua independência e à sua liberdade. Ponto é terem as críticas fundamento.
Deste episódio dos auriculares não virá mal maior ao País. Já poderá vir do que o Governo anunciou sobre o fim da publicidade na RTP, sem medidas que compensem a perda de receitas – o que representa um perigo efetivo para a indispensável televisão pública. Mas falar disso, e do que na posse disse o novo procurador-geral da República, já aqui não cabe. Talvez volte aos dois temas.
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