Vivo no campo há quase 13 anos. Tem sido uma experiência gratificante e não pondero sequer a hipótese de um dia voltar a viver na cidade. Perguntam-me amiúde por que motivo o fiz. Respondo que sempre imaginei ser feliz no campo. Aqui estou, a comprovar a intuição que me levou a deixar a cidade. No entanto, creio que a escolha foi romântica e poderia ter sido um enorme equívoco, mas, felizmente, a minha ideia de campo, que não correspondia à realidade, foi substituída por algo igualmente cativante (que não é objeto deste texto). Pretendo aqui falar de equívocos.
Partilho várias fotografias na minha conta de Instagram em que o protagonista é o campo. Quase todas, se vistas com atenção, espelham, não a natureza, mas a sua domesticação. Observando com atenção, é raro encontrar uma situação em que os animais não sejam domésticos, em que a flora não seja cortada, aparada, podada, enfim, domesticada, e se um cão na paisagem nos parece idílico, há que considerar que passados minutos nos trouxe uma lebre recém-nascida na boca e que tem uma coleira no pescoço.
A ideia de harmonia é omnipresente. Os encómios à natureza obliteram as hecatombes. Se vulcões, meteoritos e terremotos são expressões da natureza tanto quanto as flores da primavera, não são mencionados senão como um castigo contra o ser humano que desrespeitou a própria natureza ou algum preceito ético. A natureza é, para quem a vê através de um vidro – seja uma janela, um ecrã ou uma montra – absolutamente sábia e isso provavelmente justificará a extinção dos dinossauros e outras gomorras.
Neste contexto, a poesia (pelo menos alguma dela, a mais partilhável mas redes sociais) prefere o pôr-do-sol, a névoa, os astros, a fragrância das flores. Flores e plantas que, curiosamente, muitas vezes nos matam (sem contar com as espinhosas, daninhas, fedorentas, carnívoras, que dificilmente entrariam na exaltação da natureza quando se toma a visão simplista do elogio continuado).
Por outro lado, se a crueldade da natureza é apontada, fez-se de passagem, com a secura científica ou com uma personificação alvo de críticas (desprezando a quantidade de vezes em que a natureza é citada como sábia, generosa, bela, etc.) Tudo isto seria risível se não fosse trágico: se por um lado há este transporte místico relativamente ao putativo esplendor da natureza, por outro observamos uma atitude oposta, o absoluto desrespeito pela natureza. Ou não estaríamos a viver no Antropoceno.
As citações seguintes, as primeiras cinco (o teor repete-se) foi retirada de uma página da internet, a primeira que respondeu à busca “quotes about nature”:
1. In nature, nothing is perfect and everything is perfect. Trees can be contorted, bent in weird ways, and they’re still beautiful. –Alice Walker
2. Forget not that the earth delights to feel your bare feet and the winds long to play with your hair. —Khalil Gibran
3. Look deep into nature, and then you will understand everything better. —Albert Einstein
4. Heaven is under our feet as well as over our heads. —Henry David Thoreau
5. To me a lush carpet of pine needles or spongy grass is more welcome than the most luxurious Persian rug. —Helen Keller
Se um extraterrestre lesse isto concluiria que vivemos, seres humanos e natureza, uma relação de intensa harmonia e de pura veneração. Helen Keller teria caruma na sua sala de estar em vez de tapetes. Se por outro lado, esse extraterrestre nos visitasse, encontraria uma natureza esmagada, à beira do colapso.
Esta esquizofrenia não ajuda a resolver problemas. A natureza não é um espetáculo criado para almas sensíveis, como também não é algo que nos apropriemos para nosso uso irresponsável. Em ambas as visões fazemos da natureza um instrumento, mesmo que por vezes com a melhor das intenções. Exaltar a natureza parece ser um modo virtuoso de olhar e de pensar, mas é apenas uma maneira de perpetuar uma ideia de natureza que não tem nada que ver com a natureza. Discute-se muito a dicotomia ser humano/cultura, dicotomia que creio não existir, o que há é uma dicotomia entre ser humano e péssimo uso da cultura e será a partir desta premissa que temos de começar a trabalhar.
A nossa cultura é a nossa natureza, mas devemos considerar que há boas e más naturezas e a nossa tem-se mostrado hedionda. J
Exaltar a natureza parece ser um modo virtuoso de olhar e de pensar, mas é apenas uma maneira de perpetuar uma ideia de natureza que não tem nada que ver com a natureza