O escritor possuído
Existem livros orientados pelas personagens, mas não existe uma revolta e usurpação do lugar do autor, deixando este de ter livre-alvedrio e passando a obedecer às personagens que ele próprio criou
Preso por um fio dental
Quando descrevo a minha casa de forma concisa, objetiva e despersonalizada, não estou a descrever algumas das suas dimensões: estou a descrever uma casa, mas não estou a descrever um lar
Sobre livros e leitura
Podemos interpretar uma pintura ou uma música durante ou após o processo de fruição, mas o objeto artístico é-nos oferecido sensivelmente e de uma forma completa na sua existência física. O livro não. Sem leitura não existe
Da minha língua vê-se o sal, do sal vê-se o mar
Uns dias antes, no Panamá, um indígena emberá tinha-me aconselhado a misturar sal no maracujá, pois isso diminuiria a acidez. Pegou na metade do fruto que eu segurava, aberto como uma taça, deitou-lhe uma pitada de sal, mexeu com o dedo indicador, depois com o médio, e devolveu-me o maracujá para que sorvesse a polpa.
Notas sobre vacas e outros assuntos incontornáveis
Paralaxe, a crónica e Afonso Cruz no JL
Corrupção e colheres de prata
Quando se diz que a corrupção sempre existiu – desde que existe humanidade – a sentença deve ser tomada literalmente. Estamos a falar de uma relíquia biológica
Saltos
A sociedade deu um salto gigantesco no que respeita à compreensão do mundo e da Natureza, graças à descoberta de um objecto que é ele próprio um outro tipo de salto: uma cápsula de tempo.
Como se ganham guerras
As pessoas não procuram a verdade, procuram a certeza. E é um problema quando a encontram. Depois, a lealdade, a amizade, a cooperação criarão a coesão necessária para impedir que a verdade se intrometa e as esboroe
Uma questão de detalhe
Devemos uma constante atenção ao mundo, uma atenção poética, que possa atender ao detalhe, à minúcia, à letra com que se inicia cada palavra ou ao estremecimento que antecede cada gesto
O tempo pode bem ser uma flor
A imagem que acompanha este texto mostra a tal flor possível. Um universo a florir pode não ser verdade, mas é belo. Sei que a verdade não é sinónimo de beleza, mas há situações em que podem coexistir.
Por amor de um verso
A memória rilkeana diz-nos que a identidade é um sistema complexo que não pode ser confinado a um órgão específico, mas à totalidade do indivíduo, sangue, olhar e gesto, porque as recordações (como funções ou manifestações da mente ou do cérebro) não são suficientes