Lembro-me de ter lido um livro sobre o tempo – mas não do título ou do autor – que se gabava de ser o único que tratava desse tema sem citar uma das mais famosas frases de Santo Agostinho. Ao referi-lo, estava inevitavelmente a citá-lo sem o fazer diretamente. Partilho a tal frase, citando-a no entanto com um pouco mais lastro do que é habitual: “O que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois traduzir por palavras, o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei” (Agostinho, Confissões).
De facto, a questão (acima, a negrito) é tão simples e bem colocada que nos perturba. O problema parece surgir com a pergunta e não pela natureza intrínseca do tempo.
Esta questão encontra um paralelo no exercício da leitura. Quando há aquilo que Coleridge chamava suspensão da descrença (também chamava, com mais beleza, fé poética), o leitor permanece imerso na narrativa, e interrompe esse estado imersivo por se deparar com algo que o detém, que o faz tropeçar. Pode acontecer por vários motivos, alguns deles indesejáveis, especialmente quando a narrativa pretende ser fluida: o aborrecimento e a inverosimilhança, por exemplo. Mas há também bons motivos para interromper a leitura, e alguns tipos de escrita ou conteúdo promovem este comportamento, fazendo com que as paragens sejam um elogio. Podemos deter-nos porque a leitura nos incomodou, nos magoou ou feriu (que é desejável: serve de pouco a literatura que não nos perturba) ou, pelo contrário, porque nela encontrámos um momento de inigualável beleza, de maravilhamento estético, emocional ou intelectual.
Roland Barthes, em Le bruissement de la langue, chamava a esta interrupção, que permite pensar o texto, interpretar e refletir sobre o que lemos, de “levantar a cabeça”. Cada vez que o fazemos foi porque o texto nos empurrou para fora dele, nos fez emergir. Tal como na pergunta que Agostinho colocou, “se ninguém mo perguntar, eu sei”, o leitor que não levanta a cabeça, não reflete, é conduzido passivamente (na verdade, não sabe nem julga saber, vive simplesmente sem questionamento). Se alguns livros desejam este comportamento (uma contínua fé poética), em especial quando o enredo é o elemento mais importante e não o trabalho da linguagem, outros anelam exactamente o oposto e quantas mais interrupções existirem melhor a leitura. Ao levantar a cabeça, o leitor está a colocar-se na segunda parte da questão de Agostinho: “já não sei”. É o momento que os leitores, conforme a sua personalidade, pensam, sublinham, dobram o canto de uma página ou tomam notas.
A nossa experiência do tempo é, à vez, endofísica (dentro do tempo) e exofísica (fora do tempo). Quando estamos imersos em algo, o tempo não é uma questão, vivêmo-lo, mas quando refletimos, automaticamente emergimos e colocamo-nos fora dele. Isso permite pensar a nossa vida, imaginar o futuro, recordar, compreender. Não saber o que é o tempo é uma forma de o suspender para tentar compreender a vida, é levantar a cabeça para a ver de fora. Exatamente como fazemos com a leitura. O ato de sair do tempo (tal como quando saímos de um livro ou de uma narrativa) coloca-nos a possibilidade de dobrar um canto da página da nossa vida, de sublinhar um momento, de tomar notas. Eticamente é fundamental: sabemos pela História que a imersão contínua nos acontecimentos pode redundar em grandes tragédias e que, pelo menos a espaços, é necessário parar para fazer perguntas.J
Levantar a cabeça
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